*Essa pintura no topo do capítulo pertence a um pintor mexicano hiperrealista que se chama Omar Ortiz. Amo o trabalho dele. (sigam ele no Instagram)
--------------------------------------------
Heloísa
As sacolas do supermercado pesavam os meus braços e dificultavam os meus movimentos. Mas, de um jeito bem desengonçado, consegui abrir a porta do apartamento de Hans.
– Tem alguém em casa? – entrei anunciando a minha chegada para evitar sustos e acidentes, como da outra vez. Depois fechei a porta com o pé e voltei a falar. – Sou eu, Heloísa! Por favor, não me receba com objetos voadores!
Não obtive resposta, mas ouvi tosses e pigarros se misturarem com o som da televisão. Tirei a chave na fechadura e a guardei no bolso do meu vestido. Essa era uma aquisição valiosa que eu, com todo o meu atrevimento, não pretendia devolver a Hans.
Então, ao me virar para ir à cozinha, me estagnei diante de uma cena tragicômica: meu primo, um homenzarrão com mais de um metro e noventa de altura, se encontrava esparramado no sofá. Seu olhar caído e o nariz avermelhado eram provas suficientes de que as coisas não estavam bem por ali. Dei mais alguns passos para ter uma visão geral da situação. Havia lenços de papel espalhados pelo tapete, todos amassados e, com certeza, usados. Vi um termômetro, uma jarra de água, pastilhas para a garganta e diversas cartelas de comprimidos sobre a mesinha de centro. Para terminar de compor aquele cenário distópico, um pacote de bolachas recheadas estava aberto, comido pela metade e abandonado de qualquer jeito no rack.
Neguei com a cabeça aquele absurdo. Se alimentar com porcarias durante um resfriado era pedir para morrer! Hans era um profissional da saúde, com mais de uma década de estudos e um currículo invejável. Mas ainda assim era falho como qualquer outro ser humano.
Enquanto eu reprovava a sua displicência, ele me olhava da cabeça aos pés com a testa franzida. Seus lábios comprimiram e repuxaram para as laterais do rosto. Os olhos, ainda que abatidos, reluziam o brilho do sarcasmo. Eu sabia que ele estava com vontade de rir. Também, não era para menos. Eu usava um vestido caipira excessivamente colorido com botas de vaqueira. Meu cabelo estava trançado em maria-chiquinha e havia sardas desenhadas nas minhas bochechas. Percebi, então, que no caminho até lá passei na farmácia e no supermercado com aquela roupa chamativa.
– Hoje teve festa junina no abrigo. – Me justifiquei antes de ouvir qualquer pergunta.
– E vejo que caprichou na fantasia. – Ele falou em tom de brincadeira, mas sua voz saiu rouca e com certa dificuldade.
– Foi ideia da Laila. Você sabe que ela meio que enlouquece nessa época do ano. – Falei, lembrando o quanto minha amiga adorava festas de São João. Na infância, seus pais não permitiam que ela participasse das quadrilhas por se tratar de uma comemoração católica. – Acho que o desejo foi reprimido e hoje ela tenta compensar....
– Você está parecendo uma boneca de pano. – Ele me interrompeu com um meio sorriso. Depois ajeitou a postura no sofá, se sentando melhor e colocando os pés no tapete.
Não consegui disfarçar o meu embaraço. Eu, que sempre era confiante, me senti ridícula naquela roupa. Ele percebeu que tinha falado o que não devia e logo deu um jeito de se explicar.
– Uma linda boneca de pano. Foi isso que quis dizer, Heloísa.
– Ah, é.... Bem, então obrigada, né? – Agradeci, ainda mais constrangida pelo seu elogio estranho. – Com licença, vou deixar algumas coisas na geladeira. As sacolas estão pesadas.
Segui para a cozinha com a certeza de que eu era uma idiota. Por que falei "com licença"? Eu nunca usava esse termo com Hans! Não existiam formalidades entre nós dois!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Resetar
RomanceAVISO: PARA MAIORES DE 18 ANOS - CONTEÚDO ROMÂNTICO E SENSUAL. PEÇO QUE NÃO LEIA SE ESSE TIPO DE LITERATURA NÃO LHE AGRADA. Heloísa perde a memória sem motivos aparentes. Decidida a encarar sua realidade, ela tenta se readequar a sua própria vida. E...