1 - Parte I

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Eu olhava a paisagem através da janela do ônibus imaginando como seria se a profecia se completasse, as árvores não passariam de finos gravetos podres, a grama seria uma reles palha amarelada, o dia se tornaria noite, a água viraria sangue, o anil do céu seria tão escuro quanto meu poder. Desviei o olhar da janela e olhei ao redor, observei cada passageiro com atenção, pessoas idosas, jovens, crianças, uns adormecidos com uma expressão serena, senti inveja, gostaria de poder dormir tranquilamente como uma pessoa normal... Mas não sou normal, muito menos uma pessoa.

Olhei o panfleto que estava em minhas mãos mais uma vez, o apartamento parecia ser bom, ficava bem localizado e o preço estava abaixo do mercado. Não me prendi a detalhes, provavelmente teria algum probleminha nas instalações, mas não ficaria nesta cidade por muito tempo. Senti o ônibus desacelerar aos poucos, provavelmente estávamos chegando na rodoviária, assim que o motorista anunciou o fim da viagem peguei minha bagagem de mão, que consistia em uma mochila puída, com as correntes mudanças, eu não tinha muita coisa. Me dirigi à um ponto de táxi próximo, entrei e falei o endereço de um café onde eu iria encontrar a corretora responsável pelo aluguel do apartamento, percebi que o motorista lançava olhares furtivos em minha direção através do retrovisor.

- Estrangeiro? - Ele perguntou com um sotaque diferente, puxando a letra R.

- Sim. - Respondi atravessado, não estava afim de papo.

- De onde tu vens? - Suspirei profundamente antes de responder.

- Transilvânia.

- Ha ha ha, já viste um vampiro? - Que cara chato.

- Essas coisas não existem. - Peguei um livro na mochila para encerrar aquela conversa, me senti meio mal por ter sido rude com o taxista, mas conversar não era meu forte.

Chegamos no café em 20 minutos, um trajeto até que rápido, paguei a corrida e andei despreocupado até a porta. Ouvi um sino assim que adentrei o recinto, o cheiro de canela, café e doce invadiu minhas narinas instantaneamente, senti o estômago roncar e fui até o balcão fazer um pedido. Pedi um café extra forte e um doce estranho, mas era o mais barato, não podia me dar ao luxo de comprar biscoitos, minha identidade nova era de estudante, estudantes não têm tanto dinheiro assim.

- Izuku Midoriya? - Quase neguei com a cabeça, mas lembrei que esse era meu novo nome, olhei na direção da voz que me chamava e vi uma mulher de cabelos negros em um rabo de cavalo, ela era bonita. - Sou Momo Yaoyoruzu, você entrou em contato comigo sobre o apartamento.

- Ah, sim, por favor. - Apontei pra cadeira a minha frente, agora minha atuação entra em prática. - Estou tão ansioso. - Falei abrindo o sorriso mais convincente que podia.

- Então, aqui está a papelada de aluguel - Ela colocou uma pasta marrom em cima da mesa. - Preciso que seus responsáveis assinem o contrato...

- Sou emancipado. - Interrompi gentilmente, esse fingimento estava me cansando.

- Ah. Então você pode assinar esse documento provisório, você pode levar o contrato e ler com cuidado, pode me devolver em dois dias já assinado. - Ela procurou alguma coisa na bolsa e tirou um chaveiro com duas chaves. - Estas são suas chaves, a maior abre o portão do prédio e a menor abre o apartamento.

- Obrigado. - Encarei as chaves na minha mão por um tempo. - Acho que já podemos ir.

- Vamos andando? A gente aproveita e faz um "tour". - Ela enfatizou a palavra tour fazendo aspas com as mãos, sorri e concordei.

Andamos em silêncio, olhei tudo ao redor com atenção, cada som, cada cheiro, mais uma vez imaginei como seria tudo depois da profecia, minha máscara quase caiu, mas consegui me recompor. Quando viramos na esquina da rua do café, uma multidão veio de encontro com a gente, não entendi bem o que estava acontecendo, mas eram muitas pessoas, muitos cheiros, muitos sons, senti o coração acelerar e o gosto metálico na boca anunciando a transformação. Olhei minha mãos que já estavam com algumas veias negras aparecendo, entrei em uma loja qualquer, fui até o lugar mais ao fundo do local e tentei me acalmar.

- Soarele, luna, adevărul... Soarele, luna, adevărul... Soarele, luna, adevărul... - Respirei fundo, entoei o mantra mais três vezes para ter certeza que tinha voltado ao normal.

Saí da loja e voltei a ser Izuku novamente, Momo estava comprando um crepe numa carrocinha, me aproximei dela e pedi gentilmente para continuarmos o trajeto. Ela comia com calma, parecia não ter pressa para nada, eu queria ser assim também, me restavam três meses para a profecia. Lembrar disso fazia meu estômago embrulhar, assumi um semblante preocupado, esqueci por um momento que tinha que ser bom ator.

- Você tá legal? - Momo perguntou, notei o tom de preocupação na sua voz.

- Sim, só estou cansado. - Respondi com um meio sorriso.

- Na hora da multidão, aconteceu alguma coisa? - Ela estava sendo insistente, eu estava começando a ficar irritado.

- Eu não sou muito fã de aglomeração, me sinto sufocado. - Não era totalmente mentira.

- Você é claustrofóbico? - Mais uma pergunta, ela não para.

- Acho que sim... Não sei. - Paramos em frente ao prédio que eu iria morar, salvo pelo gongo.

- Chegamos, eu passo aqui daqui dois dias para pegar o contrato, deixa separado uma cópia dos seus documentos e da certidão de emancipação. - Ela lançou um sorriso fofo para mim, retribuí da mesma forma.

Observei Momo ir embora, assim que ela desapareceu do meu campo de visão tirei a chave do bolso e entrei. Perguntei ao porteiro em que andar ficava o 301, entrei no lavador e apertei o botão número 4. Quando cheguei no andar certo, o apartamento era exatamente em frente ao elevador, que conveniente, eu teria que escutar todo mundo entrando e saindo daquela merda. Abri a porta e me surpreendi com o que tinha lá dentro, era tudo muito bem decorado e organizado, a cozinha era completa e notei alguns eletrodomésticos que eu não fazia ideia do que seriam; a sala tinha um sofá espaçoso e uma tv grande, também tinha uma mesa de jantar de vidro e cadeiras acolchoadas. Olhei admirado com o apartamento que eu tinha alugado, o preço não condizia com o local, talvez os vizinhos fosses barulhentos, ou algo parecido.

Notei três portas, o que me deixou desconfiado, a primeira porta era um quarto normal, escrivaninha, cama, armário e umas prateleiras; a porta do meio era o banheiro, vaso, banheira, chuveiro, pia e uma máquina de lavar roupa, básico; a terceira porta era um quarto, idêntico ao outro, provavelmente de hóspedes, não liguei muito, só queria um bom banho gelado. Escolhi um dos quartos, joguei minha mochila na cama, peguei uma toalha e um sabonete novo, fui para o banheiro, olhei meu reflexo no espelho e percebi que meus olhos estavam ficando mais verdes, xinguei baixinho; meu cabelos também estavam mais verdes, o lobo queria sair. Me despi e entrei de vez na água fria sentindo o choque térmico no corpo todo, a água escorria por meu corpo lambendo cada cicatriz, observei as gotículas acumuladas na minha marca, a marca da maldição, esfreguei o sabonete em cima, mas nada remove aquela mancha, virou um hábito esfregar a marca toda vez que eu tomasse banho.

Saí do banho me sentindo revigorado, fui para o meu quarto e comecei a tirar umas roupas da bolsa, meu arsenal constava em duas calças jeans, três camisetas, umas cuecas e produtos de higiene. Quando me virei para abrir o armário e guardar as peças, a porta do quarto abriu com um estrondo e tinha um garoto loiro com olhos vermelhos parado na entrada, observei ele corar e senti o cheiro de seu sangue, merda, aqui não.

- Sai. - Falei com calma, mas ele permaneceu parado com um olhar meio atônito, lembrei que eu estava só de toalha. Caminhei até a porta, o cheiro dele era diferente, era doce, tapei o nariz rapidamente e dei um passo pra trás. - Sai logo! - Gritei despertando ele do transe, maldição de merda, ele fechou a porta rapidamente e corri pra trancar, não tinha como controlar dessa vez. Deixei o lobo vir.

DeclínioOnde histórias criam vida. Descubra agora