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- Não posso ignorar uma decisão das Moiras – disse irritado. – Zeus deu-lhes o poder de governar a vida dos homens. Elas decidem todos os detalhes da existência humana, do nascimento ao instante final. Tecem, para cada mortal, um fio com todos os acontecimentos da vida que ele vai viver e o vão desenrolando a cada dia, até o momento em que decidem cortá-lo e interromper aquela trajetória. Chamam, a isso, Destino, Sorte ou Fardo. Nada pode ser feito para mudar o que o fio contém, nem para adiar o momento do corte. É o grande infortúnio com o qual a humanidade deve conviver. – Depois, virando-se para Orfeu, disso categórico: - Um mortal tem que aceitar o fio que as Moiras lhe ofereceram, quer tenha sido tecido com fatos bons ou não, com êxitos ou com fracassos, com alegrias ou com desesperos. Nada no mundo dos vivos é para sempre. Para os homens, a eternidade só existe aqui. Conforme-se com o seu destino! Você já teve Eurídice, e isso deveria bastar-lhe. Volte ao seu mundo!

Orfeu escutara as palavras de Hades com profunda amargura, aniquilado com a inflexibilidade do Senhor do Inferno. Perséfone tocou-lhe suavemente o braço e disse com doçura:

- Não desista, príncipe! Pegue a sua lira e toque para o deus dos mortos.

Assim ele fez. Dedilhou as cordas, arrancando sons de uma melancolia infinita. Nunca se ouviu melodia tão triste e tão bonita. Naquele instante de dor absoluta, o músico criou como jamais conseguira, tirando de suas entranhas uma emoção da qual não se sabia capaz. Apolo, com certeza, aliara-se a Perséfone para derrotar Hades. Os dedos divinos guiavam os de Orfeu. Um deus apaziguou o outro. Hades transfigurou-se enlevado e ab-ruptamente disse ao príncipe poeta:

- Você encontrará Eurídice às margens do riacho onde ficam as almas douradas. Tome-a e leve-a, mas com uma condição: ela deverá segui-lo à distância de dez passos e, em hipótese alguma, sob que pretexto for, você deverá voltar-se para olhá-la, até que tenha transporto o Aqueronte. É imprescindível que assim seja!

Orfeu beijou o chão aos pés de Hades, rindo e chorando de alegria incontida. Depois deu meia-volta e correu para fora do palácio, atravessou os campos floridos, deixando-se guiar pelo murmúrio aconchegante das águas onde se banhavam as almas douradas.

- Eurídice! – gritou ao vê-la.

A ninfa, esposa idolatrada, sombra rediviva, aninhou-se em seus braços, em êxtase total.

- Venha! Saiamos daqui! Você está livre para ir.

Os apaixonados percorreram o caminho de volta tal como Hades ordenara. Orfeu resistia à tentação de contemplar Eurídice. Com o Aqueronte já à vista, a ninfa pronunciou amorosamente o nome do amado, e ele, instintivamente, esquecido do aviso de Hades, virou-se e sorriu-lhe. No mesmo instante, algo terrível aconteceu: o corpo de Eurídice se desmanchou, transformou-se em fumaça que se misturou ao ar, e ela desapareceu, perdida para sempre.

- Eurídice!...

O grito de Orfeu varou as cavernas e ecoou pela Terra angustiando os homens.

Hípias, Cimene e Agenor o ouviram quando deixavam Delfos.

- O que foi isto? – perguntou ela.

- Não sei! – respondeu o pastor. – Parece o barulho de um coração se despedaçando.

Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora