Abril de 2017

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1º de abril de 2017

(Quinn)

Não sabia qual era a graça em celebrar o dia dos bobos. Qual era o apelo disso? Pregar peça com notícias falsas? Ontem, na Bad Things, os chefões fizeram uma pegadinha que provocou alvoroço. Disseram que Tom Cruise havia comprado parte da produtora e uma das exigências seria adequar o esquema de trabalho à religião que o ator segue. Recebemos cartilhas e tudo mais sobre as principais mudanças e meia hora depois havia um bom bocado de gente pensando em pedir demissão. Eu, inclusive. Nada contra a religião dos outros, contanto que isso se mantenha no campo pessoal. Jamais no profissional. Era como lá em casa. Eu, como cristã, ia à igreja aos domingos sempre que era possível. Ouvia as palavras do pastor, procurava contribuir com a manutenção da igreja, fazia minhas orações e reservava meus dogmas para mim mesma em casa para não provocar discussões com Rachel e Santana. E vice versa. Se até em casa eu tinha paz e liberdade religiosa, porque no meu trabalho não teria? No fim do expediente, após um dia de trabalho tenso, foi armada uma mesa com bolo, alguns sanduíches e refrigerantes. Foi quase um pedido de desculpas pela tensão gerada.


Hoje vi um monte de pequenas notícias falsas sobre celebridades, política e outros assuntos. Tudo para não deixar passar o 1º de abril em branco. Quanta besteira. Mas ruas, os vendedores mais despojados esqueciam um pouc9o do profissionalismo para contar pequenas anedotas de 1º de abril, inclusive Steve, o garoto que auxilia no mercado local. Um bem caro, por sinal, mas é o que quebra o nosso galho quando precisamos fazer compras emergenciais e não estamos dispostas a ir até Astoria, no Queens, onde pagamos mais barato pelos exatos mesmo produtos que encontramos pelo nosso bairro. Como Manhattan era cara. Se não fosse casada com Rachel, jamais poderia sustentar uma casa, por menor que fosse, nessa região mais valorizada da ilha. Washington Heights e Harlem seriam as minhas únicas possibilidades por aqui. Talvez Chinatown, se bem que aquela região é ótima apenas para se visitar e tirar algumas fotos. Não é preconceito. Longe disso. Mas a poluição visual e o barulho daquela parte da ilha me incomodam profundamente.

"Rach!" - gritei minha esposa assim que entrei em casa - "Antes que me pergunte, não consegui encontrar os cogumelos que você queria."

"Ok!" - a voz veio do escritório.

Deixei as compras do mercado na cozinha e caminhei até lá. Encontrei a minha mulher conversando com a irmã dela. Santana fazia um monte de anotações numa folha em branco enquanto Rachel prestava incomum atenção. Dei um rápido beijo na cabeça de Rachel.

"O que estão fazendo?"

"Contas" - Santana respondeu mais seca.

"Santy está me mostrando quais são as melhores opções para aplicar o meu dinheiro."

"Mesmo?" - ergui a sobrancelha.

"Bom, Rachel já consegue ter uma sobra significativa do que ela ganha. Tirando a porcentagem do imposto de renda, do pagamento pelos serviços de Nina e Kurt, já que Josh abocanha diretamente uma porcentagem dos trabalhos que ela faz, das despesas daqui de casa que são divididas por nós três e das prestações do carro que vocês compraram e das pequenas despesas pessoais, como academia, roupas, táxis, passagens aéreas e o aluguel da quitinete em Los Angeles, minha irmã aqui tem uma sobra de pouco menos de 50 mil dólares. Isso com base nos contratos firmados para este ano já que ela não conseguiu economizar quase nada até o ano passado. Meu conselho é pegar essa margem segura de sobra e investir a grana e capitalizá-la numa operação relativamente segura para fazer esse dinheiro render."

"Assim como você não faz?" - alfinetei.

"Eu não faço porque minhas sobras são ridículas na Rock'n'pano. Na verdade estão ridículas no momento, e o meu salário na Weiz é colocado quase todo aqui dentro e o dinheiro gerado na minha empresa é usado dentro da minha própria empresa" - o tom dela era quase autoritário e professoral - "Mas os 47 mil dólares que Rachel pode salvar é uma bolada boa suficiente para investir. Dependendo do fundo de aplicação que ela estiver disposta a escolher, ao fim do ano essa grana estará dobrada. Ter 100 mil dólares de poupança em dezembro é nada mal."

"Essa é a vantagem de ter uma irmã economista com habilidades para contabilidade e gestão empresarial" - minha esposa sorriu.

"Quase economista" - Santana corrigiu - "Serei nada disso se não conseguir terminar o a minha monografia."

"Você vai terminar de escrever tudo na casa dos nossos pais, certo?"

"Eu queria usar as duas semanas de folga que consegui na Weiz para viajar para o Caribe" - abriu um pequeno sorriso - "Mas vou mesmo é para Columbus para terminar de escrever a minha monografia. Ou eu me desligo de tudo para terminar essa porcaria ou desisto de uma vez e me formo nunca."

"Quando você terminar, qual será o procedimento?" - Rachel perguntou.

"Vou entregar o trabalho concluído para o meu orientador, ele vai indicar as modificações que preciso, eu vou corrigir e ele vai marcar a bancada para algum dia de maio com os professores previamente convidados. Daí eu vou fazer pelo menos oito cópias padronizadas, mandar para os professores da bancada, que vão ter umas duas semanas para ler antes da defesa da monografia. Daí quando eu defender e se for aprovada, tenho de fazer uma segunda correção no meu trabalho indicado pelos professores da bancada, enviar a versão final ao meu orientador e mandar encadernar quatro cópias. Uma fica na biblioteca de Columbia, uma fica com o meu orientador, uma fica nos arquivos da faculdade de economia e negócios e a outra fica comigo. Depois disso: formatura!"

"Eu não precisei passar por todo esse estresse" - fiz a observação. Não tinha mesmo. O meu trabalho foi uma reflexão sobre a fotografia em produções em 3D versus em produções em 2D. Foi muito mais uma apresentação de técnicas e equipamentos com uma opinião em cima sustentada por outras opiniões. Tudo bem que não foi um trabalho maravilho, mas foi suficiente para eu ter o meu diploma. Eu só tive de encadernar duas cópias e nem precisei fazer correções.

"Meios acadêmicos diferentes" - Santana foi taxativa - "Basta você filosofar sobre uma fotografia de uma bananeira no meio de Nova York para os seus colegas explodirem de excitação."

"Para alguém que depende da arte para ter um negócio, você desdenha demais, Santana."

"Eu não preciso de uma faculdade para reconhecer o que é interessante e o que não é."

"Gente!" - Rachel Se levantou da cadeira - "o assunto principal aqui são as finanças, ok?" - encarou a irmã dela - "Santy, a gente conversa sobre isso mais tarde. Vou deixar você escrever a sua monografia" - pegou no meu braço - "E a gente precisa preparar o almoço."

Rachel foi direto para a cozinha e não estava feliz com a pequena discussão. Não era culpa minha. Santana era quem estava estressada com tudo: faculdade, trabalho, namorado. Que culpa tinha eu pelo mau-humor dela nessas últimas semanas? Quem deveria estar estressada era eu, afinal, as gravações da série The Project terminavam semana que vem e a gente ainda não tinha a palavra da ABC sobre renovar o contrato com a Bad Things para mais uma temporada. Para completar, Rachel estava de viagem marcada para a próxima terça-feira para Los Angeles e lá ficará por quase quatro meses para gravar Slings and Arrows, participar de milhões de eventos, e outros milhões de compromissos com a séri filme que ela gravou ano passado que vai estrear. Isso e ainda treinar para a peça Saltimbancos só para conseguir fazer os movimentos de uma gata. Pensando bem, não que acharia ruim Rachel adquirir um pouco mais de flexibilidade.

"Você não comprou a rúcula" - ela examinou as sacolas.

"Não estava com uma aparência boa."

Ela ficou em silêncio e pôr-se a trabalhar no almoço.

"47 mil dólares de economia?" - suspirei. Aquilo era mais dinheiro que eu conseguiria fazer em um ano trabalhando na Bad Things.

"Juntando os valores de todos os contratos firmados neste ano, dá mais ou menos isso."

"Uma peça, a série, aqueles ensaios e a propaganda da rede de farmácias gerou tudo isso de lucro?" - ela acenou timidamente.

"E mais algumas outras coisinhas pequenas."

"Tipo o quê?"

"Os direitos como intérprete sobre os discos que gravei para as peças Across the Universe e WWBD. Vou gravar o disco para os Saltimbancos, que também vai render algum dinheirinho com as vendas. Não é muito, mas sempre entra alguma coisa. Tem o dinheiro com a internet, que também é pouco, mas conta" - havia me esquecido que tinha esse detalhe - "E tem o dinheiro que se pode fazer só para aparecer em certos eventos."

"Achei que você não ia fazer esse tipo de coisa" - franzi a testa reprovaria se ela fizesse.

"Não faço, mas poderia se quisesse mais uma grana extra. Enfim, nós temos 47 mil livres de tudo" - ela deu um sorriso fraco, acanhado - "Poderíamos ir a Paris."

"Nós vamos a Paris" - a abracei e a beijei no pescoço - "A gente não combinou que em setembro estaríamos lá?"

"É, mas você está planejando uma viagem econômica demais."

"É uma viagem nos moldes que eu poderia fazer..."

"Ok, ok!" - ela me interrompeu - "Não vou mais discutir isso contigo."

Ficamos em silêncio. Falar de dinheiro sempre trazia algum estresse entre nós duas.

"Eu deveria ter feito Artes Cênicas em vez de Cinema" - resmunguei e não resisti em dar um pequeno sorriso quando Rachel me beijou no rosto.

"Tenho certeza que seria uma atriz maravilhosa" - voltou a trabalhar nos ingredientes para o nosso almoço - "Mas fico feliz por ter escolhido ficar atrás das câmeras. Senão o nosso relacionamento seria uma ciumeira só. Eu ficaria orgulhosa e ao mesmo tempo morreria de inveja caso você atuasse num filme de Steven Spielberg, por exemplo."

"Não tenho culpa por você ser altamente competitiva, Rachel Fabray."

"Não sou a única" - sorri. Sim, eu também poderia ser muito competitiva quando provocada da maneira correta.

Preparamos nosso almoço. Comidinha leve e gostosa com direito a sobremesa: gelatina de frutas vermelhas com chantilly. Santana ficou calada durante a refeição, o que era incomum e percebi que a atitude dela começou a incomodar minha mulher profundamente. Tenho certeza de que as duas conversaram em algum momento a respeito, só não acreditava que Santana contasse toda a verdade. Tinha certeza que não. Quando retiramos a mesa e Santana se dispôs a lavar os pratos, Rachel disse que tiraria 15 minutos de cochilo e me chamou para ir junto.

"O que há de errado com ela?" - ela parecia questionar mais para si - "Não acha que tem algo incomodando a minha irmã mais que o normal?"

"Dor de consciência?" - falei indo ao banheiro.

"O que quer dizer?"

Reservei o meu direito de ficar quieta. Escovei os dentes, tirei minha roupa e coloquei uma camisa extragrande que gostava de usar para dormir ou ficar em casa.

"O que quer dizer?" - Rachel insistiu quando liguei a nossa televisão antes de deitar-me ao lado dela - "Fala!" - ela me deu um soquinho no ombro - "Se você sabe de algo, tem que me contar. Ela é a minha irmã."

"E se eu prometi segredo?"

A cara que Rachel fez foi para intimidar qualquer um. Olha que não era sempre que isso acontecia. Era mais fácil acontecer o contrário: eu a intimidar.

"Você não pode guardar segredos de mim."

"Quem disse?"

"Quinn... agora que você mencionou, vai ter que contar."

"Santana dormiu com Brittany" - soltei de uma vez e Rachel me olhou com uma cara gozada, como se estivesse fazendo uma piada de 1º de abril.

"Fala sério, Quinn" - ela me censurou - "Santana não trairia Johnny."

"Santana dormiu com Brittany" - repeti mantendo o meu tom de voz - "A gente saiu para beber naquele pé sujo que Johnny e Santana adoram. Eu bebi um pouco demais, mas não tão demais assim a ponto de não perceber que Brittany entrou direto para o quarto de Santana naquela noite. Sim, eu ouvi alguns gemidos e, no dia seguinte, no final da madrugada, levantei para pegar uma aspirina e flagrei Brittany na cozinha vestindo apenas um camisão e sem nada mais por baixo. Quando questionei Santana, ela não pôde negar e implorou pelo meu silêncio" - ao ver o rosto ainda incrédulo da minha mulher adicionei - "Isso não é piada de 1º de abril. Juro por tudo que é mais sagrado. Sua irmã querida colocou um par de chifres na cabeça do Johnny e manteve o silêncio. Que ela está estressada por causa da faculdade e do trabalho, é obvio. Agora você também sabe porque ela vem agindo de forma estranha comigo. Porque ela está morrendo de medo que eu te contasse, e que um dos problemas para o estado nervosinho dela é dor e consciência."

Desabafei e parece que saiu um peso. Odiava guardar segredos que me deixavam desconfortáveis como esse. Rachel ficou pensativa enquanto eu procurei forçar a minha atenção para a TV. Passava Star Wars 7 pela enésima vez e eu ainda achava graça em ver vovô Han Solo na tela.

"Aonde vai?" - perguntei assim que vi Rachel sair de supetão da nossa cama.

"Falar com a minha irmã."

"Não, não, não" - pulei da cama e a segurei pelo braço - "Conversa depois. Agora a sua irmã está precisando terminar a tal monografia e se você a confrontar, vai prejudicá-la. Sem falar que vai me deixar mal."

Rachel me encarou com o cenho franzido. Ela não engoliu bem a notícia. Não que eu esperasse outra reação, só que aquela era mesmo uma hora ruim para se ter gritarias e discussões dentro de casa. Além disso, eu precisava de um pouco de paz e de curtir a minha mulher antes de ser forçada a ficar praticamente quatro meses longe dela. Mas razões egoísticas à parte, ela sabia que eu tinha razão: confrontar Santana ia adiantar absolutamente nada, até porque, opinião minha, o problema não era dela. Sei que Rachel alertou mil e uma vezes, mas, ao final, ela não era a traída. Rachel pareceu não processar o que dizia por um momento. Até que ela, ainda com a expressão fechada, resmungou e voltou para a cama.

"Não acredito que você escondeu isso de mim por mais de um mês" - cruzou os braços.

"Não era eu que tinha de contar."

Rachel me encarou e eu não consegui ler direito os sinais. Mas os ombros dela relaxaram e ela voltou a se encostar à cabeceira da cama.

"Tem razão" - claro que eu tinha - "Mesmo assim dá raiva. Johnny não merecia. Ninguém merece passar por isso."

"Eu sei!" - foi a vez de eu resmungar. Vira e mexe, o tópico da minha traição sempre aparecia.

"O que será que vai acontecer com eles?"

"Não sei. Santana pode abrir o jogo e ficar sem o namorado. Ou pode não contar e ficar sem do mesmo jeito porque nem o Johnny agüentaria tamanho mau humor. Ou ela conta e ele a perdoa, o que duvido. Ou ela mesma enterra essa história o mais fundo que puder e vai tentar viver feliz ao lado dele."

"Prefiro saber. Dói como o inferno, a gente fica sem chão, sem conseguir respirar, mas é melhor saber numa conversa franca, cara a cara, do que pela boca de terceiros. Infelizmente experimentei as duas situações para afirmar categoricamente o que acho melhor. Lembro que foi a maior humilhação da minha vida saber que Finn transou com Santana na frente do coral inteiro durante uma discussão. O que é pior: depois tomar conhecimento de que todo mundo sabia, inclusive você. Até hoje não sei como consegui subir naquele palco para auxiliar no solo de Santana."

"Eu lembro. Embora me recorde mais do enjôo monumental de tão nervosa que estava para apresentar o dueto com Sam" - encarei a minha esposa e segurei a mão dela - "Olha Rach, você sabe que não te trairia uma segunda vez. Hoje sei que se caso" - enfatizei a palavra caso - "nosso casamento não der mais certo mesmo depois de um zilhão de tentativas para consertar as coisas. Veja que isso é uma situação hipotética" - enfatizei mais uma vez - "Eu ia preferir terminar primeiro antes de ficar com outra pessoa."

"Agradeço e também penso o mesmo."

"Para que não exista mais nenhuma pendência entre nós, tenho só mais uma coisa a confessar."

"Ai meu deus, o que é?" - Rachel empinou o corpo e arregalou os olhos. Podia jurar que começou a tremer.

"Lembra daquele dia em que você gravou aquela cena pornográfica com Rom no ano passado?"

"Não foi pornográfica, mas sim, eu me lembro" - Rachel estava definitivamente tremendo. Segurei a mão dela. Estava gelada. Então eu a segurei firme.

"Naquele dia, sua irmã me levou para aquele pé sujo do Alberta's com o claro intuito de me embebedar. Eu bebi tudo que tinha direito e ela me levou para cá. Bom, eu estava bêbada, frustrada, com raiva..."

"Quinn, fala logo o que você fez."

"Eu tentei beijar Santana e ela me nocauteou na mesma hora. Fiquei com o olho roxo por dias."

"Oh" - Rachel empalideceu por um momento - "Você... sente alguma coisa..."

"Não, de jeito nenhum" - procurei assegurar. Segurei o rosto da minha mulher e a encarei nos olhos - "Eu te amo, Rachel Berry-Lopez Fabray. Aos meus olhos, você é a mulher mais bonita e sensual do mundo e lhe asseguro que tenho a menor atração pela sua irmã. Aquele dia foi todo errado, só isso, e Santana fez o favor de me frear da maneira apropriada. Mereci o soco, o olho roxo, a bronca e aprendi a lição."

"Oh!" - ela ainda não aprecia convencida - "Há mais alguma coisa que eu deva saber?"

"Só mais uma" - Rachel estava prestes a explodir - "Lembra daquela carta erótica anônima que você recebeu pouco antes de a gente voltar e atribuiu a autoria a algum fã doido?"

"Sim?"

"Fui eu que escrevi."

"Quinn!" - ela me deu um tapinha no braço - "Aquilo era... era... carnal demais."

"Eu iria assumir a autoria se você não tivesse classificado a carta como uma peça de extremo mau gosto que saiu de uma mente doentia e que chamaria a polícia caso recebesse outra. Achei melhor ficar calada."

"Deveria ter desconfiado que a mesma mente que era capaz de fazer desenhos pornográficos sobre mim na porta do banheiro da escola poderia escrever aquela carta. Tem mais alguma coisa que eu deva saber?" - falou com cautela.

"Mais nada. Todas as minhas pendências em relação ao nosso relacionamento estão zeradas."

Foi a vez de Rachel segurar o meu rosto e me dar um suave beijo nos lábios.

"Fico feliz por ter me contado. Não foi tão agradável, mas fico feliz."

"Eu te amo, Rach. Estaria perdida sem você ao meu lado."

"Você estaria à deriva no mar sem mim."

"Literalmente."

Ela me beijou mais uma vez nos lábios antes de voltar a atenção para a TV. Queria poder ser dotada de telepatia para saber o que se passava naquela cabeça. Só podia desejar que fosse nada de ruim.

...

7 de abril de 2017

(Quinn)

Odiava escrever relatórios. A parte burocrática era sempre a pior dentro da Bad Things. Podia fazer nada se esse era uma conseqüência da ótima organização da empresa. Era tudo projeto da Barbra Esteves, o braço administrativo dos três sócios majoritários. Todas as produções da Bad Things, que iam de um simples videoclipe a um filme, tinha um histórico. Porque eu era a câmera 1 do seriado The Project, e fiz o trabalho de direção de fotografia em duas ocasiões, e era funcionária da empresa, eles pediram para que eu fizesse um relatório geral da produção. Terry orientou que não fizesse nada longo, porque o objetivo era para que a equipe de produção e o showrunner analisassem tudo para ver quem continuaria ou não na próxima temporada e o que poderia ser otimizado na produção. Pelo menos esse era o boato de que a ABC renovaria conosco uma vez que a série tinha custo de produção mediano apesar de ser gravada no estado de Nova York (por ser gravada nos estúdios da própria Bad Things, o orçamento caía). Não foi um grande hit da temporada, mas conquistou uma audiência satisfatória, há bons anunciantes, e há uma boa disputa pelo segundo lugar entre a ABC e a produção da FOX na faixa de horário.
Apesar de não ter chegado nada oficial para os funcionários, acreditava que os executivos da ABC e a Bad Things já estavam acertados.

Sentei na frente do computador na grande sala do departamento de fotografia e comecei a escrever. Era só o que teria de fazer agora que a série terminou as gravações até que o meu coordenador Terry Python indicasse o que eu faria ao longo do hiato. Metade das pessoas envolvidas na produção da série The Project eram contratos temporários, ou seja, recebiam enquanto estivessem trabalhando no produto. Aposto que a maioria voltará para a próxima temporada. Havia o pessoal ligado à ABC e nós da Bad Things: sempre ocupando posições estratégicas. Por exemplo: diretores eram convidados, Mas o diretor de elenco era funcionpario. Havia uma equipe de roteiristas da série que foram contratados por fora, mas o editor de roteiros era funcionário. Assim como o showrunner, o produtor executivo, a maioria do pessoal da técnica do estúdio. Equipe de marketing e merchandising? Era uma pessoa da Bad Things no comando, mas o restante era de temporários. E assim por diante.

"Com problemas, Fabray?" - olhei para Marcos, um colega do departamento de artes que namorava Emily, do departamento de marketing. Como Marcos era próximo de Santiago e de algumas pessoas do departamento de fotografia, a gente tinha certa amizade dentro do escritório.

"Odeio escrever relatório."

"Toma o café da Charlie que levanta qualquer um."

Charlie era uma porra-louca do departamento de criação que trazia todos os dias uma garrafa térmica com chá. Ninguém sabia direito o que ela colocava na mistura de ervas que dizia fazer, mas a teoria da conspiração dizia que ela acrescentava certos estimulantes, caso contrário, a bebida não faria tanto sucesso. Um monte da produtora gente já experimentou o chá da Charlie. Ainda bem que não existia anti-dopping em nosso meio. Caso contrário, metade das pessoas ali estaria encrencada. Terry, o meu coordenador, por exemplo, faz uso "social" da cocaína. Gary Abrams, que considero genial dentro das produções indies, fuma maconha com freqüência e às vezes usa outras coisas. Não é algo que eu descubra. Eles próprios falavam abertamente durante os encontros informais da produtora. Só sei que posso ingerir todo álcool que puder e ainda assim serei mais careta do que muitos com quem trabalhava.

"O pessoal parece estar levantado hoje" - ironizei.

"É sexta-feira, Fabray" - ele sentou-se ao meu lado - "Uma galera vai descer para fazer um happy hour. Vem com a gente?"

"Não dá."

"Por quê?"

"Tenho compromisso."

Meu compromisso se chamava Irina Merkulova.

"Você é mesmo uma certinha" - falou com certo desprezo.

"E?" - ergui uma sobrancelha e ele ficou desconcertado.

"Nada não."

Revirei os olhos quando Marcos se levantou. Às vezes ele tentava dar em cima de mim, não importante se eu era casada e abertamente gay ou se ele tinha uma namorada trabalhando no mesmo teto. Era só um escrotinho mesmo. O ruim é que essa pequena conversa ajudou em nada para eu terminar minha obrigação.

"Belo fora" - Jane, que tratava fotografias, gargalhou - "Marcos é um cretino."

"Ele é só um idiota" - respondi. Minha concentração para fazer o relatório foi de vez para o poço. Virei para as meninas e relaxei um pouco.

"Ei" - um estagiário entrou quase surtado - "A Linda Kavagnot está aqui."

Ela era uma atriz e modelo que costumava fazer papel de a namorada gostosa do protagonista nos filmes de ação.

"Dizem que ela está de caso com o Gary" - outro disparou.

"Mas ela não namora o Kevin Stole?"

"Aparentemente."

"Dizem que o pinto do Gary é muito bom."

E gargalhadas que só cessaram quando Terry entrou de supetão. Ele podia ser o cheirador que fosse, mas no ambiente de trabalho era um verdadeiro xerife e tinha o respeito de todos, sobretudo o meu.

"Fabray" - fiquei em alerta - "Liam quer dar uma palavra contigo. Vamos lá?"

Não ficava mais tão nervosa ao ser chamada à sala do chefe. Como aconteceu algumas vezes ao longo do ano, a tremedeira inicial já não tinha mais lugar. Andei lado a lado com Terry e subimos as escadas até o lado dos escritórios dos chefes. Esperamos brevemente ao lado de Emma, a secretária, até sermos chamados para dentro. Liam usava óculos e arrumava uma papelada em cima da mesa.

"Roteiros" - ele sorriu - "Os agentes que trabalham para nós enviaram a correspondência hoje."

"Tem algum bom material aí?" - Terry perguntou lá se sentando à mesa e eu fiz o mesmo.

"Nesse monte tem os roteiros com sinopses que não me interessam" - apontou para a pilha maior - "Esses aqui podem ser possibilidades" - apontou para uns três em separado. Fiquei impressionada em ver a realidade do destino do trabalho de um monte de gente - "A gente comprou os direitos para adaptar os quadrinhos de Daytripper, estamos negociando com um roteirista fodão, mas eu queria também experimentar por fora um sujeito mais passional com a obra. Gary sugeriu os próprios autores, mas eu prefiro ter eles como consultores do que se metendo. Conhecem alguém bom para esse serviço?"

"Joss Whedon!" - Terry disparou e nós começamos a rir da impossibilidade.

"Quem me dera!" - Liam levantou os braços - "Porra, bem que eu o queria como meu sócio, mas o cara já tem a produtora dele e o grupo de amigos. A gente também tem, mas ainda precisamos fazer o nosso blockbuster para podermos sapatear."

"Mesmo com esse tamanho de estrutura aqui?" - questionei. A Bad Things era enorme.

"A gente até pode fazer produções em escala industrial. Até fazemos, de certo modo. Mas ainda estamos atrelados muito ao dinheiro da propaganda e publicidade. Os nossos filmes dão lucro com margem razoável, mas são ainda poucos e indies demais. A série deu uma boa grana, mas como foi a nossa primeira experiência na TV, demos muita cabeçada nessa temporada. Confesso que ainda não consegui domar direito a dinâmica da televisão e essa super-interação com a as redes sociais. Mas estamos aprendendo. Gary disse que devemos vazar para a internet o primeiro episódio da temporada. Sei lá."

"Fomentar a pirataria digital?" - questionei.

"Para provocar burburinho não há melhor. E depois está comprovado que isso não atrapalha. Claro que a posição oficial é sempre contra, mas sim, às vezes é preciso" - olhou mais uma vez para os roteiros e suspirou - "Pois bem, Fabray, falando da série, eu revi os dois episódios em que você assumiu a cadeira da fotografia. Ficaram muito legais."

"Foi um pesadelo trabalhar com dois diretores diferentes quase que ao mesmo tempo" - confessei - "Mas deu certo, acho..."

"Os caras falam que você é uma boa câmera. Passo fundamental para ser diretor algum dia."

"Olha, eu gosto muito de não ser a diretora geral. Prefiro mil vezes comandar o pessoal da iluminação e os nerds dos efeitos do que lidar com atores" - Terry e Liam sorriram.

"Agora deixa eu te fazer uma pergunta pessoal: você está feliz aqui na Bad Things?" - Liam ficou sério.

"Claro!" - respondi de imediato.

"Quanto você ganha atualmente?"

"Ganho 2,5 mil mais benefícios."

"Correto" - ele encostou-se mais à cadeira, como um poderoso chefão - "O que você acha de assumir a fotografia em definitivo do Project?" - arregalei os olhos. Não acreditava no que ouvia.

"O quê? Mas..."

"Isso aqui é em off, ok? A série vai ganhar a segunda temporada, mas por questões de política da ABC, o anuncio oficial só virá no final de abril" - claro que bati palmas e vibrei. Trabalhei com aquelas pessoas por quase oito meses tirando os intervalos. Éramos quase uma família - "A gente vai reunir a equipe de produção e técnica em duas semanas para fazer nossa reunião de balanço. A convocação é semana que vem... mas o que quero saber aqui agora é se você topa essa responsabilidade?"

"Nossa" - não conseguia ficar séria - "Será uma honra."

Liam acenou e Terry deu tapinhas em minhas costas.

"Evidente que daremos a você um aumento. Você receberá 5 mil por mês, mais seus benefícios, e passa a ocupar a posição de diretora de fotografia jr. aqui na produtora. Enquanto você estiver na série, vai cumprir os horários referentes a ela. Mas fora da série, pode ser chamada a fazer qualquer outra coisa nossa, como dirigir a fotografia de uma publicidade.

"Por mim, tudo bem."

"Certo" - ele relaxou mais um pouco na cadeira - "Outra coisa: a Bad Things conversou com alguns profissionais que nos interessam que vão ministrar cursos de verão em algumas universidades americanas. Vai ter cursos em NYC, UCLA, Yale, Harvard, nos estúdios da Pixar, enfim, onde esses caras estiverem. São tópicos de capacitação de interesse para a empresa, então além de você ter esse conhecimento a mais, ainda estará prestando serviço para nós. Planejamos, inclusive, uma semana de palestras para vocês passarem coisas novas aos demais que não forem. O que acha de trocar um mês de trabalho por um mês de curso?"

"É sensacional, Liam. Mesmo sendo algo em favor da Bad Things, aprender novas técnicas é sempre bem-vindo. Quando isso vai ser?"

"Junho ou julho. Enfim, depois a gente manda a confirmação das escalações. Mas fico grato que você tenha aceitado todas as ofertas. Depois você peça a Emma encaminhar a mudança da papelada lá no RH porque eu quero que você comece a atuar na nova função já na segunda-feira. Temos um clipe da Rihanna para cuidar."

"Rihanna?" - quase pulei da cadeira.

"Até segunda-feira, Fabray."

Saí do escritório de Liam nas nuvens. Eu? Diretora de Fotografia Jr.? Significava que ficaria responsável pelas pastas menores da Bad Things. Mesmo assim já era uma tremenda promoção. Fora o salário. Saí fazendo as contas. Ganhando o dobro, poderia comprar roupas melhores sem precisar pedir para Rachel, poderia ajudar a minha mãe, mesmo que pouco. Meu coração disparou.

"Fabray!" - Santiago cruzou comigo no corredor - "Viu passarinho verde?"

"Tiago" - abracei o meu amigo - "Acabei de ser promovida."

"Me-mesmo? Como?"

"Diretora de Fotografia Jr."

"Parabéns, Fabray" - algo me dizia que aquele sorriso era forçado - "Você vai mesmo longe."

Santiago passou por mim e foi em direção à sala comum dos departamentos, onde se tem sofás confortáveis, algumas plantinhas, televisão e brinquedinhos como cubos mágicos e vídeo-games. Algo me dizia que ele estava chateado. Não sabia dizer se foi a minha subida ou se aconteceu alguma coisa extra no departamento dele. Também não quis forçar a barra porque ele me contaria depois quando estivesse preparado. Sentei no computador, acessei o arquivo em que salvei o pedaço de texto. Li mais uma vez o relatório e procurei completar o serviço. Mas a minha mente já não estava mais concentrada ali. Eu sonhava com a minha nova função.

...

9 de abril de 2017

(Santana)

Acordei com alguma coisa encostada na ponta do meu nariz. Era uma mãozinha próxima ao meu rosto. Levantei um pouco a cabeça para ver do que se tratava e então lembrei onde e com quem estava. A minha companhia tinha cabelos loiros escuros, o corpinho estava esparramado pela cama e totalmente relaxado, vestia um pijaminha rosa com estampa de margaridas, havia dois bichinhos de pelúcia por ali e eu estava no canto da cama, oferecendo o maior espaço a ela. Era ninguém menos que Elizabeth Corcoran-Lopez. Ou simplesmente: Beth.

Cheguei em casa ontem no final da tarde para passar duas semanas de relativo isolamento e terminar de escrever a minha monografia. Minha bagagem tinha mais cadernos, apostilas e livros do que roupas, além do meu computador. Fiz nada ontem a não ser chegar, comer alguma coisa, conversar com os meus velhos e dormir. No meio da noite, Beth invadiu o meu quarto e pediu para que eu contasse historinhas do meu cotidiano em Nova York. Adormeceu ali mesmo. Ia aproveitar a minha estadia em Columbus para higienizar a minha mente dos problemas em Nova York: Johnny, Weiz, Rock'n'Pano, Quinn. Tudo para me concentrar apenas num único objetivo.

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