(ainda dentro das memórias de Helô)
HELOÍSA
Meu diagnóstico não foi conclusivo naquela primeira consulta. Entendi que esse era um método atual e prudente para lidar com doenças psiquiátricas. Antes de sair testando qual medicação seria a mais eficaz, precisei fazer uma bateria de exames. Enquanto isso, apenas um calmante leve me foi receitado, mas deveria ser usado somente em caso de extrema necessidade.
Nunca duvidei que eu era uma garota privilegiada. Ter nascido numa família abastada e com um número excessivo de médicos era para poucos. Evidentemente, qualquer doença que eu tivesse seria submetida às mais avançadas análises e receberia os melhores tratamentos.
E isso aconteceu da forma mais minuciosa possível.
Teve uma vez em que injetaram algo em minha veia do braço, uma sustância que demorou uma hora para se concentrar em meu cérebro. Depois dessa espera, me fizeram deitar num aparelho monstruoso que captaria as imagens da minha massa cinzenta. Durante o procedimento, eu estava proibida de me falar e me mover. Foi desagradável encarar essa tal de Perfusão Cerebral, onde só o nome já me apavorava.
Também não poderia esquecer das inúmeras coletas de sangue, das horas em jejum e do líquido extremamente doce para o exame de tolerância à glicose. Sobrou até para o meu coração! O pobre coitado teve que se submeter a um Teste de Esforço e um Ecocardiograma.
Tudo era cansativo, mas até aquele momento dava para suportar. O pior veio depois, quando foram iniciadas as tentativas frustradas de me adaptar aos remédios.
Lítio foi o primeiro.
Lítio se tornou o meu inferno.
Disseram que essa droga maldita equilibraria as coisas dentro da minha cabeça. Mas o processo foi doloroso. Meus pés e minhas mãos tremiam, a boca secava e por mais que eu me esforçasse, foi impossível não engordar.
Cinco quilos a mais que num corpo pequeno como o meu – com menos de um metro e sessenta centímetros de altura – fizeram muita diferença.
Sempre pensei que, se acaso tivesse sobrepeso, isso não me afetaria. Acontece que a realidade foi outra. Eu me sentia inchada, lenta e longe de uma aparência saudável. As roupas me apertavam e eu não tinha ânimo para comprar outras novas.
A libido, que eu tanto me orgulhava em ter, foi embora e nem deu tchau. Perdi a capacidade de me relacionar com os outros e, sempre que possível, me isolava para evitar exposição. Parecia que a Heloísa apaixonada pela vida nunca tinha existido. Me tornei indiferente, insípida.
Se me pedissem para fazer um autorretrato que mostrasse quem eu fui nessa época, eu me desenharia com uma nuvem cinza sobre a minha cabeça. A sensação era que tudo estava nublado: corpo, alma e espírito.
Mas todos diziam que eu estava bem melhor.
Estável.
Ouvi muito essa palavra.
Estável e com o metabolismo lento. Estável e com minha vaidade escorrendo pelo ralo. Estável e sem tesão. Estável e indiferente às coisas boas da vida.
A verdade era que eu estava "bem melhor" nos padrões dos outros. Talvez sendo apática, eu não causasse incômodo a ninguém.
Quando o lítio saiu de cena, fui entupida por novas drogas. Menos agressivas, isso eu admitia. Mas eu não fiquei isenta dos efeitos colaterais de nenhuma delas.
Se o remédio não me ressecava a boca, fazia uma bagunça no meu intestino. Quando o estabilizador de humor não me engordava, o antipsicótico me dava tremores musculares. Alguns embolavam a minha fala. Tive febre, urticária e muita tontura. Uma vez, Hans e Laila me encontraram nua e desmaiada no banheiro do meu quarto.
Essa fase de adaptação durou mais do que o doutor Armando previa. Meu caso era peculiar. Gerou controversas no meio acadêmico da medicina. Havia uma quantidade significativa de possíveis doenças, mas nenhuma nomenclatura concreta. Quiseram me encaminhar para a terapia, pois, segundo me disseram, o trabalho em conjunto com o tratamento psiquiátrico poderia deixar o tratamento mais eficaz.
Recusei.
As pílulas já eram invasivas demais.
Vivi muitos dias maus, improdutivos. No final do semestre, eu não entendia como tinha sido aprovada em todas as matérias da universidade. Em parte, eu devia esse feito à ajuda recebida dos colegas de curso, já que alguns deles tomaram conhecimento da minha enfermidade. Mesmo assim, tive muitos planos adiados, como o desejo de obter a minha faixa preta no jiu-jitsu.
Foi difícil. O meu mundo, que costumava ser rápido e progressivo, ficou lento e vazio. E eu sempre me perguntava quando tudo voltaria ao normal.
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Até breve,
Naty
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Resetar
RomanceAVISO: PARA MAIORES DE 18 ANOS - CONTEÚDO ROMÂNTICO E SENSUAL. PEÇO QUE NÃO LEIA SE ESSE TIPO DE LITERATURA NÃO LHE AGRADA. Heloísa perde a memória sem motivos aparentes. Decidida a encarar sua realidade, ela tenta se readequar a sua própria vida. E...