One does not become enlightened by imagining figures of light, but by making the darkness conscious. Carl Jung.
28.
Acordei vendo raios de sol pela janela. Eu continuava prisioneira do meu próprio corpo imóvel. Buscava na imaginação transcender meu corpo e assumir o ar. Não era possível, mas eu não sofria mais, eu tinha escolhido viver o instante. Em momentos de fraqueza, que sentia minha mente assumindo o controle e meu coração descansava, a ideia da morte acalentava meu coração. Mas logo eu me tornava consciente das artimanhas da minha mente e parava, voltava a mim mesma e contemplava cada presente do instante, desde a beleza dos líquidos que fluíam pelos tubos, ao raio de sol que passava pela janela e à imensidão do céu.
Eu sou essa força que me habita, repetia a mim mesma. Se eu me apoiar nessa força, eu posso tudo, eu sou divina. Lágrimas escorriam pela minha face e gostava de imaginar os caminhos que elas poderiam percorrer. Quando adivinhava, quase podia sorrir. A vida podia ainda ser bela. O raio de sol tinha cores que eu nunca tinha observado e o céu era a mais linda das pinturas. Eu conseguia me emocionar com a vida. Eu tinha em mim a faísca divina que me habitava. Ela era poderosa, divina e sabia mais. Era ela que me segurava e me dava forças para sorrir vendo o sol. Eu era uma com ela.
Voltei a dormir e a acordar. De repente, um pensamento tenebroso me aterrorizou. Eu não estava imóvel na sarjeta. Eu tinha até conseguido resistir um pouco para não aceitar a ajuda de Mantus. Não acredito! Não podia ser. Aquele psicopata tinha me aleijado. Queria gritar de dor. Queria que meus urros tomassem a proporção da minha imensa agonia. Mas minha dor era muda, eu tinha perdido minha voz.
Senti todo o pânico dos meus pensamentos tenebrosos apertando meu coração diante daquela descoberta terrível. Nada podia ser pior. Eu tinha medo de dizer a verdade. Mas eu preferia a morte!
Não sei por quanto tempo chorei ali sozinha. O tempo passava tão lentamente e tantas vezes eu dormia, acordava, chorava, sorria, me acalmava, dormia e voltava a chorar e a sorrir, que eu já não sabia há quantos dias estava ali, paralisada. Para que querer saber, de que isso importava?
O tempo realmente já não me importava. Tinha vezes em que acordava e estava claro, dormia e estava claro de novo, não sabia se era o mesmo dia ou se já era outro dia. O mesmo acontecia com a noite, acordava e estava escuro, dormia, acordava e estava escuro. Reconheço que esse tempo de pura solidão me fez sofrer muito, mas, conforme passava, foi me trazendo serenidade e paz. Mas não foi fácil. Não foi. Confesso que várias vezes ao dia, eu sentia a mente invadindo minha paz de espírito e, então, eu me apoiava firme no meu juramento de morte e sentia aliviar meu coração e conquistar coragem para suportar qualquer coisa, inclusive ser cuidada pelo meu próprio algoz que parecia se entreter com meu sofrimento.
Mantus havia arrancado aquilo que eu prezava quase tanto quanto a vida, minha liberdade. Eu estava presa em uma cama à mercê de seu prazer vingativo de me manter viva para sofrer. Ele queria me transformar em um ser desprezível, digno de pena, que pedia esmolas por se sentir incapaz. Ele queria matar meu espírito divino, apagar a chama da minha faísca. Mas mal sabia ele que era naquela noite escura da alma, que tinha sido lançada sobre mim, que eu me rendi e transcendi, e fiquei muito mais forte. Foi nas trevas que eu encontrei minha luz, estava desperta para não dormir nunca mais. E, assim, sempre que sentia necessidade, eu voltava a repetir o meu juramento de morte. Com o tempo notei que meus períodos de paz aumentavam e havia dias em que nem era necessário repetir meu juramento.
Às vezes distraia-me com a enfermeira que entrava em meu quarto. Ela nunca me olhava. Olhos fixos no chão, a enfermeira blasé, sempre a mesma, jamais ousava me olhar nos olhos. Com uma liberdade que eu não havia dado, ela mudava-me de posição, mexia em mim com uma desenvoltura e audácia sem que eu sequer pudesse sentir o que ela fazia comigo. E, depois de fazer o que tinha que fazer, ela me deixava novamente só. Se no início eu me importei com aquela sutil hostilidade e lhe fiz juras de ódio, conforme os dias se passavam, eu deixei de me importar. Ela cuidava de mim, e mesmo sem que falasse ou se importasse comigo, eu lhe era agradecida.
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Pacto Secreto
Paranormal*** VENCEDOR DO WATTYS 2020*** CATEGORIA PARANORMAL Algo terrível aconteceu que mudou completamente a vida de Valentina e de sua família. Em uma noite, surge um homem misterioso e sedutor e faz uma oferta tentadora à Valentina: tudo o que ela...