Redenção

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Os contornos das árvores que nos cercavam viraram borrões indistintos à medida que avançávamos floresta adentro. Seus tons de verde e marrom se perdiam em meio ao escuro quase que completo sob o céu sem Lua. A única luminosidade que recaía sobre nós era a que provinha das estrelas, e elas eram numerosas; espalhavam-se pela vastidão do firmamento, que se dividia entre um azul-marinho e o roxo profundo, feito os cristais da mais preciosa tapeçaria. Seu brilho pálido abraçava de modo tímido a copa das árvores, sendo talvez sutil demais para os olhos humanos, mas eu tinha certeza de que até eles conseguiriam apreciar a beleza singular. Era como se o universo, com todas as suas estrelas e planetas, nebulosas e nuances coloridas, estivesse se colocando ao alcance de nosso toque, separado apenas por poucos metros.

Distraí-me ligeiramente fitando o alto através das frestas dos galhos. Eu podia contar nos dedos as vezes que vira uma noite assim tão bonita. Pareceu-me até um tanto profético, embora injusto, eu contemplar uma paisagem como aquela depois de ter vencido uma batalha. Injusto porque, por mais deslumbrante que fosse, não era a noite que prendia a minha atenção.

Encarei David à esguelha pelo que calculei ser a sétima vez, sorrateira como um lince, apesar de ele estar metros adiante e não ter como flagrar o meu olhar. Ele corria livremente à esquerda, os sapatos engraxados mal encostando na vegetação ao passar, e vez ou outra eu pensava ter vislumbrado a sombra de um sorriso na sua bochecha. Apertei o cenho mais fundo. Se a dualidade entre eu e o meu lado animal estava resolvida, o conflito entre meus sentimentos por David mostrou que não estava – uma descoberta que não me deixou exatamente satisfeita, dado que eu já dava o assunto por encerrado. Eu apenas... não tinha definição alguma para o que estava sentindo. Tinha convicção de que meus sentimentos antigos haviam ficado no passado – sepultados, como eu afirmara a ele –, mas não havia como negar a existência de algo. Se não era um sentimento esquecido que fora reavivado, era um sentimento inteiramente novo.

Isso não somente me intrigava, como me aborrecia. Muito.

Eu sabia que havia gratidão. Não havia meios de esconder isso de mim mesma. David me impediu de concluir o ato que apagaria qualquer rastro de humanidade que eu pudesse ter, e por mais que eu ainda quisesse dizimar cada vampiro que se atrevesse a levantar o emblema dos Volturi, era libertador ser racional o bastante para decidir não me sujar com a sujeira deles, não me permitir sucumbir aos instintos. Eu não era uma assassina – era uma sobrevivente.

Entretanto, gratidão não era o suficiente para me acorrentar a ele. Não era o que me impelia a segui-lo de volta à Bergen. Enquanto corria em seu flanco, cheguei a conjecturar por um breve instante que esse senso de obediência se devia à promessa – a maldita promessa que eu lhe fizera quando parti de Forks – e a despeito de esse pretexto ter me convencido de início, já que eu jamais daria a minha palavra em uma promessa que não me esmerasse para cumprir, descartei a alternativa logo que parei para analisar melhor. Além de não ser a primeira teoria em que eu pensava, não explicava a gradativa sensação ansiosa ebulindo na boca do meu estômago. Como se estivesse à expectativa de alguma coisa.

A viagem de retorno à Noruega não foi necessariamente uma das mais fáceis, apelando para eufemismos. A princípio, deduzi que cortaríamos por dentro do continente, que apesar do desvio imenso nos pouparia de ter que atravessar o mar, porém David rumou direto a noroeste em direção a Suíça. Meu primeiro pensamento lógico foi que ele planejava parar em algumas das cidades maiores ao amanhecer – talvez a própria Zurique ou Berna – para tentar acessar alguma de suas muitas contas bancárias e nos comprar passagens de avião ou, provavelmente, fretar um jato particular de novo, mas à proporção que o Sol surgia no horizonte e as horas corriam mais depressa, nós nos distanciávamos cada vez mais das áreas de elevada densidade populacional para atravessar as regiões montanhosas dos Alpes. David até poderia alegar que tencionava se esconder dos humanos, afinal, não havia nuvens no céu e sua pele refletia a luz feito um cristal iridescente, no entanto minha intuição estava longe de confiar nessa alternativa. Se eu bem o conhecia – e isso era sempre questionável –, David estava tentando procrastinar. Não teríamos que começar um diálogo se estivéssemos correndo.

Estrela da TardeOnde histórias criam vida. Descubra agora