Lúcifer

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Havia se passado dois dias desde que eu tinha deixado Sioux Falls para trás. Dois longos e tortuosos dias pegando a estrada e parando em uma cidade diferente por noite, encarando os mais diversos tetos, dormindo nas mais variadas camas e fitando os mais diferentes rostos de desconhecidos enquanto já estava há milhas de distância daqueles que eu considerava como minha família. E ao que parecia, os selos enoquianos que eu havia aprendido a fazer estavam surtindo efeito, já que Castiel ainda não havia me encontrado. Eu queria tanto poder vê-lo, tocar seu rosto, explicar o porquê daquilo, mas acho que ele não concordaria e eu tinha medo que tentasse algo estúpido como o episódio do Purgatório.

Grunhi e arrastei as mãos pelos cabelos. Talvez se eu conseguisse que me odiasse, ficaria mais fácil, afinal.

— Alguém se rebelou e caiu na estrada. Livre e selvagem. — constatou a voz de Lúcifer, aparecendo de repente no lado que estava sobrando do colchão. Estreitei os olhos e permaneci sem encará-lo, pois achava que se fizesse isso poderia perder o resto de paciência que me restava.

— Vá embora. — rosnei e o anjo usou os dedos para titubear pelo lençol esticado até a minha coxa.

— Você está completamente sozinha e ainda pede que a sua única companhia desapareça? — duvidou em tom de deboche e eu me afastei de suas mãos, aproximando-me mais da pequena cômoda com manchas de copos molhados.

— Prefiro conversar com os ratos ao olhar na sua cara.

— Isso é um tanto rude. — apontou, ajeitando o peso do corpo sobre o cotovelo e esticando o braço para puxar uma mecha do meu cabelo. Bufei, irritada com as tentativas dele, desviando do toque com um tapa no ar. Se Lúcifer queria me irritar, definitivamente havia conseguido.

— Você já acabou com a minha vida, o que mais você quer de mim? — disparei, me sentando bruscamente no colchão e olhando profundamente em seus olhos verdes e juvenis que escondiam tão bem uma crueldade inimaginável. — Eu não entendo o porquê disso. É alguma espécie de jogo para me enlouquecer? Não tem nada mais divertido para fazer?

— Por que você gosta tanto de me culpar pelas tragédias da sua vida? Tudo que eu fiz até agora foi ajudar você. — gesticulou ao me ver ficar de pé e andar sobre o tapete azul e felpudo que cobria a maior parte do quarto minúsculo do cortiço onde eu havia me hospedado graças a minha habilidade de "obter" dinheiro de pessoas desavisadas.

— Por que você tem um bom coração, suponho. — comentei irônica e o anjo me fitou com seriedade.

— Talvez eu tenha. — falou, cruzando os braços contra o peito. Abri a boca com descrença e ironia, essa definitivamente devia ser a piada do dia. Ou melhor, do milênio.

— Ah! Quer mesmo tentar me convencer disso? Logo você? Lúcifer? — comecei, não conseguindo conter uma gargalhada enfática. Ele franziu os lábios com tédio diante do gesto. Então uma ideia me surgiu à mente, uma maneira de extravasar um pouco da raiva e indignação que eu estava sentindo sobre tudo que estava acontecendo. Um jeito de fazer com que Lúcifer provasse um pouco do próprio veneno, mas, de fato, eu não achava que ele se importaria. Afinal, não tinha sentimentos por nada e ninguém. — Mas já que estamos aqui e temos um tempo indeterminado juntos para compartilharmos experiências, porque não me conta as suas? — andei até o mesmo como quem não quer nada, esperando uma resposta.

— Acho que você não gostaria de saber, Estherzinha. — o anjo deu de ombros, afastando-se até o espelho grande e sujo que havia na parede próxima a janela, ajeitando o cabelo loiro de diferentes formas.

— Vamos, não seja tímido. — insisti, escorando um braço contra a estante ao lado de onde ele estava. A verdade é que eu não havia falado com ninguém e muito menos me deixado pensar sobre o que aconteceria comigo desde o momento em que decidi deixar Sioux Falls, os Winchesters e Castiel para trás. Eu estava querendo um jeito de colocar um pouco da mágoa para fora e o bode expiatório da vez seria... — Como foi ser jogado lá de cima por Miguel depois de ser um tremendo de um bundão que não gosta de receber ordens do papai? Deve ter sido horrível para você. E segundo as histórias, você era o anjo mais lindo do céu, mas quando caiu se tornou um monstro. Como você é de verdade, Lúcifer? — questionei me aproximando do mesmo, que tentava se concentrar no que estava fazendo. — Quando não está se escondendo atrás de rostos de adolescentes, claro.

Supernatural: RéquiemOnde histórias criam vida. Descubra agora