...

67 3 0
                                        


   - O que faz o filho do rei da Trácia tão longe de casa? Seu reino é bem distante daqui. Príncipes não costumam perambular pelas estradas como os heróis atrás de aventuras.

  Orfeu entristeceu, e seu olhar se toldou.

   - Estou procurando por minha mulher, Eurídice... Ela partiu! Deixou-me! Sei onde ela se encontra, porém ainda não achei o caminho que me leve até lá. Mas vou descobri-lo e conduzi-la de volta para o meu reino.

  Hípias se comoveu. Ele não sabia que príncipes podiam sentir tanta tristeza. O estrangeiro era sincero em seu desalento: seus olhos e sua voz choravam. O coração do pastor se apertou, condoído daquele infortúnio.

   - Esta é a primeira vez que eu falo com uma filho de rei. Sou apenas um pastor e nada sei além de apascentar ovelhas, mas farei o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo. Meu nome é Hípias, e nasci aqui na Tessália. Estou ao seu dispor. 

   - Obrigado, pastor, mas é impossível aceitar a sua ajuda. O lugar que procuro é por demais perigoso, e não posso nem devo arriscar a sua vida. Seu oferecimento me enternece, porém tenho que prosseguir sozinho. Vamos sentar-nos à sombra daquela faia e conversar um pouco mais. Preciso descansar, e a sua companhia me agrada. Sobram-me, ainda, alguns figos secos e um punhado de avelãs e nozes. Tenho, também, um pouco de vinho. Ficarei muito contente em dividir minha refeição com você.

  A faia escolhida tinha uma copa generosa, e os dois homens se abrigaram confortavelmente. Os figos eram deliciosos, e o vinho, depois de misturado com a água de um regato próximo, ficou suave e refrescante. Hípias ofereceu um pedaço do bolo de trigo que Cimene preparara.

   - Fale-me de sua desgraça - pediu ele, sinceramente interessado.

  A angústia de Orfeu destravou-lhe a língua.

   - Eu sou o mais triste e miserável dos homens, mas, no passado, fui alegre e feliz. Minha vida era boa. Conheci a magia da música e o encanto das nações. Passada meus dias fazendo versos e compondo suaves melodias. Não conhecia o amor, mas viver me encantava. O deus Apolo me presenteara com uma lira da qual eu tirava sons tão maravilhosos que até um dragão caíra dormido ao ouvi-los. É uma lira mágica. Suas cordas vibram de maneira divina e produzem notas jamais percebidas antes no mundo dos homens. Na corte de meu pai, todos se deixavam embalar pelas músicas que brotavam dos meus dedos. Uma vez, sem outra arma que canções, salvei, da morte certa, os heróis de um barco que se iam deixando encantar pelo perigoso canto de sereias dispostas a atraí-los para o fundo do mar. Toquei bem alto, abafando as vozes sedutoras que vinham dos rochedos, e os tripulantes passaram incólumes pelas traiçoeiras mulheres das águas. Ah, pastor, se eu soubesse o que as Moiras me tinhas reservado!... Mas, sem o dom da adivinhação, sem conhecer o que o futuro traria, o sofrimento era impensável. Todas as tardes, eu passeava pelos campos e bosques da Trácia, tangendo a lira mágica. Os pássaros e os animais selvagens me escutavam em silêncio, e as árvores se balançavam no compasso das cantigas. Minha vida era feita de paz e de harmonia. - Um doloroso suspiro brotou-lhe do peito.

  Hípias estava bastante impressionado. Não sabia que alguém rivalizasse com Pã na arte da música. Ele pensava que apenas a divindade selvagem fosse capaz de maravilhar os animais e a natureza com os sons redondos e límpidos de sua flauta de bambu. Apesar de pungente lamento de Orfeu, Hípias implorou-lhe que terminasse a narrativa.

  O príncipe respirou fundo e continuou:

   - Uma vez, decidi caminhar por um local onde jamais havia estado antes. Vi um bosque e me embrenhei por entre as árvores. A mata era convidativamente fresca. Um riacho serpenteava por entre canteiros de flores silvestres, e o murmurar das águas era doce como uma gota de mel. Parecia o lugar mais bucólico da Terra. Pensei que estivesse sozinho, e você bem pode imaginar o meu espanto quando ouvi um coral de cristalinas vozes femininas. A princípio, julguei que o canto não fosse real, e sim produto da minha imaginação exaltada.Mas logo concluí que não. Aquela belíssima mistura de vozes não provinha de um devaneio. O canto era claro e parecia vir de muito perto, talvez da clareira que eu entrevia um pouco adiante. Curioso para descobrir quem cantava de forma tão sedutora, me aproximei sorrateiramente do clarão entre o arvoredo e contemplei, encantado, um grupo de belas mulheres que brincavam de roda. Elas cantavam, alegres como crianças. Mas havia uma jovem, exatamente a mais linda de todas, que não participava da brincadeira. Recostada no tronco de um carvalho à margem da clareira, ela tecia absorta uma grinalda de botões amarelos e brancos. Tinha mãos pequenas e dedos que seguravam delicadamente os finos caules das flores. Compulsivamente, abandonei o meu esconderijo. As dançarinas fugiram à minha aparição, mas a moça que tecia ficou. Levantou o rosto e sorriu suavemente. Nunca, pastor, nunca vi alguém mais atraente. Ela era belíssima... Completa... Irretocável! A mais perfeita inspiração que um poeta pode desejar. Contemplei-a sem dizer qualquer palavra, tal era o meu assombro. Fui tomado da infinita ternura por aquela mulher. Percorreu-me uma sensação inteiramente nova. Percebi que, depois daquele encontro, eu jamais seria o mesmo e que, sem ela, o meu palácio pareceria para sempre vazio. Tive a imediata certeza de amá-la febrilmente e me desesperei ante a possibilidade de não ser correspondido. Mas não, Hípias! Afrodite interferia em meu favor, e vi brilhar, nos olhos da minha amada, um desejo igual ao meu. Havia neles uma vontade de aconchego, de proteção, uma ânsia pelo meu amor. Não nos tocáramos sequer. Nada fora dito. Entretanto, já estávamos unidos para a eternidade. "Sou Eurídice!", falou ela. Caminhei em sua direção e nossas mãos se encontraram. Foi como um toque de gelo e de fogo, uma sensação que arrepiava e queimava, foi como se o resto do mundo tivesse deixado de existir. Havia só nós dois! Que paixão!... Como ela é bela!... De uma beleza que ilumina; ela é incomparável!



Continua....





Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora