Capítulo 3 - parte 1

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Resetar – Capítulo 3 – Parte 1

HELOÍSA

Surtar, chorar e me indignar não resolveriam meu problema de memória. Tudo que eu poderia fazer, naquele momento, era ouvir tia Cris e ser reapresentada à minha vida. Foi o que fiz. Fui uma ouvinte que evitava interromper a interlocutora. Cada informação era importante, assim como cada palavra diferente que ela dizia.

Calvinistas, protestantes e presbiterianos. Eu não soube especificar cada uma das características que eram dadas à nossa família, mas entendi que essas eram as minhas bases religiosas. Um tanto paradoxal, considerando que eu era uma mãe solteira.

Escutei a história do meu avô Joseph, filho de missionários americanos. José, como gostava de ser chamado, criou raízes no Brasil. Casou com minha avó Margarida, mineira e filha única de fazendeiros. Ele a levou para São Paulo, lugar onde funcionava a base missionária. Tia Cristina nasceu num parto complicado, e vó Margarida não pôde ter mais filhos. Então, eles adotaram meu pai, Antônio.

Enquanto a enfermeira extraía meu leite, me escapuliu um comentário:

– É por isso que sou tão diferente do Hans e da senhora.

Ela sorriu e começou a me mostrar fotos em seu telefone. Meu pai e meu irmão eram homens bonitos. Maurício tinha o rosto comprido, olhos verdes e o tom de sua pele era parecido com o meu. Já meu pai sustentava um semblante severo, queixo furado, pele bastante morena e olhos escuros. Eles eram, ao mesmo tempo, estranhamente semelhantes e diferentes, o que me causou dúvidas e me levou a perguntar como era minha mãe.

Tia Cristina cuidou de cada palavra que saía de sua boca. Posso dizer que foi melindrosa, a ponto de eu perceber seus ressentimentos. Contudo, o que ela dizia e o que eu realmente entendia não me afetavam.

Como eu poderia dizer a ela que a ausência de quem eu não me recordava não me afetava? Naquelas condições, minha tia, ali presente, tinha muito mais importância para mim do que minha própria mãe.

Entendi que minha mãe arriscou tudo para ir atrás de um sonho. Mônica era cantora lírica e posso dizer que sua carreira era bem-sucedida. Morava em Nova Iorque, viajava o mundo e vivia outra realidade de vida. Soube que ela deixou o país quando meu irmão tinha doze anos e eu apenas três.

– Então eles são divorciados.

– Eles nunca se separaram legalmente. – tia Cris disse, e eu percebi que aquela história não era simples de entender.

– Tenho contato com ela?

– Tem. – respondeu, incomodada. – Você morou duas vezes com ela. Uma quando era adolescente, por volta dos dezesseis anos. A segunda foi mais recente. Você, contrariando as profissões da família, fazia jornalismo aqui no Brasil, mas depois colocou na cabeça que precisava encurtar o curso para entrar logo no mestrado. Foi exatamente o que fez. Você se formou seis meses antes do normal, foi aprovada numa universidade do exterior e ficou por lá durante dois anos.

– Nossa, parece que fiz muitas coisas – suspirei reflexiva, remexendo o prato de comida que esfriava. Depois, voltei a olhar para minha tia e questionei:

– Eu tenho um emprego? – Só perguntei para mudar de assunto, já que tia Cris parecia muito incomodada ao falar da minha mãe.

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Eu tinha uma loira falante ao meu lado, que parecia feliz pelo simples fato de me fazer companhia no hospital. Tia Cris até tentou resumir um pouco a minha vida. Sua narrativa a meu respeito soava bem romântica. Mas reparei que, naquelas histórias, eu aparecia como uma garota-problema. Seus relatos deixavam claro que eu fazia o tipo brigona, teimosa e impulsiva. Não foi agradável descobrir que esses traços faziam parte da minha identidade.

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