Improvável

Prólogo - Uma Tempestade Se Aproxima

Tudo desmoronara. Minha vida estava acabada. Eu até podia lidar com o fato da minha empresa que tanto lutei para crescer ter sido engolida pelo mercado e falido, deixando-me atolada de dívidas. Podia lidar com o fato de José ter me traído e me trocado pela diretora executiva de uma empresa rival, que por acaso era minha inimiga jurada. De meu apartamento ter sido destruído num incêndio, e como eu não tinha seguradora, estou sem teto. Da minha cidade ter sofrido um surto de uma peste e um terço da população ter sido dizimada, eu sempre fui muito sensível, e ver pessoas literalmente caindo no meio da rua mortas não era exatamente o melhor para meu psicológico frágil.

Mas ter perdido meu valioso cachorro, o Doug, que vinha sendo minha única e verdadeira companhia nos últimos 10 anos? Isso é demais para suportar...

Tive que fugir daquele ambiente opressor. Estou andando há dias a esmo, não tenho nem um único tostão, nem mesmo sei onde estou. Estou realmente acabada, nem mesmo me importo com as coisas que podem vir a acontecer comigo. Ser abusada por algum estranho não seria novidade devido a meu conturbado passado de dependente química. Agora nem mesmo nas drogas consigo encontrar algum conforto...

— Onde estão vocês, deuses cruéis?! — Berrei para a estrada vazia de terra em que eu estava andando, que cortava uma floresta. — Estão gostando de me ver morrer pouco a pouco?!

Não tive nenhuma resposta. Mas vi uma menina de cerca de sete anos saindo da floresta. Ela estava carregando uma moringa de água.

Eu não via outra pessoa há muito tempo, por isso fiquei paralisada. O que eu deveria fazer? O que eu falava? Eu deveria falar algo?

Ela veio andando em minha direção e parou na minha frente. Colocou a moringa de água no chão e gritou para trás.

— Pessoal, venham ver isso!

Algumas crianças saíram da floresta. Eram umas oito. Todas pararam na minha frente.

— Isso é... — Uma das crianças perguntou.

— Sim. Olhe os olhos dela, as marcas alaranjadas. É uma usuária de Pletge. — disse a primeira garota com um sorriso de crueldade.

Ah sim! Isso. Droga. Eu deveria ter saído correndo quando encontrei a garota. Droga. Ficar tanto tempo isolada no meio do nada prejudicou meu raciocínio. Me esqueci de que jamais deveria deixar ninguém me ver com as marcas alaranjadas no rosto. Por quê? Bem, usuários de Pletge são considerados uma escória na sociedade, desprezados e tidos como adoradores dos deuses infernais de Inteikos, mesmo uma coisa não tendo absolutamente nada a haver com outra. Pletge é uma droga sintética sintetizada a partir de magia, que dá capacidades sobre-humanas para seus usuários, explodindo ao máximo suas capacidades e talentos. É usada principalmente por pessoas com trabalhos extremamente exigentes.

Tipo o meu de manter uma empresa humilde e honesta num mercado insanamente corrupto, cheio de cartéis, máfias e trustes como do Reino de Qwederir.

Usuários de Pletge são desprezados porque são considerados pessoas fracas de espírito (não me pergunte o porquê), e praticamente todo mundo que usa isso a droga pouco a pouco vai distorcendo o comportamento da pessoa, a tornando arrogante e cruel. Fora ainda que cria uma tendência para o usuário à psicopatia e distúrbios psiquiátricos.

Claro que o preço da Pletge é bem caro. Não em dinheiro, pois é bem barato, mas sim em todo resto.

Duas vezes. Isso é o suficiente para você se tornar dependente para o resto da vida, sem esperança alguma de reabilitação. Sou o único caso anômalo registrado que usou centenas de vezes e não morreu. Ainda consegui a proeza de sair do vício, coisa que até para quem usou uma única vez já é bem complicado. Os efeitos depois do término do efeito de uma dose são devastadores. Assim como você se torna o melhor exemplar de humano, perfeito em quesitos físicos e mentais ao tomar, você se torna a pior de todas as pessoas. Surtos de agressividade, distensões musculares, súbitas arritmias que podem causar infarto, depressão, alucinações (que levam as vezes ao suicídio), há casos de AVC, roubos, assassinatos e crimes ainda piores que nem quero mencionar. Nos grupos de reabilitação podemos ver o quanto as pessoas podem se tornar ruins com um entorpecente as impedindo de controlar os impulsos ferais. Esses são apenas alguns dos efeitos possíveis das 36 horas infernais (vulgarmente chamada precipitação pelos usuários) que os dependentes passam depois do efeito da Pletge. Tudo que você reprime de ruim na sua mente por N razões será tudo que você fará. Pequenos defeitos que você tem acabam se tornando verdadeiras catástrofes com a precipitação.