A fogueira

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Testemunhar os restos de Joseph sendo lambidos pelas chamas arrancou o que havia de mais hediondo em mim. Gritei o mais alto que podia, a dor crescente servindo de combustível para o ódio indomável que regia meus poderes; a terra tremeu sob a campina e só o que consegui enxergar foram os pescoços daqueles dois desgraçados – os assassinos da Guarda Volturi – tingidos pelo carmim que tomou meus olhos.

Lancei-me para eles em um salto, mas fui interceptada pela névoa branca e doentia de Alec. Ela espiralou pelos meus calcanhares, obrigando os sentidos aos poucos a me escapar, contudo nem o torpor foi o bastante para me deter – arrastei Alec pelo pescoço até onde eu estava e o envolvi com meus braços flácidos, as mãos tateando sua pele marmórea até duplicar seu dom. De súbito, estávamos os dois ajoelhados na relva molhada, nos encarando furiosamente enquanto em torno de nós névoa digladiava contra névoa, poder contra poder.

Eu estava a ponto de derrotá-lo quando fui brutalmente puxada pelos cabelos para longe de Alec; David me firmou de pé e não precisou de mais que um olhar para me instruir. Corra, disseram o ouro maciço de seus olhos. E eu obedeci sem pestanejar. Corri e não parei até o cair da noite e da tempestade de neve. Encolhi-me sob os galhos um pinheiro e solucei. Doía. Doía mais do que eu imaginava ser possível. Doía mais do que eu podia suportar.

David lidou com a dor de uma forma diferente – nele, o luto despertou selvageria. Certamente os sons dos seus golpes nas árvores podiam ser ouvidos além da floresta. Entretanto, quando a ferocidade se aquietou, algo mais sombrio assumiu o controle. Algo que fez com que um calafrio subisse em dedos gélidos por minha coluna e meu senso de autoproteção se armasse em defesa.

— Anna, olhe para mim – exigiu.

Ergui os olhos para ele, confusa. Anna, não Anne. Joseph e David me tratavam por Anne desde a noite em que nos conhecemos em Moscou e eu não me lembrava de uma única vez que tenha sido diferente. Aquela pequena alteração era o primeiro indício que tive de que algo havia mudado – e de forma irrevogável.

—Eles queriam você— sussurrou em voz baixa e magoada, porém o golpe fez sua voz suave soar como um grito estridente. – Vieram até nós por você. Mataram Joseph por você.

O ar fugiu de mim. Ofeguei e, por mais improvável que fosse, comecei a sufocar. Eram palavras ríspidas, incisivas feito o corte de uma espada... mas verdadeiras. Aro Volturi era um colecionador, eu era uma peça rara a ser conquistada e Joseph não passava de um obstáculo nesse caminho. Um empecilho a ser descartado – e de fato foi.

— Desculpe – supliquei, pois sabia que não havia mais nada a se fazer.

Foi o estopim. Antes que eu pudesse pensar, David se aproximou em um borrão fantasmagórico e me suspendeu no ar com os dedos cravados no meu pescoço, os olhos em pedra tão frios como a própria neve que caía, a boca retorcida de repúdio. Nunca o tinha visto assim antes. Aquele era um completo estranho, alguém que me apavorava.

— Suas desculpas não o trarão de volta! – berrou. – Perdi meu pai por sua causa!

Joe era meu pai também, eu quis argumentar. Mas não o fiz. Não lutei, não reagi. A razão estava com ele – se quisesse me destruir, teria todo o direito. Fechei os olhos e aguardei pela morte ao que seus dedos comprimiam com mais determinação e por um segundo, pude ouvir o ruído da minha pele trincando, o pó se desprendendo dela.

— Não. – O aperto afrouxou. – Não vou matá-la. Isso seria muito fácil, e a morte lhe seria um alívio. – Ele me atirou contra o pinheiro feito um saco de lixo fétido; a árvore se sacudiu violentamente antes de derrubar uma pilha de neve e em seguida tombar. – Quero-a viva para lidar com a responsabilidade. Quero ver o remorso por anos a fio nos seus olhos. Quero vê-la perecer.

Estrela da TardeOnde histórias criam vida. Descubra agora