...

15 2 0
                                        


   - Não tenho intenção de afrontá-la: sempre fui temente aos deuses. Só o que desejo é resgatar a minha Eurídice e tê-la em meus braços pelo resto da vida.

Apesar de assustada com tanta ousadia, a alma enredou-se na beleza daquela paixão maior do que a morte.

- Que amor o seu!... Não me lembro se amei assim! Vou ajudá-lo do jeito que posso: com conselhos. Primeiro de tudo: não faça confidências; pois elas podem chegar aos ouvidos das Erínias Vingadoras, divindades primitivas que se ocupam em punir os mortais. Elas gozam de muitos poderes aqui no Hades. Também não confie nas palavras demasiadamente ternas e doces que ouvir de um morto. Podem ser enganosas. Algumas almas, inconformadas com a sua triste sorte, se deliciam com a danação alheia e tudo farão para perdê-lo.

- Não se preocupe! Tomarei todo o cuidado – respondeu Orfeu, agradecido.

- Só mais uma coisa – disse a alma -, talvez você encontre uma aliada em Perséfone, a mulher de Hades. Apesar de reinar aqui, ela mantém estreitos laços com o mundo dos mortos vivos: passa um tempo viva na Terra, e o resto, morta no Inferno. Sua história é muito triste, e acredito que ela não é feliz neste reino de sombras. Quem sabe, entenderá o seu pranto, já que sua própria mãe chora por ela no Olimpo.

Aquela informação era maravilhosa e redobrou a confiança do príncipe em resgatar Eurídice. Ele resolveu não agir impensadamente e decidiu que primeiro iria procurar Perséfone.

- Obrigado! – agradeceu ele comovido. – Não me esquecerei de você!

A alma sorriu tristonha.

- Esquecerá sim! Esquecerá!...

DURANTE MUITOS DIAS, Orfeu andou pelas trevas à procura dos Campos Elíseos. Enfrentou perigos, mas não desanimou. Quase caiu no rio das Chamas e, por pouco, não bebeu a água do rio do Ódio por indicação de uma alma traiçoeira. Um pensamento terrível começou a atormentá-lo, algo em que não pensara antes: a possibilidade de Eurídice ter sido, por engano, enviada para aquela planície tenebrosa. Juízes não são infalíveis, e a vida de sua amada poderia ter sido avaliada de modo incorreto. Era melhor procurá-la ali, antes de vasculhar os campos paradisíacos. Passou a buscá-la freneticamente em cada vulto que entrevia. Tentou distinguir seu canto entre os lamentos, seu cheiro doce em meio ao odor dos mortos. Ilidiu-se mil vezes. Chorou mil lágrimas. Abatido, resolveu concentrar-se em achar Perséfone. Encontrou Hécate, a velha divindade da Lua, deusa da magia que habitava o Inferno por vontade própria. Era imponente e soturna. Abordou-a com cautela, pois lhe conhecia a história. Todos sabiam que comandava uma horda de espíritos maus e a enviava ao mundo dos vivos para atormentar os mortais, e também não era segredo que, na lua cheia, visitara a Terra e percorria as encruzilhadas e os sítios de enterramentos, recolhendo as oferendas de comidas e bebidas que os homens deixavam em sua honra. Orfeu implorou-lhe que o ajudasse a achar Perséfone. E a divindade sombria, não se sabe por quê, ensinou-lhe como chegar ao palácio de Hades, o deus do Inferno.

- Fica no coração das trevas brumosas, bem no final dos Campos Elíseos, antes do grande portão fundido por Hefesto. Mas, cuidado, ele é o Zeus Subterrâneo e é implacável com os intrusos que teimam em não respeitar os seus domínios. Siga por este caminho – disse Hécate, apontado para uma certa direção.

Orfeu agradeceu à Senhora das Encruzilhadas e partiu célere, sentindo-se que feliz.

À medida que caminhava no rumo indicado pela divindade, a névoa que cobria a planície dos Narcisos foi se adelgaçando, e o chão, se tornando menos árido. As gretas ficaram cada vez menores, e os funestos lírios negros desapareceram. De repente, não havia mais vento, nem sombras à deriva. Só uma região iluminada por uma tênue claridade dourada. Orfeu compreendeu que estava no limiar dos Campos Elíseos, no lugar do repouso das almas venturosas, na morada de Eurídice.

Entre Deuses e MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora