PRÓLOGO

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Donovan

Passava do meio dia, mas o silêncio no apartamento indicava que ela ainda dormia. Tínhamos chegado bem tarde, depois da festa na noite anterior, quase cinco da manhã. Mesmo assim, nunca entendi muito bem aquela estranha necessidade que Carlie tinha de dormir por tantas horas. Mas o prazer de poder me sentar e observá-la, tão vulnerável em seu sono, fazia-me agradecer a Lilith por conceder-me esses momentos.

Caminhei pelo corredor e empurrei a porta entreaberta à minha frente. Ocupei a cadeira confortável que ela mantinha próxima à cama e esperei, pacientemente, na penumbra do quarto.

Meia hora se passou, até que ela finalmente deu sinais de que estava prestes a despertar. O corpo, antes tão sereno e totalmente imóvel, voltou a produzir um leve movimento, simulando respiração. Mais alguns segundos e me vi encarando aquele imenso par de olhos azuis, penetrantes.

― Bom dia, princesa!

Carlie resmungou um bom dia preguiçoso, que se misturou ao som de um gemido, como quem se recusa a despertar completamente.

― Está aqui há muito tempo?

― Um pouco.

― Então, é porque precisa me dizer algo importante ― ela afirmou, sentando-se na cama. — É sobre a viagem, não é?

― Talvez eu demore um pouco mais dessa vez.

― Pretende me deixar sozinha em São Paulo por um período longo?

― Essa ideia não me agrada, princesa, mas é preciso. Existem algumas questões na Europa que exigem minha atenção. Não posso permitir que os problemas cheguem até aqui. Prejudicaria nosso estilo de vida. Entende?

― Acho que sim, mas isso não muda o fato de que vou sentir sua falta ― Carlie se queixou como uma menina manhosa. ― O que vou fazer aqui sem você, Don?

Detestava ser obrigado a me afastar dela por tanto tempo e vê-la com aquela expressão desolada cada vez que eu viajava sozinho, como se temesse o dia em que eu não mais retornasse, fazia-me sentir ainda pior.

Nunca passamos mais de duas ou três semanas separados, porém eu sabia que dessa vez seria diferente. Não diria isso a ela, mas a possibilidade de que não conseguisse voltar ao Brasil pelos próximos meses era real.

O aviso de Lorde Bran era preocupante. Yuri estava obcecado com a ideia de me encontrar e levar de volta. Chegou a mencionar que me queria novamente à frente da Among Us, caso contrário, preferia me ver morto.

Na cabeça daquele vampiro arcaico, Carlie era a culpada por meu afastamento da organização, o que tornava a Europa um campo minado para ela naquele momento. Lorde Bran foi bem claro. Era imperioso meu retorno o mais rápido possível e não podia sequer cogitar a possibilidade de levá-la comigo. Além disso, o tempo de sua maturidade estava se aproximando e eu precisava tomar algumas providências para que ela fosse aceita formalmente em nossa sociedade.

Mais que inferno! Até nisso aquele velho arrogante me atrapalhava.

Agora, além das providências habituais para a apresentação de Carlie ao Conselho dos Clãs, ainda precisaria aplacar a fome de poder de Yuri. Só assim não teria que me preocupar com sua segurança, quando a levasse de volta para a Dinamarca. Isso me tomaria um tempo precioso. Tempo que deveria ser gasto preparando-a.

― Não faça essa carinha, por favor! Serão apenas algumas semanas e deveria estar feliz por se livrar de mim. Não é você mesma que vive dizendo que ocupo muito espaço em sua vida? Então, aproveite a oportunidade.

― Sabe que reclamo, mas não consigo ficar longe de você. Detesto quando faz essas viagens longas.

― Eu sei ― respondi, deixando a cadeira e me sentando na beira da cama. Enlacei sua cintura, estreitando seu corpo em um abraço. ― Prometo que quando voltar a compensarei por cada dia de ausência. Mas, até lá, quero que se cuide. E se precisar de alguma coisa, sabe o que fazer.

Carlie

Alguns dias depois...

Passava de uma da manhã quando estacionei o BMW branco na garagem, nos fundos do pequeno prédio de três andares com fachada de granito negro e vidro fumê, onde era possível ver um discreto e elegante letreiro com os dizeres: Organizações Paraíso. O vigia noturno que estava de plantão, um homem moreno, alto e com cara de poucos amigos, saiu imediatamente de sua guarita e caminhou em minha direção, aproximando-se do carro.

― Boa noite! Estávamos esperando pela senhorita ― falou ao abrir a porta para que eu descesse.

― Boa noite, Paulo! Hoje serei breve. Não se preocupe com a vaga.

Dei a ele um de meus sorrisos cordiais e segui para a pequena entrada secundária do edifício, onde sabia que a porta já se encontrava aberta à minha espera. Entrei, segui pelo pequeno corredor até o elevador de carga e subi para o terceiro andar. Como era de se esperar, àquela hora não havia ninguém à vista. Dirigi-me até a sala que ficava no final do corredor, onde ficava a porta de acesso restrito apenas para pessoal autorizado. Girei a maçaneta e entrei.

A sala era pequena, porém decorada com elegância. Uma estante com alguns livros de registro, um pequeno armário e uma grande tela a óleo, original, que com certeza poderia estar exposta em um dos importantes museus espalhados pelo mundo.

Atrás de uma pesada mesa de mogno avistei a recepcionista, que já me aguardava.

― Boa noite, senhorita Carlie!

― Olá, Rosana! Minha encomenda está pronta? ― perguntei, retribuindo o sorriso.

― Como sempre. Só um minuto que vou buscar.

Aguardei, enquanto ela sumia atrás de uma pesada porta de aço, praticamente escondida por detrás da estante, e que dava acesso a uma sala frigorífica. Logo ela retornou, trazendo uma pequena maleta térmica.

― Aqui está. Tudo conforme a senhorita pediu. Só preciso que assine aqui, por favor.

Assinei a ficha no local indicado e esta foi imediatamente guardada em uma pasta que estava sobre a mesa. Dei um tchau para Rosana e me retirei do prédio, levando a maleta comigo. Entrei no carro e dirigi de volta até meu apartamento, cruzando a cidade que, àquela hora da madrugada, tinha um trânsito bem mais leve do que o habitual.

Já em casa, retirei o conteúdo da maleta térmica e acondicionei cuidadosamente em um refrigerador na cozinha do apartamento, que fora usada em raríssimas ocasiões.

Aquele suprimento seria suficiente para me sustentar por duas semanas. Não haveria necessidade de uma nova visita a Casa Paraíso nos próximos dias. A não ser, é claro, que fosse convocada para alguma reunião, o que era raro acontecer, já que Donovan costumava cuidar de todas as obrigações burocráticas que me envolviam.

Comonão havia mais nenhum compromisso para a noite, fui para o quarto, despi asroupas, enfiei-me embaixo dos lençóis e adormeci.

M.A.D.E. Primeira Geração - série Mais Além da EscuridãoOnde histórias criam vida. Descubra agora