Os Dois Mundos

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  Logo depois que Orfeu partiu, Hípias ouviu um barulho ensurdecedor. Era como o rufar de mil tambores. O chão estremecia, e as arvores balançavam violentamente. O som desconhecido ecoava pelas colinas, compassado e cavo, sempre na mesma cadência. O que seria?

O pastor parou. Se os seus ouvidos não o enganavam, o ruído aumentava de intensidade, indicando que a sua fonte estava cada vez mais perto e parecia vir ao seu encontro. Hípias olhou para as quatro direções onde moravam os quatro grandes ventos, tentando achar um lugar onde se abrigar. Não tinha ideia do que estava acontecendo, porém pressentia algo de ameaçador. Só alguma coisa descomunal poderia originar aquele rumor extraordinário. Um gigante, quem sabe? Talvez Atlas, o titã que segura o mundo? Ou um ciclope, o monstro com um horrível olho no meio da testa e que só se alimenta de carne humana?

Apavorado, o pastor não encontrou onde se esconder. Nenhuma gruta, nenhum banhado, nada que o pudesse salvar da monstruosidade que se aproximava. Triste destino encontrar a morte assim tão perto de casa! O que seria de sua mulher e de seu filho Agenor? "Adeus, meus queridos", pensou ele resignado, "minha hora chegou. As Moiras logo irão cortar o fio da minha vida". Cabisbaixo, ele ficou onde estava, esperando a calamidade que o abateria. Respirava fundo, amedrontado demais para se lamentar. Súbito, o horror se fez presente: por detrás da colina, surgiu uma cabeça descomunal, depois, um pescoço que mais parecia um tronco e, em seguida, ombros largos como jamais imaginara. E, então, todo o resto de um corpo extraordinário. Os braços e as pernas do colosso eram incrivelmente musculosos. A criatura – difícil acreditar que fosse um homem – vestia apenas uma pele de leão presa na cintura por uma tira de couro. Tinha uma aljava cheia de setas e um arco imenso pendurados no ombro esquerdo. O homenzarrão segurava uma enorme clava e, com a outra mão, arrastava uma coisa disforme e sanguinolenta que deixava um rastro imundo. Seu rosto estava fechado numa carranca, e seus olhos não tinham a luz da vida. Hípias se deu conta de que o barulho ensurdecedor nada mais era do que o martelar dos passos daquele ser colossal.

- Héracles! – balbuciou o pastor incrédulo. Ele estava frente a frente com o filho de Zeus. O herói dos heróis. Reconheceu-o pelo lendário tamanho. A coisa arrastada era seguramente uma monstruosidade que ele acabara de abater. Todos na Tessália sabiam que o imprevisível semideus estava percorrendo toda a Hélade atrás de certos monstros que lhe cabia exterminar. Desde então, o herói gigantesco fora visto caminhando, para cima e para baixo, à cata dos tais seres assombrosos. Hípias conformou-se com a ideia de ser desgraçadamente trucidado por Héracles. Encolheu-se e esperou que a clava do herói o esmigalhasse e o reduzisse a pó. Como nada acontecesse, ganhou coragem e encarou o mastodonte. Impressionou-se com suas pupilas baças e fixas no espaço vazio; olhos que olhavam sem ver. O homenzarrão andava e respirava, mas o sopro de vida que deveria animá-lo certamente não estava ali. Ele parecia totalmente despido de qualquer animação e mergulhado em visões distantes. Era um alívio: Héracles não havia percebido a sua presença. Olhava-o como se ele fosse uma pedra de beira de estrada, uma insignificância qualquer que não merecesse atenção. Felicíssimo, Hípias compreendeu que iria sobreviver ao encontro. Voltou-lhe o calor do corpo, que estivera frio como a neve. Animado com a indiferença tranquilizadora dos brutamontes, o pastor ousou aproximar-se dele para examinar os restos asquerosos do monstro despedaçado. Vistos de perto, os despojos sangrentos, com cartilagens e vísceras apodrecidas, ficavam insuportavelmente nauseantes. Ele contou oito cabeças de serpente totalmente esmagadas e achatadas como folhas de árvore. Os frangalhos indicavam que elas haviam sido esmigalhadas com fúria insana. Das oito bocas escorria um caldo repugnante de cheiro pútrido. Alguns dos olhos ainda relampejavam furiosos como que agarrados a tênues fios de vida. Parte da monstruosidade não queria morrer. Do corpo abominável não se via muito, pois estava completamente destruído pelas pauladas do glorioso herói. A causa – que certamente tivera – ficara pelo caminho. Aquela criatura fora aniquilada! Arruinada por inteiro! Héracles, tudo indicava, desconhecia o meio-termo. Não lhe bastara, apenas, matar o monstro: precisara anulá-lo e apagar os vestígios da sua existência. Trucidara quem já estava abatido e, a julgar por seu olhar vidrado e por suas feições tensas, a carnificina não lhe servira de alívio. Hípias ficou muito perturbado com aquela constatação, tapou os ouvidos e fechou os olhos para não mais ver nem ouvir aquele herói perigoso. Nesse instante, o chão ao seu redor rachou sob a pressão das passadas hercúleas, e o pastor quase caiu numa greta que se abriu aos seus pés.

- Pobre Héracles, é forte demais, destrutivo demais!... Até parece um monstro!

O filho de Zeus sumiu com o seu horrível troféu, mas as rachaduras do solo ficaram como vestígios da sua passagem. A violência daquela criatura deixara a sua marca.

Não foi somente Hípias quem experimentou aquela convulsão. Por baixo mesmo daquelas colinas, ficava parte do Mundo Inferior, e lá também os mortos sentiram a terra tremer.

Hípias não sabia disso, porque nenhum mortal conhecia a exata localização do Reino das Sombras. Era um segredo que só pertencia aos deuses. Alguns homens imaginavam que a Terra dos Mortos ficava para além do horizonte, na embocadura do grande rio Oceano que circundava o mundo. Outros apostavam que ela se erguia em algum lugar no centro da Terra, ao lado da morada de Hefesto, e que as almas chegavam até lá descendo por longos túneis que partiam de certas cavernas. Quando alguém morria, a família colocava-lhe, na boca, uma moeda para pagar o trabalho do barqueiro encarregado de atravessá-lo no rio que levava ao Além.



Continua...

Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora