Capítulo 5 parte 1

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TIA CRIS

A semana passou e não dava para dizer que Heloísa teve comportamentos típicos de pessoas que sofrem amnésia. Ela estava nitidamente mais sensível e reflexiva do que o costume. Não que isso a fizesse entrar num exaustivo processo depressivo, capaz de influenciar seu natural otimismo. Os momentos de lamúrias não eram verbalizados, eram apenas percebidos por aqueles que a rodeavam. Traços de sua personalidade continuavam despontando e sobressaindo à condição. Sua vivacidade e bom-humor continuavam se aflorando ao longo dos dias.

Algumas emoções se misturavam com a rotina de cuidados com uma recém-nascida. Quem poderia dizer se a fadiga era um sintoma da amnésia ou o resultado de noites em claro com Helena? A situação era muito mais delicada do que parecia. Não poderíamos relaxar com a ideia de que Heloísa estivesse aceitando sua condição perfeitamente. A amnésia, como qualquer outro tipo de transtorno, era traiçoeira. Acessos de raiva poderiam acontecer, e se acontecessem com frequência, não teríamos outra solução senão interná-la numa clínica especializada. Ninguém queria isso, nem mesmo meu irmão, que sempre delegou algumas de suas funções paternas a outros. Heloísa sonhava em ser uma jornalista esportiva de sucesso. Sua carreira estava em ascensão, então precisávamos ser discretos até termos certeza do que deveria ser feito caso suas memórias não retornassem dentro de um tempo aceitável. Por isso fechamos o cerco. As consultas com doutora Ângela seriam a largada inicial em nosso plano de ação. Nada de enfermeiros. Apenas os funcionários da casa de Antônio, a amiga Laila e nossa família lidariam com o caso nas primeiras semanas. Fizemos uma escala de plantão para que todos pudessem colaborar. Me ofereci para dormir na casa de meu irmão todas as noites e estender minha estadia até o início das manhãs. Helena costumava acordar todos os finais de madrugada com cólicas, e minha experiência em ter criado quatro filhos serviu para contornar a situação.

Antônio fez um apelo para que não insistissem em forçar a cabeça de Heloísa com excesso de lembranças, para que fôssemos para ela uma companhia agradável e para que, caso ela perguntasse algo, não fôssemos muito detalhistas. O objetivo era deixá-la dentro de um ambiente saudável e incentivador. Assim, ela retornaria à sua rotina da maneira mais amena possível, sem exigências.

Hans foi o único que não participou. Disse que estava sobrecarregado com os estudos do doutorado e com o trabalho intenso no hospital. Eu não sabia medir o grau de importância que meu filho e Helô tinham um na vida do outro. Mas como mãe, sabia que Hans dava desculpas. A verdade é que estava inconformado com tudo que estava acontecendo.

Em um momento, recebemos a visita do reverendo Esdras. Mesmo o caso de Heloísa precisando de discrição, sabíamos que a ajuda de um líder espiritual era muito importante para nossa família tradicionalmente protestante. O reverendo era um homem sensato e pensamos que seu apoio, suas orações e suas palavras de consolo fariam bem a todos.

Mônica chegou na sexta-feira, com pompas de diva. Quando viu a menina, deu-lhe um abraço longo e silencioso. Pude ver os olhos de Heloísa confusos enquanto sua mãe a sufocava com os braços.

Foi então que, mesmo contrariada, me retirei de cena. Eu amava Helô como se fosse minha filha. Estive ao seu lado em várias fases de sua vida. Contudo, ela tinha uma mãe e eu precisava me colocar no meu lugar.

No sábado, fiquei ansiosa, sem informações das minhas meninas. Foram pouco mais de vinte quatro horas sem cuidar das duas caçulas da família.

Encontrei-as no almoço de domingo na casa de meus pais. Era incomum ver Helô sentada no sofá observando tudo calada. Geralmente, nos encontros familiares, costumava interagir e nos contagiar com sua alegria. A situação ficou ainda mais desconfortável quando Hans chegou. Consegui ouvir sua moto estacionando na garagem. Eu odiava vê-lo pilotar aquela máquina, mesmo ciente que meu filho era um homem responsável.

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