Capítulo 22

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Aquela era a primeira vez que Lyla ia jantar junto a todos os outros. Não havia tido tempo para procurar o menininho que pagava para levar sua comida, então apenas tomou um banho, colocou um vestido de lã que ia até os joelhos, sabendo que a cozinha estaria quente, e se dirigiu escada abaixo.

O movimento era muito mais intenso, e ela demorou para servir seu prato, pois sempre acabava conversando com alguém que havia conhecido nos dias anteriores. Quando finalmente conseguiu pegar tudo o que queria, incluindo um copo de leite quente, quase todos os assentos estavam ocupados, pois parecia que todos daquela fortaleza estavam concentrados na Cozinha. Achou um lugar vago em um banco longo, e o ocupou.

Não demorou muito para sentir alguém ocupar o pouco espaço restante à esquerda dela, e ela nem precisava olhar para saber quem era. Lyla podia reconhecer Sam em questão de segundos, até mesmo em um cômodo escuro, àquela altura. Se virando na direção dele, encontrou sua feição limpa, olhando de volta para ela. Suas sobrancelhas negras se ergueram em uma pergunta silenciosa.

— Você está sentada no meu lugar — ele deu de ombros, e ela franziu a sobrancelhas em exasperação.

— Você nunca senta aqui.

— Ele senta exatamente aí todas as noites — Lyla precisou virar o corpo completamente para o outro lado, ficando de cara com um macho que só não estava tão próximo quanto o Sam porque ainda haviam alguns dedos de distância entre seus quadris — Aqui é o melhor lugar.

— Melhor lugar para o quê?

Ele respondeu com um sorriso, e olhou para frente quando Emrys pigarreou e um silêncio começou a reinar no local. Ela estava com tanta fome e cansaço que não havia reparado que a maioria das pessoas já havia parado de comer, e que havia um lugar perto da lareira, onde Emrys estava sentado agora, ao lado de Malakai. Somente ela e Sam tinham os pratos cheios.

— Há muito tempo — começou Emrys, e Lyla soltou um pequeno arquejo. Ele era um Contador de Histórias... ela não lembrava disso — quando não havia rei mortal no trono de Wendlyn, as fadas ainda caminhavam entre nós. Algumas eram boas e justas, algumas tinham tendência a pregar peças, e outras eram mais malignas e sombrias que a noite mais escura.

Lyla o observava absorta, até havia esquecido da comida em seu prato, e do incômodo do corpo de Sam pressionado contra ela, suas pernas e braços completamente encostados. Ela não tinha um Contador de Histórias na família. Todas as narrativas que conhecia eram contadas em fragmentos por seus pais, Azriel, Cassian, e até Amren. Ela gostava quando era Amren, pois a segunda no comando não escondia as partes sangrentas, e tinha histórias muito, mas muito antigas.

Ela sabia que havia um contador em Velaris, no entanto. Um feérico com os cabelos tão brancos quanto os de Emrys, e as mãos tão enrugadas e a pele tão fina, que ela especulava se algum dia ele ia simplesmente desaparecer do nada, deixando apenas a magia para trás.

Lyla bebeu cada palavra do antigo conto, que falava sobre algumas criaturas e fadas más que viviam na floresta que haviam atravessado para chegar na Defesa. Ela finalmente havia entendido porque Sam havia exigido que não tivessem fogueiras.

Seu estômago finalmente reclamou, lembrando-a que não havia comido nada durante a tarde inteira com Sam. Precisaria levar lanches rápidos no dia seguinte. Ela também foi lembrada que estava mais próxima ao Sam do que gostaria, e que estava incomodada porque toda vez que ele levantava o copo, seu cotovelo batia nela.

Não havia forma de se afastar, pois aí se tornaria próxima demais do outro macho, o qual ela nem mesmo sabia o nome. Já Sam... Bem, eles não tinham intimidade, como ele mesmo havia afirmado, mas... Que se danasse a intimidade. Era ele que estava querendo o mesmo lugar que ela no espaço.

Aborrecida, levantou a perna esquerda, colocando-a por cima da coxa dele, e o braço esquerdo passou por debaixo do direito dele. Ela estava em mais contato com o príncipe do que já desejara na vida, e estava virada um pouco torta no banco, mas conseguiria comer sem bater o braço no macho desconhecido ao lado.

Os olhos turquesa a encararam, perguntando o que diabos ela estava fazendo, e ela correspondeu, desafiando-o a tirá-la de lá. Quando ele voltou a olhar para Emrys, ela começou a comer; por sorte, conseguindo fazer tudo apenas com a mão direita, já que a outra estava presa embaixo do braço que Sam usava para beber o que parecia ser uma espécie de vinho quente temperado, pelo cheiro.

A história continuou, e ela se divertia com os comentários que os moradores da Defesa Nebulosa faziam. Um tal de Luca, que parecia ter quase cinquenta anos, ficava falando sobre como não conseguiria dormir por dias graças às histórias, e uma menininha se escondia no colo dele, parecendo genuinamente apavorada com o que Emrys contava.

Lyla não tinha medo. As histórias de Amren eram piores, e uma vez, na infância, havia apostado com Oleg e Pandora quem conseguia olhar para Bryaxis, e apenas ela havia conseguido abrir os olhos. Cassian quase os matou no dia, mas depois daquilo, ela havia deixado de ter medo de monstros.

Ela definitivamente entendia porque o general não gostava de falar sobre o que havia visto ali, mas ele, Bryaxis, havia falado com ela, de um jeito que só ela ouviu, e havia sido gentil. Lyla voltou outras vezes, para fazer companhia a ele, mas teve que parar quando sua mãe perguntou porque a tatuagem que a ligava a ele havia desaparecido Ninguém nunca havia desconfiado.

Sam se moveu, quando acabou o vinho no copo, e o corpo todo de Lyla ficou tenso quando o braço dele foi para sua cintura, abrindo espaço para que ela pudesse usar as duas mãos sem se sentir presa. A mão dele descansava contra seu quadril, e o coração dela batia acelerado, porque aquele definitivamente não era o comportamento usual de Sam Galanthynius.

Seu corpo travou ainda mais quando a outra mão dele foi para a coxa nua dela. Não muito alto, nem na parte de dentro; não parecia haver nenhuma segunda intenção ali, era mais como se ele tivesse simplesmente apoiando a mão na perna dela, mas aquilo já era um universo muito maior de contato físico do que esperava dele fora dos treinos. Ela mal conseguia respirar.

O que está fazendo? Ela lançou na mente dele, reparando como ele permitiu que ela entrasse. Sam não respondeu, mas empurrou o prato dela ainda mais perto dela.

Apenas coma, Archeron, e não me atrapalhe, eu gosto dessa história.

Lyla não sabia como havia conseguido terminar seu jantar, e sua garganta praticamente empurrou o final do leite ainda morno abaixo. Ela estava tensa por inteiro, sem entender o que estava acontecendo, e Sam parecia completamente alheio a isso. De vez em quando, como se fosse apenas por hábito, ele começava carícias leves, que a deixavam completamente alarmada. Não que ela fosse avessa a contato físico, mas era difícil relaxar quando ela simplesmente não reconhecia a pessoa ao seu lado.

Dá pra ficar quieta, Archeron? Sou apenas eu; e você que escolheu sentar praticamente no meu colo, então pode relaxar um pouco? Não consigo prestar atenção no Emrys com sua respiração oscilando tanto.

Lyla não respondeu, e em seguida sentiu a mão de Sam a guiar para mais perto dele, então encostar a cabeça dela no ombro dele.

Eu não mordo, Lyla.

Ela sorriu, percebendo que ele estava repetindo a frase dela, e apenas se ajeitou melhor, relaxando contra o corpo dele. A mão direita dele escovava sua nuca, enquanto a esquerda deslizava devagar em sua coxa, mas sem sair muito do lugar. Ambas causavam arrepios que ela tentou, em vão, ignorar.

A noite pareceu acabar duas histórias depois, e Sam a desvencilhou mais delicadamente do que ela esperava, roçando o polegar na bochecha dela. O principe ofereceu um sorriso contido antes de sair sem dizer uma palavra, e o coração dela acelerou novamente. Ela não tinha nem palavras para descrever o quanto estava atordoada.

Balançou a cabeça, e recolheu os pratos dos dois, deixando na pia para quem quer que fosse lavar aquilo, e se mandou de volta para o quarto.

A Court of Night and FireOnde histórias criam vida. Descubra agora