A menina gritou inconformada:
- Mas por que de Atenas? Por que o rei, seu pai, concorda com um pedido tão cruel?
- Não é um pedido: é uma ordem! Minos é um rei muito poderoso, e vários Estados lhe devem favores. Atenas é apenas um entre muitos. O cretense se vale dessas dívidas para exigir que os reis estrangeiros saldem os compromissos enviando carne para o monstro. Os sacrificados são sempre os mais graciosos adolescentes do reino, sempre quatorze: sete mulheres e sete homens. Meu pai tem a obrigação de pagar este tributo a cada nove anos.
A menina ouvira Teseu com muita atenção; a princípio desalentada e abatida; depois, com crescente indignação. A bárbara história desencadeara, em seu íntimo, uma sensação de revolta até então desconhecida naquela criança pacífica e amável. Se o seu sacrifício era devido à vilania de seu rei, ela, não aceitava morrer. Não mais.
- Por covardia!... Vou morrer por covardia do meu rei!... – gemeu angustiada.
Teseu ficou perplexo: jamais fizera tal juízo de seu pai. A ideia de sacrificar pessoas inocentes não o perturbava. Ele não ia enfrentar o Minotauro por vingança. Matar o touro de Minos era apenas o caminho para a glória que ele tanto ansiava.
- Ilha de Creta à vista! – gritou o vigia.
A trirreme atracou no cais apinhado de curiosos. Lançou âncora e prendeu as amarras. Houve um desembarque silencioso, e a tétrica procissão rumou para o palácio do rei. Teseu caminhava no pelotão dos condenados sem se dar a conhecer aos cretenses. O povo murmurava à passagem do cortejo fatídico. Todos sentiam pena dos que iam morrer, mas se alegravam de não serem eles a saciar o sangrento apetite do morador do Labirinto.
Minos recebeu o tributo de Atenas com uma saudação desalmada:
- Bem-vindos, os escolhidos pelos deuses! Serão enviados ao Minotauro, um a um, em dias consecutivos, mas, até que chegue sua vez, cada sacrificado será considerado como um hóspede bem-vindo e terá todas as regalias que o meu palácio oferece. Quero que todos morram satisfeitos!
As palavras de Minos foram saudadas com aplausos pelos cretenses que assistiam à apresentação das vítimas. Entre estas, contudo, reinava o mais completo silêncio.
Ariadne, a bela filha do rei, olhou atentamente para os adolescentes de rosto triste e percebeu que, no meio deles, havia alguém que não se enquadrava no grupo: um condenado mais velho, de belo rosto e corpo atlético. Por artes de Afrodite, ela imediatamente se apaixonou por ele. Um amor avassalador como nem sempre a deusa dá aos mortais. Não demorou muito para que o forte sentimento da princesa de Creta contagiasse o príncipe de Atenas, e ele se deixou seduzir a ponto de lhe revelar sua identidade e seus propósitos. Ela, então, o amou ainda mais, motivada por tanta temeridade e ousadia. Minos surpreendeu-se quando Ariadne lhe contou a verdadeira identidade de seu apaixonado e não compreendeu como um filho de rei desejava se transformar em pasto de monstro. Mas afastou o assunto raciocinando que, se Egeu queria sacrificar seu filho, o problema era de Atenas e não dele. Logo a surpresa de Minos se transformou em pavor, imaginando que o deus, se estivesse prestando atenção aos acontecimentos em Creta, ficaria irado com a pretensão do ateniense e, para castigá-lo, poderia até mesmo assolar a ilha com a sua cólera divina. Apesar dessa terrível possibilidade, ele, Minos, não se sentia com disposição de enfrentar quem estava disposto a combater o Minotauro. Os campeões da Hélade eram famosos por sua fúria, e o rei achou mais prudente aguardar os acontecimentos sem tomar partido. Era muito provável que o ateniense morresse na empreitada, e que a divindade das águas se contentasse com a morte do desafiante e poupasse o reino.
Ariadne, entretanto, não estava preocupada com o enfrentamento: sua confiança no amado era total. Seu único receio era de que ele não conseguisse escapar do Labirinto e lá ficasse para sempre. Resolveu ajudá-lo, consultando Dédalo. Ele poderia revelar-lhe o enigma do palácio emaranhado. Mas o arquiteto recusou-se a fazê-lo, com medo do rei.
- Meu pai jamais saberá! – afirmou ela.
Convencido pelas grossas lágrimas da princesa e animado com a garantia de não ser responsabilizado, Dédalo finalmente concordou:
- Sair do Labirinto é simples: basta que, ao entrar no palácio do monstro, Teseu coloque, no chão, uma bola feita de um fio de seda especial que você lhe entregará. É um novelo mágico cuja ponta ele deverá amarrar na porta de entrada. Quando ele começar a andar, a bola correrá à sua frente, e o fio se desenrolará e ficará esticado pelos corredores por onde ele passar. O novelo conhece o segredo do Labirinto e correrá em direção ao centro, ultrapassando todas as armadilhas, levando Teseu até o bosque onde mora o Minotauro. Para sir do emaranhado, tudo o que ele tem a fazer é seguir pelos corredores onde está o fio.
Ariadne abraçou Dédalo efusivamente, e ele disse mais:
- O homem-touro só será vencido se trespassado, no cérebro, por seu próprio chifre. Nenhuma arma pode matá-lo.
Os dois conspiradores combinaram que o precioso novelo seria dado ao príncipe à noite, quando todos no palácio estivessem dormindo.
Minos, sem nada desconfiar, sonhou com o esperado sacrifício do dia seguinte e acordou satisfeito, sabendo que os atenienses aplacariam a fome do protegido de Posídon até o próximo ano, e ele não mais ouviria os urros raivosos da esfaimada aberração.
Talvez, no íntimo, ele até quisesse se livrar do monstro, mas não faria coisa alguma para mudar o acordo estabelecido; afinal, todas as vítimas eram estrangeiras. Seus súditos nunca estiveram ameaçados.
Ao se encontrarem na madrugada, Ariadne passou a Teseu as preciosas informações recebidas de Dédalo e, depois, ambos esqueceram o Minotauro e só pensaram neles mesmos.
A pedido do príncipe, ficara resolvido que ele seria a primeira vítima daquela leva.
Na véspera do dia marcado, o homem-touro urrou mais alto do que nunca, babando de antecipado prazer. O monstro corria excitado de um lado para outro, escornando as árvores que lhe surgiam à frente. O povo, estimulado pela barbárie, aguardava a chegada do condenado. Divertia-se ouvindo os barulhos que vinham do bosque do Labirinto. O cortejo macabro que escoltava Teseu surgiu quando Hélios estava a despontar com o seu carro de ouro no lado direito do céu. A princesa de Creta caminhava junto ao herói, para grande espanto da multidão, que gritava e cantava num paroxismo macabro. À entrada do funesto palácio, os amantes se beijaram com ardor. Todos aplaudiram. Depois, o príncipe de Atenas acenou um adeus e abriu a porta fatídica. O ranger dos gonzos desencadeou um frenético clamor de expectativa, logo substituído por um silêncio que reverenciava a morte iminente do estrangeiro. Ainda estimulado pelo horror que se anunciava, o povo se dispersou, pois não era seguro permanecer tão perto do Labirinto.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Entre Deuses e Monstros
SonstigesEste livro retoma o velho tema, sempre novo, costurando, com uma narrativa aparentemente casual e despretensiosa, alguns dos mais belos mitos gregos.