Havia flores em profusão, regatos que corriam marulhando e árvores frondosas, carregadas de apetitosos frutos. Era uma paisagem acolhedora, onde os risos se mesclavam aos cantos dos pássaros. A morte, naquele paraíso, não intimidava nem constrangia, e as almas que ali estavam não vagavam sem rumo como as outras, tinham um propósito: desfrutar as delícias daquele lugar. E, entre sorrisos, elas o deixavam passar, tornando-o por um igual ,tal o brilho que ele irradiava. A certeza da proximidade de Eurídice dera-lhe uma aura que os espíritos confundiam com os seus próprios fulgores de bem-aventurança. A débil claridade que bruxuleara no portal de entrada se havia transformado numa luz forte e cálida. Ali era sempre dia, sempre o esplendor de Hélios. Ele caminhou decidido, procurando a morada de Hades. Viu, ao longe, altas torres que resplandeciam. Não podia haver erro: era lá que acharia o Senhor dos Mortos. Grande paradoxo: o deus das sombras vivia cercado de luz. Orfeu sorriu e pensou: que mortal pode entender os caprichos das divindades? Mais um pouco, e chegou ao grande portão de Hefesto, que misteriosamente se abriu para lhe dar passagem. Ninguém foi ao seu encontro. Orfeu continuou seu caminho, orientado por uma força invisível. Andou por corredores e salões e finalmente chegou a um imenso espaço onde deu com Hades e Perséfone. Viu-se frente a frente com eles. O mortal confrontando as divindades. O deus, sentado em seu trono de ouro, saudou-o à sua maneira, falando numa voz grave e austera:
- Estávamos à sua espera, Orfeu! Que temeridade invadir os meus domínios, você, cuja hora ainda não chegou! Por acaso não me reverenciam na Trácia? - A voz da divindade adquiriu um tom que fez tremer o chão. – Sua petulância beira o absurdo. Se o meu reino o fascina a ponto de o fazer desafiar a mais importante de todas as regras, é melhor que fique aqui para sempre. No Tártaro!
Orfeu replicou:
- Foi tudo por Eurídice, poderoso deus! Jamais tentei desafiá-lo.
Hades levantou o cetro, pronto para fulminar o petulante, quando, inesperadamente, Perséfone interferiu, segurando-lhe o braço e impedindo que ele o abaixasse. A morte apenas roçou o corpo do príncipe.
A Rainha do Inferno voltou seus tristes olhos para o homem que tudo arriscara pelo amor de uma mulher e pediu-lhe docemente:
- Fale-me dela, Orfeu!
Ele não se fez de rogado e contou a sua dolorosa história. Relembrou o seu primeiro encontro com a mulher amada, os dias felizes que viveram juntos, a pavorosa noite da tragédia, o seu desespero, a inutilidade de sua vida desde então, a sua ousada decisão de descer ao Inferno. O tom desalentado mostrava toda a desolação que o consumia.
- Sem Eurídice, o fogo do Tártaro nada significa para mim – concluiu. – Queimo de amargura em meu próprio palácio.
Perséfone comoveu-se, pois conhecia a dor terrível provocada pela separação da morte. Tentou convencer Hades a deixar partir Eurídice, mas ele foi inflexível. Era preciso preservar a integridade do seu reino.
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Entre Deuses e Monstros
AcakEste livro retoma o velho tema, sempre novo, costurando, com uma narrativa aparentemente casual e despretensiosa, alguns dos mais belos mitos gregos.