Junho de 2018

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02 de junho de 2018

(Santana)

Em quantos funerais já fui? Alguns. Dois deles de pessoas que amei (e ainda amo) profundamente. Sei que é parte da vida, que todos vamos morrer, mas ter a consciência disso não faz das coisas serem mais fáceis. O senhor Weiz estava em estado terminal quando distribuiu os bens dele. Eu sabia que era questão de pouco tempo para que ele definhasse e partisse. Estava preparada para receber a notícia, mas quando ela finalmente veio por meio do senhor White, foi um baque. Bateu a realização de que, apesar de tudo, sentiria falta do senhor Weiz: esse avô manipulativo e torto que, de um modo não-convencional, me fez crescer.

A tradição judaica foi respeitada no sepultamento. Nada de canto, nada de falação. Apenas os rituais simples que marcavam esse tipo de cerimônia conduzida pelo rabino Amis, que fazia parte da sinagoga que eu e Rachel adotamos em Nova York por indicação do próprio senhor Weiz. Rachel veio num voo às pressas de Los Angeles para cá para acompanhar o enterro. Assim como zaide e bubbee. Os sobrinhos-netos do senhor Weiz não compareceram. Segundo o nosso advogado, ficaram revoltados quando descobriram que teriam direito a nada da fortuna do tio-avô milionário. Que se fodam.

Olhei para o caixão descendo na cova e fiz algumas reflexões. Tanto dinheiro, tanto poder. No final, nada disso sequer é importante. Não se levam jóias, ouro e nem os títulos aqui conquistados. Essa era a única certeza que tinha. Johnny não é um religioso, mas ele acredita que da morte levamos nossas ações, experiências e as conseqüências sobre nossas escolhas. Um dia perguntei como ele poderia ter tanta certeza. Talvez a morte seja o fim de tudo. Vai saber? Johnny respondeu que era o lógico para alguém que acredita em reencarnação, como ele. Eu não era uma judia que dizia que o conhecimento do Pentateuco era a verdade absoluta, era a lei. Havia o progresso, o avanço da civilização, dos costumes. Havia coisas que precisávamos ponderar dentro dos livros sagrados: era preciso separar o que realmente é importante em essência para ser uma pessoa digna e não se ater em questões que representaram o costume e o pensamento de uma época. Mas em alguma coisa a gente tinha de se agarrar para se guiar e o judaísmo me satisfazia dentro das explicações e cultura que me proporcionava, embora fizesse minhas ponderações particulares. A única certeza que tinha é que existia um Deus. Poderia estar feliz ou zangada com os desígnios Dele, mas nunca poderia ficar sem Ele.

Caleb Joseph Weiz nasceu no dia 22 de outubro de 1940 em Nova York. O pai dele, Lionel Weiz era um polonês cuja família vendeu tudo que tinha para fazer a vida na América. Os Weiz montaram uma pequena fábrica de tecidos no Brooklin, que prosperou. Caleb assumiu os negócios da família e fez ainda mais riqueza. Primeiro ao financiar a indústria farmacêutica, num segundo momento quando teve poder suficiente para comprar outras empresas à beira da falência, decretar a falência destas mesmas em seguida e usar a especulação imobiliária ao favor. A empresa agora entrava numa nova era ao entrar no negócio de exploração de biogás na Pennsylvania, mas isso aconteceu num momento em que ele já havia entregue a gestão para Alex Milton, atual presidente da Weiz. Só sei que era um baita negócio a considerar o dinheiro que entrava na minha conta bancária por causas das minhas ações recém adquiridas.

Caleb Weiz foi um empresário extraordinário. Mas também foi um filho de uma puta de marca maior. Minha família que o diga. Olhei para bubbee. Os olhos verdes dela estavam marejados. Ela chorava por um homem que a usou como uma prostituta em certo momento da vida, que fez nela um filho e o renegou. Olhei para zaide. Ele estava firme, compenetrado em respeito ao velho amigo que colocou nele um par de chifres e o usou para me chantagear. Rezava para que zaide nunca soubesse da verdade. E ali tinha todo um campo aberto para dar alguma merda, em especial porque os acionistas e empresários passavam e cumprimentavam a mim e a minha irmã como autênticas herdeiras. Torcia para que ele não questionasse depois. Rachel estava ao lado de Quinn. Estava séria e não conseguia adivinhar o que se passava na mente dela.

“E agora?” – Johnny me tirou do mundo aéreo e estado automático em que me encontrava. A maior parte dos empresários, amigos e funcionários presentes no enterro já tinha ido embora ou caminhava para fora do lote no cemitério Cedar Grove, no Queens, em que estava enterrada toda a família Weiz.

“Vamos para casa. Não vai haver recepção.”

Johnny acenou e pegou na minha mão. Olhei para a minha irmã que acenou de volta. Tirei o meu kipá, cumprimentei o senhor White e fui embora seguida por minha família. O caminho de volta foi silencioso, respeitoso. Rachel e Quinn transportaram meus avós e eu segui com Johnny no meu próprio carro.

“Rachel está aqui” – Johnny começou quando estávamos próximos de casa.

“Eu sei.”

“Você disse que gostaria de contar pessoalmente.”

“Eu vou. Mas me deixa respirar um pouco e chegar em casa. Weiz pode ter sido um filho de uma puta, mas ainda assim devo meu respeito e consideração.”

Johnny ficou em silencio mais uma vez. Estacionei na garagem e subimos até em casa. Rachel ainda não havia chegado. Normal. Ela e Quinn dirigiam como duas titias, sobretudo com meus avós no banco de trás. Fui até o meu quarto e joguei a minha bolsa em cima da cama. Foi o tempo do resto do pessoal abrir a porta e preencher os espaços. Bubbee era a mais abalada e acreditava que ela ficaria de luto por hoje, o que significava que ela se confinaria e rezaria.

“Que hora é o seu voo?” – perguntei à minha irmã mais reservadamente

“Às oito horas” – acenei. Mal tinha passado do meio dia e achei por bem preparar alguma coisa.

Johnny e Quinn me enxotaram da cozinha. Mandou que Rachel e eu ficássemos perto dos nossos avós. Zaide resmungava pouco e se concentrava nos programas de televisão. Eles também voariam de volta a Cleveland ainda hoje.

“Só tem lixo nessa porcaria” – zaide zapeava o controle com impaciência.

“Talvez se o senhor se fixar num lugar só e assistir um programa por mais de dez segundos, talvez o senhor goste” – Rachel disse com dosada ironia.

“Não há mais bons programas como antes. Agora é só esses seriados com violência, gays e mulher pelada.”

“Achei que o senhor tinha superado a homofobia, zaide” – Rachel reclamou ofendida e com toda razão. Eu também o olhei torto.

“Gostos dos meus, Rach. Só dos meus. Não dos outros” – Rachel resmungou – “Eu nem posso ver o seriado que você faz porque tenho medo de que você apareça pelada sendo currada por um daqueles caras.”

“A nudez e o sexo do seriado não são gratuitos, zaide. Embora agradeça que o senhor não queira me ver nessas condições. Mas também não é todo episódio que faço esse tipo de cena. Quem ouve o senhor falar até pensa que eu faço filme pornô.”

“Eu não vejo e pronto. Gosto de te ver no teatro no papel de gata voando pelo palco. Mas não gosto de te ver na televisão.”

Balancei a cabeça. Zaide estava mesmo velho, embora eu desse razão a ele no que diz respeito ás cenas que Rachel fazia em Slings. Gostava do seriado, mas confesso que virava o rosto quando minha irmã fazia uma cena de sexo. Era perturbador e eu não me acostumaria nunca com aquilo. Mas zaide estava com as manias mais insistentes, se irritava fácil em especial quando a memória, sempre tão boa, começou a apresentar falhas significativas. Ele também estava irritado comigo porque eu assumi posição na diretoria na Weiz, mas não o substituí frente à tecelagem. Eu insistia para ele contratar alguém que pudesse presidir a empresa, mas ele insistia que não, que esta pessoa só poderia ser eu. Mas como eu teria condições de assumir a tecelagem, a Rock’n’Pano e a diretoria na Weiz? Era impossível. Algo que me faria perder a sanidade. Pensei em enganá-lo. Em dizer que administraria a tecelagem de Nova York e contrataria alguém para fazer o intermédio, mas conhecendo zaide, esperto como era, sacaria qual era a minha pequena malandragem e exigiria que eu me mudasse para Cleveland. Era uma situação difícil, mas que eu empurraria com a barriga até o limite.

Almoçamos ainda com poucos diálogos à mesa. Nada além de trivialidades, como trabalho, rotinas e o que saiu no noticiário. Zaide e bubbee se retiraram para o meu quarto para cochilar antes de pegar o voo no fim da tarde. Isso me deu a oportunidade perfeita de ficar às sós com a minha irmã.

“Ray?”

“Hum?” – ela me encarou. Estava sentada no sofá encostada contra o corpo de Quinn.

“Posso conversar contigo um instante?”

“Em particular?” – ela ficou tensa – “É algo sério?”

Odiava por Rachel ter esses pequenos ataques de pânico sempre que eu tinha algo sério, porém não necessariamente ruim a dizer.

“Não é algo sério ou ruim. Nem é um segredo.”

“Então?”

Olhei para Quinn e Johnny. Eles já sabiam o que se passavam e me deram apoio em pequenos acenos. Respirei fundo. Encarei minha irmã e me preparei para a mais dramática das reações.

“Eu vou me mudar.”

“O quê?” – ela deu um salto do sofá – “Por quê?” – era por isso que preferia ficar às sós.

“Acho que está na hora, Ray. Lembra que eu herdei esse apartamento na 83th? Pois então. É um lugar muito bom, bem localizado, o edifício é ótimo, espaçoso, tem uma vaga na garagem por apartamento. Só precisa de pequenas reformas e de mobília. Então eu conversei com Quinn...”

“Quinn sabia?” – ela olhou para a esposa como se isso fosse grande coisa. Quinn estava aqui o tempo inteiro ao passo que Rachel está do outro lado do país – “Você sabia?”

“Santana e eu conversamos, Rach. Mas achamos melhor você saber da notícia da boca dela.”

“Mas você poderia ter me preparado para evitar tanto choque” – Rachel continuou bronqueada.

“Ray” – disse firme, para que a atenção fosse voltada novamente para mim – “Eu conversei com Quinn já de decisão tomada. Vocês são casadas, precisam viver uma vida de casadas. Só as duas, sem a terceira roda aqui. E eu acho que passou da hora de eu ter o meu próprio lugar, em que eu possa bagunçar sem receber cara feia e outras coisas...” – andei até Johnny – “Eu quero ficar mais à vontade com o meu namorado na minha própria casa. Fazer o meu escritório sem ter que dividir com um estúdio, enfim, ter o meu espaço.”

Rachel e eu nos encaramos por alguns longos segundos. Ela não estava com raiva, só surpresa. Tinha certeza absoluta que ela sabia que estava certa e era chegada a hora de eu me mudar para dar espaço de vez às duas. Para que Quinn pudesse finalmente ter a sensação de que aquele apartamento era a casa dela, que ela podia mandar no espaço. Quando conversei com Quinn, ela me deu razão e confessou que sempre se sentiu um pouco tolhida ali dentro, a ponto de ter de pedir licença para poder hospedar a mãe dela. Ela precisava se livrar de mim e eu a entendia perfeitamente.

“Quando?”

“Em duas ou três semanas. É o tempo da reforma terminar e de pintar.”

“É uma reforma rápida.”

“Ela já está em curso.”

Rachel acenou e voltou a sentar-se ao lado de Quinn.

“E o nosso cordão umbilical?” – ela perguntou com um biquinho nos lábios.

Sorri. A gente sempre disse que permanecíamos unidas por um cordão umbilical invisível. Uma pequena metáfora para a nossa união e o nosso querer bem, apesar de todas as nossas brigas.

“Bom... se ele é elástico suficiente para esticar daqui até Los Angeles. Tenho certeza que daqui até a 83th, que é logo ali, será fichinha.”

“É o fim de uma era, Santy” – lágrimas começaram a brotar dos olhos da minha irmã e eu tentei resistir para não me emocionar também. Era impossível.

“É sim, Ray. Mas é para a gente entrar em outra tão boa quanto.”

Rachel se levantou e me deu um abraço apertado. Não me importei se havia duas testemunhas de um momento que deveria ser privado. A gente se envolveu na emoção do anúncio de uma separação que era necessária para a vida de nós duas.

“Te amo, Santy.”

“Eu te amo mais, Ray” – limpei as lágrimas no rosto da minha irmã – “E não se preocupe: eu tenho certeza que mesmo morando em outra casa, você vai dar um jeito de continuar a ser irritante com minha alimentação, vai me forçar a fazer o checkup anual e me torrar a paciência em doses diárias.”

“Na verdade eu vou ter a minha cópia da chave do seu apartamento” – ela sorriu ainda chorando.

“É justo.”

Era o fim de uma era. Eu, Santana Berry-Lopez, finalmente criei coragem para cortar o cordão umbilical e também seguir com a minha própria vida. E mesmo sem ter concretizado ainda, foi mais doloroso do que imaginei. Meu estômago doía em pensar que acordaria no meu espaço e não veria Rachel ou mesmo Quinn arrastando o chinelo na cozinha com o cabelo bagunçado, reclamando de qualquer coisa que fizesse na hora. Eram as pequenas coisas que fizeram dessa convivência uma das mais felizes. Mas era a vida, e Rachel não deixaria de ser a minha irmã porque eu passaria a morar a alguns quarteirões dali. Simplesmente chegou a hora. Ela tinha de viver a vida de casada em toda plenitude e eu tinha planos futuros de morar com Johnny.

“E você vai deixar eu ajudar na decoração” – ela disparou.

“Ah! Sai fora, Ray!”




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