Despertar

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A paisagem familiar ainda era doce aos meus olhos quando passei correndo pelo declive da floresta na companhia de David, a alegria dos longos passeios de final de tarde ainda impressa em nossos rostos. Então paramos repentinamente na porta de casa. Vazia. Além do cheiro de Joseph, outros rastos frescos e estranhos se encontravam pela entrada. Olhamos um para o outro, temerosos. Os acontecimentos a seguir vieram a um jato fantasmagórico; imagens rápidas que pareciam compostas de fumaça, que sumiam ligeiras seguidas por outras – a corrida impetuosa, o choque da surpresa, a cena paralisante, a crueldade dos visitantes, a ira em meu corpo, a luta rápida e violentamente cessada. A última, em vez de se esvair, se manteve, a tempo suficiente para que eu pudesse desfrutar de seu deleite doloroso: os pedaços de Joseph no chão sendo transformados em uma fogueira.

Horrorizada com a triste visão, virei-me para fugir, mas o chão embaixo de meus pés se abriu e eu caí no negro profundo daquele espaço, com um grito agonizante em meus lábios e a mão estendida para a luz, rezando desesperadamente para que alguém me puxasse. O breu se fechou sobre mim e o grito se calou.

 O breu se fechou sobre mim e o grito se calou

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Acordei no susto. No arfar rápido de minha respiração, tentei me acalmar enquanto sentia as lágrimas se acumularem nos cantos dos olhos. Sentei na cama, vendo-me outra vez em uma luta perdida contra o choro. O relógio na mesa de cabeceira anunciava ser duas e meia da madrugada, a chuva caía forte lá fora e eu sabia que não conseguiria voltar a dormir tão cedo. Soltei um suspiro pesado de decepção; queria que fosse pelo menos nove da manhã – o que era demais a se esperar quando se ia dormir às sete. Ri sozinha, sarcástica. Era uma verdadeira pena que soníferos e drogas do tipo "Boa Noite Cinderela" não funcionavam comigo – se funcionassem, eu me tornaria a própria Bela Adormecida e viveria em um sono imutável.

Era mais fácil enfrentar os pesadelos ao dormir do que encarar os fatos acordada. A culpa era minha. Aquilo não era nada menos do que eu merecia.

De olhos fechados, como se pudesse assim impedir as lágrimas de transbordarem, estendi a mão pelo ébano do quarto, encontrando facilmente o interruptor e enchendo o quarto de luz. Olhei em torno. Pelo menos desta vez não havia quebrado nada enquanto dormia – a tequila tinha tido efeito, felizmente. Abracei as pernas, encolhendo-me em uma bola e continuei com o exame curioso aos detalhes de meu quarto. Comecei pelas portas ao sul, as quais a da esquerda dava entrada para o closet e a da direita ao banheiro. Depois a parte oeste, onde se encontrava a saída para a sacada com a mesa do computador à direita. Sobre a superfície lustrosa de marfim, perto do monitor, havia porta-retratos com fotos de Dave e eu na Disneylândia – em um dia chuvoso, é claro – e partituras de minhas composições espalhadas de forma desordenada.

Tentei engolir o nó que inchou na minha garganta ao olhar aquelas fotografias e prossegui. No alto da mesa, um pouco mais à direita, estava meu quadro pintado com tinta a óleo, uma cópia perfeita de meu rosto no outono de 1917. Nele, eu aparecia com meu vestido favorito, o branco com fita de seda verde-jade na cintura e a saia longa revestida de renda, com um chapéu bem típico da moda da época combinando. Eu lembrava nitidamente do dia em que foi pintado. Eu estava usando sapatilhas por debaixo do vestido – sempre odiei usar salto, apesar da minha mãe me obrigar a usá-los com frequência – e não conseguia passar dois minutos sem coçar as mãos escondidas naquelas luvas de renda, que pinicavam feito formigas. Apolo, o cão filhote cor de areia que eu trazia nas mãos, não fez muito para facilitar a situação; ficava se revirando e dando mordidinhas no meu polegar o tempo todo, tornando quase impossível manter a pose refinada de uma Masen que Elizabeth exigira de mim – eu ainda podia sentir seu olhar me recriminando, como se a culpa do meu cachorro não saber posar para um pintor fosse minha. Sorri um pouco ao lembrar de Apolo – ele era uma bola de pelos. Vivia mascando os sapatos de meu pai e...

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