Capítulo 22 parte 2

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(ainda dentro das lembranças de Helô)

HELOÍSA

A ocasião pedia música, mas não qualquer uma. Tinha que ser lenta, voz suave e cantada em português. Eu precisava sentir com profundidade o real significado das palavras, algo que só a minha língua materna poderia me dar.

Ainda deitada e com uma pequena parte do corpo enrolada no lençol, estiquei os braços, procurando o meu telefone entre os travesseiros.

Segundos depois, uma canção começou a tocar na pequena caixa de som que ficava sobre a mesa de cabeceira. A introdução ao som de um teclado com efeito de lullaby* era pacífica. Mas nada superava a delicadeza da voz de Vanessa da Mata entoando Amado.

Não demorou muito para que o causador principal do meu embevecimento aparecesse enrolado numa toalha. Minutos antes, ele tinha sugerido que tomássemos um banho juntos. A proposta era lógica, visto que deveríamos aproveitar ao máximo um ao outro antes das doze horas de plantão médico que ele teria pela frente. Mas declinei por estar em estado contemplativo, totalmente rendida de amor.

O cheiro do nosso sexo tinha se impregnado em minha pele, na cama e em todo canto daquele quarto. O seu gozo ainda escorria e melava as minhas coxas. O conjunto dessas coisas externas e todos os meus pensamentos internos me faziam sentir mulher e desejada.

Era por esses momentos que valia a pena todo o esforço de fazer nós dois dar certo. Era por esses momentos que eu nunca deixava de acreditar.

Hans começou a vestir sua roupa em total concentração. Ele ainda era o mesmo: austero e de poucas palavras. Mas isso não me afetava. Na verdade, eu não mudaria nada no seu jeito, pois era exatamente assim que eu o amava.

– Não vai levantar? – perguntou enquanto abotoava a camisa.

– Daqui a pouco. – minha voz saiu abafada por causa do travesseiro que eu abraçava.

Ele não disse mais nada. Calçou os sapatos, afivelou o cinto e secou os cabelos com a toalha antes de voltar para o banheiro. De lá, ele voltou a perguntar:

– Quer carona até a academia?

– Não precisa.

– Hoje é terça-feira.

– Sim. – resmunguei, fechando os olhos. – Ontem foi segunda e amanhã será quarta-feira. E daí?

– E daí que terça-feira seu carro não pode circular no horário de pico. – ele se referia ao famoso rodízio veicular da cidade de São Paulo.

– Hum, tinha me esquecido. Acho que vou de táxi então.

Bocejei assim que terminei de falar. A ideia de dormir um pouco era bem-vinda, já que minha aula na academia de jiu-jitsu começaria mais tarde. Não sei se meu cochilo durou segundos ou minutos, mas acordei ao sentir uma mão quente deslizar por minhas costas num gesto de carinho. A mesma música – que estava em modo repeat – tocava ao fundo, aumentando a minha atmosfera de conforto.

Abri os olhos e vi Hans sentado na cama. O olhar firme contradizia ao afago que eu recebia dele.

– Tenho algo para te dar, Heloísa.

– Um novo orgasmo nos seios?

Ele ensaiou um sorriso e respondeu:

– Isso a gente deixa pra outro dia.

– Uma pena. – falei e desliguei a música pelo meu celular.

De repente, a mão que não me acariciava surgiu em meu campo de visão. Me sentei para distinguir melhor o pequeno objeto dourado que reluzia a minha frente.

– Encontrei esse porta-joias num antiquário em Copenhague. Isso foi há uns dois anos.

– Três. Na verdade, quase três anos. – falei por impulso e logo me arrependi. Nós dois sabíamos que antes dessa viagem à Dinamarca, ele foi incisivo em me tirar da sua vida. – Desculpa, continue, por favor.

– Não sei por que, mas vi esse objeto e me lembrei de você. Logo será o seu aniversário, então eu pensei que.... enfim... pegue e abra. – ele me entregou a caixinha que, apesar do tamanho, era pesada. – Veja o que tem dentro.

– Tem mais? Só esse porta-joias já é um presentão!

Sem delonga, levantei a tampa e o que vi me fez rir e chorar ao mesmo tempo. Lá dentro encontrei uma pulseira adornada de pingentes de estrelas. A joia era idêntica a uma que eu tinha perdido durante um banho de mar, quando eu ainda era criança. Ao notar sua ausência em meu punho caí numa onda de choro incontrolável. Era um precioso presente da minha mãe, que havia comprado com o primeiro cachê descente da sua vida.

– Meu Deus! – deixei o mini porta-joias em meu colo e dei toda a atenção à minha pulseira. – Você se lembrou!

– Como posso esquecer? – ele sorriu. – Tive bolhas de queimaduras por ficar o dia inteiro exposto ao sol do Nordeste procurando o impossível.

Sorri ao recordar do estoque de tubos de Pasta D'água da tia Cris, que foi excessivamente utilizado nessa viagem.

– E mesmo sabendo que era impossível, você ficou comigo até eu me conformar que tinha perdido minha correntinha pra sempre. É por isso que você sempre foi a primeira pessoa que eu mais gosto no mundo inteiro.

Dizer essa última frase chocou nós dois. Há quase três anos eu não falava coisas do tipo. Eu sabia que me declarar abertamente a ele era como entrar num campo minado.

Hans já não sorria, mas também não estava carrancudo, apenas um pouco sem jeito. Para quebrar o clima, ele perguntou com suavidade:

– Posso colocá-la em você?

– Claro.

Entreguei a pulseira e, com cuidado, ele a ajustou em meu punho. Admirei a beleza daquela peça. Estudei os detalhes. A cor, a temperatura e o peso mostravam que era ouro de verdade. Chacoalhei a mão e sorri ao perceber que o barulho produzido era exatamente como o que eu ouvia na infância.

– Obrigada, Hans! – me livrei do emaranhado de lençol e me joguei em seu colo. Não dei a mínima por estar suada e nua diante dele tão limpo e vestido. Beijei o seu rosto e o abracei. – Obrigada! Você é incrível!

– É só um presente de aniversário, menina. – ele deu batidinhas leves nas minhas costas, um comportamento típico de quando ficava constrangido. – Não precisa fazer esse alvoroço.

Sem sair de seus braços, encarei o seu rosto e disse:

– Cala a boca, Hans! Não estraga o momento!

Não abri espaço para ele se manifestar. Tasquei um beijão bem demorado e só paramos quando não tínhamos mais fôlego.

– Te espero no fim de semana, no apartamento. – ele falou, a testa colada na minha.

– Ok. Estarei lá.

– Tenha uma boa aula.

– Tenha um bom plantão.

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*lullaby: um efeito de som alguns teclados (sintetizadores) que imitam caixinha de música ou canções de ninar.

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Pois é, Hans sabe ser fofo do jeito dele, né?

Até dia 4 de março

Abraço

Naty

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