Segredos

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Não levou mais do que uma semana para que eu me adaptasse à rotina totalmente sem graça e enfadonha dos Volturi. Do mesmo modo que era inconcebível para mim que alguém suportasse passar a eternidade fazendo vários nadas, foi ali, vivendo entre os inimigos, que eu comecei a entender como eles conseguiam fazê-lo. Era entrar em um círculo vicioso. Era se abrir para cada dia com a sensação de já ter visto aquele filme, criar expectativas de ver algo novo à medida que as horas corriam e se frustrar quando as badaladas do relógio anunciavam a meia-noite, tudo para repetir a mesma falta de emoção no dia seguinte. Poderia se passar um mês ou um século, e não notar a diferença. Claro que havia o fato da minha noção dos dias ser distinta da deles, uma vez que eu dormia e eles não, e tinha o agravante do dom de Chelsea de fortalecer laços para fazê-los se sentirem comprometidos a permanecer em Volterra, inteiramente fiéis a causa, mas bastou uma única semana para que eu compreendesse o apego excessivo deles com as leis. Era a única alegria que eles tinham de fato.

A maior parte da Guarda seguia as mesmas práticas habituais; durante as horas de Sol, eles continuavam impecáveis na segurança de seus senhores e para as noites havia uma escala para quem quisesse sair da fortaleza – que fosse para caçar longe de Volterra, passear ou por qualquer outra razão –, mas era raro que se dessem ao trabalho. A função de Heidi era justamente atrair presas e todos pareciam acreditar que o mundo não tinha nada que valesse sua atenção para distrai-los, então a maioria optava pelo confinamento. Às vezes, era possível encontrar dois ou três deles no salão de treinamento aprimorando suas capacidades de luta, porém não era algo frequente. O comparecimento nas técnicas de autodefesa, quando muito, era uma obrigação anual. Eles todos se contentavam em contemplar a própria divindade, e só.

Tive que encontrar a minha própria programação dentro disso, por mais que ninguém tivesse sido idiota o suficiente para tentar me impor limites. Igual a qualquer outro vampiro que se associava aos Volturi, foi me cedido um aposento refinado em um dos torreões – o mais isolado que encontraram, que claramente foi organizado às pressas na inclusão de uma cama – e eu procurava dormir o máximo que podia, com a tranquilidade de quem conhecia plenamente seus inimigos para saber que não havia entre eles um que fosse com colhões para tentar me matar durante o sono. Quando eu inevitavelmente acabava acordando, vestia a primeira porcaria que estivesse no armário e ia passear sem vontade pelas praças ensolaradas de Volterra – ainda que me evitassem pelos corredores e, no geral, colocassem uma distância segura entre eu e eles, era bom tragar ar puro para os pulmões. Fazia o mundo ao meu redor parecer um pesadelo desordenado e me dava a sensação de que não faltava muito para que eu despertasse.

Não esperei nada muito diferente quando saí da cama naquela manhã – dado os meus anos de experiência com a depressão, ser desprovida de esperança não era nenhuma surpresa. Meu rosto estava seco, ainda que todas as noites eu chorasse em segredo até dormir, e meu corpo estava impecavelmente descansado, apesar das horas conturbadas na inconsciência. Meus pesadelos estavam piores do que nunca e, de um modo irônico e mordaz, isso não parecia estar afetando o meu desempenho físico ou a disposição dos meus poderes – algo nunca, nunca visto antes, muito menos sem a ajuda de uma bebida alcoólica. Eles permaneceram perfeitamente sob controle desde a minha chegada em Volterra e eu tinha absoluta certeza de que era por influência do monstro – não que eu estivesse reclamando ou que fosse chegar a reclamar. Apenas... era estranho que eu estivesse tão saudável, sem vestígios de sangue, sem desmaios, sem surtos involuntários ou afins, mesmo depois de ter usado tanto poder.

Andei com passos leves até o guarda-roupas e me troquei conforme analisava o quarto; de fato, estava tudo no lugar, do jeitinho odioso como David havia deixado. Não era preciso ler pensamentos para concluir que ele havia sido o responsável pela decoração – do lustre do teto, do papel de parede, das cadeiras forradas de veludo até a lareira, tudo era ridiculamente inglês. Eu estava terminando de escovar os cabelos, sentada diante da penteadeira, quando escutei seus três toques tímidos na porta; David entrou empurrando um daqueles carrinhos de hotéis entupido de comida e parou ao lado da mesa de café, esperando que eu acabasse de me aprontar. De início, haviam cogitado Gianna para o trabalho de risco de ter que conviver comigo em tempo integral, mas por fim chegaram à unânime conclusão de que David era o culpado de ter trazido o Cavalo de Tróia – vulgo, eu – até a fortificação dos Volturi, portanto nada mais justo do que deixa-lo incumbido de suprir minhas necessidades e atender a todos os meus caprichos. Eu não poderia estar mais de acordo; sua presença podia causar espasmos frequentes de asco, porém havia um prazer cruel em vê-lo no papel de criado.

Estrela da TardeOnde histórias criam vida. Descubra agora