E quanto a Hípias, o mísero mortal, o pastor de cabras sem templos ou estátuas? Ele, o menos importante dos habitantes daquele mundo fantástico, sobreviveu! Sobreviveu aos magníficos e poderosos que eram os alvos de sua veneração; sobreviveu apesar de sua insignificância. Para compreender tal paradoxo, é preciso conhecer a história da misteriosa caixa de Pandora: "Zeus decidiu criar homens para povoar o mundo e ordenou ao titã Prometeu que os modelasse em barro. Uma vez prontos, o deus soprou sobre eles o ar da vida, mas deixou-os entregues à própria sorte. Assim, mortais e sem transcendência, os recém-criados vagaram primitivos e indefesos. Sabiam pouco e possuíam menos ainda. Zeus os queria bem rudes para que jamais tentassem usurpar-lhe o poder através da sabedoria e da excelência. O titã Prometeu, entretanto, desejava-os melhores e ansiava por lhes revelar o segredo do fogo, certo de que a posse da chama seria o primeiro passo para civiliza-los e engrandecê-los. Então, se esgueirou até o Olimpo, furtou um carvão aceso da fogueira de Zeus e o trouxe para a Terra. Dessa pequena brasa, os homens fizeram nascer o seu primeiro lume e depois outro e mais outro e outro. Acenderam archotes, espantaram o medo primordial e ergueram tendas. A cólera de Zeus foi incomensurável e, para castigar o titã, acorrentou-o a um rochedo em alto-mar. Todas as manhãs, uma imensa águia esfomeada surgia do nada e devorara o fígado de Prometeu, porém Zeus imediatamente o reconstituía para que, na madrugada seguinte, ela pudesse reiniciar o seu banquete interminável. Mas o deus queria punir também a humanidade e, para isso, concebeu um plano ardiloso: ordenou a Hefesto que fizesse uma mulher de argila e à Atena que lhe desse o dom da vida. A criatura ficou maravilhosa e foi levada ao Olimpo onde Zeus lhe entregou uma caixa. "É sua!", disse ele. "Guarde-a fechada e jamais tente abri-la. Não procure saber o por que; em vez disso, alegre-se por ser a mulher perfeita que é." Pandora – este era o nome da mulher – perdeu-se em tão grande curiosidade, a que resistir foi-se tornando cada vez mais difícil. Uma noite, ela apanhou a caixa e abriu-a sem qualquer escrúpulo, deixando escapar o seu conteúdo sinistro: a fome, os sofrimentos, as doenças, a peste, os crimes, as guerras, os vícios e muitas outras torpezas. Compreendendo o mal que havia feito, a mulher rapidamente fechou a caixa maldita, mas as perversidades já se tinham espalhado por toda a Terra, e a humanidade começaria a sofrer. Zeus conseguira o seu intenso. Mas aconteceu um imprevisto: restou, na caixa, um grão de esperança que estivera misturado ao conteúdo sinistro e que, mesmo ficando aprisionado, conseguiu germinar e crescer. No devido tempo, ele escapou pelas frestas e deu à humanidade a confiança, a fé e a coragem necessárias para enfrentar a tragédia que se abatera sobre ela. E foi dessa esperança que se valeu Hípias para sobreviver, agarrando-se a ela com extraordinária vontade, mesmo quando ela lhe parecia frágil e fugaz, mesmo nos momentos em que ele padecia com os tormentos saídos da caixa de Pandora. A esperança salvou-o.
Ao contrário dos heróis, das deidades e dos monstros da Hélade, Hípias vive até hoje. Vive desdobrado nas muitas gerações de filhos dos filhos de seus filhos.
Aqueles tempos são, hoje, apenas fantasia, mas o homem é concreto e real. Entretanto, que ele se acautele, porque de suas ações depende a possibilidade de haver um amanhã que lhe confira eternidade. Sem isso, ele poderá vir a ser como um deus olímpico: poderoso, mas transitório.

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Entre Deuses e Monstros
RastgeleEste livro retoma o velho tema, sempre novo, costurando, com uma narrativa aparentemente casual e despretensiosa, alguns dos mais belos mitos gregos.