Maio de 2019

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04 de maio de 2019

(Quinn)

Lá estava eu recém chegada à casa dos meus sogros, minha mochila no chão encostada em minhas pernas, com um sorriso sem-graça morrendo de vontade de sair correndo de volta à Nova York. Ou talvez para Lima, para a casa da minha mãe. Pela primeira vez achava que o conselho de Irina em me aproximar dos meus sogros não foi boa coisa. Despencar para Columbus sem Rachel ou Santana para encarar Shelby, Juan e Beth com a cara e a coragem foi algo digno de insanidade mental.

“O que é isso?” – Beth perguntou ao pegar o grande pacote. Duas amigas dela estavam na casa. Dormiram junto com ela como um dos eventos planejados para o fim de semana de aniversário. Nem acreditava: Beth estava fazendo oito anos. Aparentemente essas duas melhores amigas dela iriam participar também da tarde no salão de beleza e depois comeriam na pizzaria com outras duas garotinhas.

“Acho que você vai ter que abrir para saber.”

Beth ergueu uma sobrancelha. Uma. E me deu vontade de sorrir. Então era assim que Rachel se sentia quando eu erguia uma sobrancelha para ela: Era mesmo estranho e quase intimidador. Ali próximo estava Shelby, vigilante como uma leoa. A postura dela comigo sem Rachel ou Santana por perto mudava radicalmente. Eu virava uma estranha, uma indesejada. Mas decidi ignorá-la para me concentrar em Beth. As amigas estavam ansiosas para ver o que era e a incentivavam. Minha filha abriu o pacote com algum receio e abriu um pequeno sorriso quando encontrou.

“Obrigada” – ela disse timidamente em meio a excitação das colegas.

“Dê um abraço em Quinn” – Shelby ordenou.

Ela hesitou um pouco antes de dar os passos adiante e me dar um rápido abraço que eu procurei aproveitar o máximo que pude. Então voltou a se concentrar no novo brinquedo e nas colegas.

“Uma patinete?” – Shelby se aproximou com os braços cruzados – “Uma ótima coisa para fazer ela entrar com um patinete em casa e arranhar o meu chão.”

“Desculpe” – não estava arrependida – “Beth mandou para Santana uma lista de presentes de aniversário que desejava e eu só peguei um item.”

“Santana é sempre a sua cúmplice, não é mesmo?”

“Ela é uma boa amiga. Sempre foi. Aliás, ela mandou também um presente para Beth” – tirei um pacote menor da minha mochila e entreguei para Shelby – “Acho que são jogos para o Nintendo de Beth. Só que Santana instruiu que só fosse entregue no dia exato do aniversário. Não faço idéia da razão.”

“Ok” – Juan disse assim que entreguei o pacote de Santana em mãos para Shelby – “Fique à vontade, Quinn.”

Acenei para o meu sogro antes de pegar a minha mochila e ir em direção ao quarto que dividia com Rachel. Meu quarto? Ainda não estava tão à vontade para fazer tal afirmação. De qualquer forma, entrei no quarto, que estava arrumadinho: leia-se limpo com lençol e fronha de travesseiro limpos. Boa coisa ter ligado dois dias antes anunciando minha chegada. Atirei-me em cima da cama e fiquei ali quieta e parada por alguns minutos. Fechei os olhos e prestei atenção nos sons ambientes. Podia escutar o riso das garotas brincando no quintal da casa, um carro pesado passando em frente da casa, talvez fosse algum vizinho, a música abafada que vinha da casa do vizinho. Se demorasse muito, seria capaz dos meus sogros desconfiarem, então levantei, tirei minhas botas e tirei da mochila o meu chinelo de dedo. Tirei a echarpe e permaneci com a minha calça leg e blusão. Então me apresentei para novamente para a família.

“Precisa de ajuda?” – perguntei a Shelby a respeito do almoço que ela preparava.

“Tolice” – disse sem ao menos olhar para mim – “Só é preciso fritar os bifes na hora. O resto está tudo pronto. É tudo de ontem.”

“Ok...” – mesmo assim sentei na mesa da cozinha. O que mais poderia fazer.

“Quinn?” – Juan me chamou.

“Sim?”

“Quer ir ao mercado comigo, se não estiver muito cansada da viagem?”

“Tudo bem.”

A minha saída pereceu um alívio para Shelby. A gente podia sentir de forma clara quando não era bem vinda. A tensão do ambiente endurecia os meus ombros. Mas que idéia idiota a minha. De qualquer forma, segui meu sogro até ao Honda. Não me lembrava da última vez em que estive sozinha num carro com Juan. Acho que nunca. Lembro que estive sozinha num carro com Hiram quando era apenas uma adolescente sem coragem para admitir meus sentimentos por Rachel.

“Aonde vamos mesmo?” – perguntei só para puxar assunto.

“Ao mercado.”

“Compras do mês?”

“Compras da casa” – acenei e fiquei em silêncio enquanto Juan dirigia. Olhei a paisagem de Columbus. Era sempre tão suburbana e diferente de Nova York. Por vezes era tão melancólica quanto Lima – “Conversou com minha filha por esses dias?”

“Sim, ainda ontem. Rachel está bem. Trabalhando muito em L.A.”

“Você conhece aquele rapaz em que ela finge estar namorando?”

“Luis? Sim, conheço.”

“Isso não te aborrece?”

“Bastante” – admiti ao meu sogro – “Mas é para o bem da carreira de Rachel. Então o que posso fazer? Os gays podem ser mais aceitos hoje em dia, mas ser abertamente gay ainda não é uma opção para quem quer prosperar em Hollywood.”

“Hum...” – Juan fez um silêncio sepulcral, o que me fez voltar a olhar a janela.

Chegamos ao Kmart que ficava junto a um pequeno comércio. Notei a grande quantidade de caminhonetes no estacionamento, homens em jeans, mulheres interioranas, apesar de Columbus ser a capital. Tudo tão diferente de Nova York e até mesmo de Los Angeles. Mas não se via miséria da mesma forma que nas grandes metrópoles.

“Bom dia doutor” – um homem parou para cumprimentar – “Bem acompanhado hoje?” – falou com desconfiança.

“Sim, por minha nora” – Juan sorriu educadamente e seguiu o caminho dele comigo logo atrás – “Quinn” – ele pegou um pedaço de papel e rasgou ao meio – “Aqui está a sua lista. Procure o preço mediano, por favor. Nem o vagabundo demais, nem o melhor de todos. Meio termo é o suficiente.”

Acenei e peguei a minha lista. Lâmpadas, um cooler médio, garrafa térmica, lanterna, pilhas, desinfetante, sabão em pó, detergente, amaciante, luvas. Parecia que a família precisava fazer um grande estoque de produtos de limpeza e eu não tinha idéia quanto ao resto. Talvez fossem viajar de carro ou algo assim. Não cabia a mim questionar. Era muito organizada para questões de mercado, mas como eu não estava acostumada com a distribuição geográfica dos produtos dentro daquela loja, precisei de um tempo para localizar. Nada que atrasasse. Assim que cumpri a minha lista seguindo as instruções de Juan em pegar os produtos com preço médio (nem o mais barato e nem o mais caro), fui atrás do meu sogro. O encontrei analisando galões de água mineral. Por fim, pegou um de cinco litros e o colocou no carrinho.

“O senhor vai viajar?” – perguntei casualmente.

“Não, por quê?” – então ele olhou o meu carrinho e encolheu os ombros – “Oh, Maria vai fazer o bazar anual da igreja dela e eu vou colaborar com algumas coisas guardadas na garagem e eu sempre dôo produtos de limpeza para ajudar no centro comunitário de Lima que a minha mãe fundou. Vou deixar tudo lá depois do almoço, aproveitando que as meninas vão passar a tarde fora. Você vai nesse negócio de salão com pizza de Beth?”

“Acho que não.”

“Por que não?” – Juan me olhou desconfiado – “Não é por isso que está aqui?”

“Não fui exatamente convidada.”

Paramos nossa conversa ao chegarmos ao caixa. Ajudei o meu sogro a passar todos os produtos e depois fui em direção ao carro com um dos carrinhos para agilizar. Um homem de vinde e alguns anos que estava encostado no carro ao lado olhou eu colocar as caixas pesadas no porta-malas e se ofereceu para ajudar. Recusei.

“Estou bem.”

“Que moça orgulhosa” – o homem insistiu – “Você é delicada demais para essas coisas pesadas.”

“Eu já disse que não!” – fui enfática e o homem passou a me olhar com desprezo, como se tivesse o orgulho do cavaleiro troglodita ferido.

“Por quê? Não gosta?”

“Algum problema aqui?” – Juan chegou bem a tempo. Meu sogro podia ser um senhor na casa dos 50 anos que sofreu um ataque cardíaco no ano novo, mas ainda era um sujeito alto e com físico imponente, apesar de estar mais magro. A presença dele por si só impunha respeito.

“Talvez não seja da sua conta” – o homem insistiu.

“É da minha conta se você estiver importunando a minha nora” – Juan se impôs e o homem estendeu a mão dando a entender que não queria mais confusão e nos deixou em paz.

Havia homem que não sabiam respeitar um não. Mas para ser justa, havia mulheres também assim que insistiam mesmo após o primeiro fora. Vide a roubada que me meti com Monica quando ela praticamente me caçou mesmo sabendo que eu era comprometida. Mulherzinha infeliz. Ainda bem que nunca mais a vi e nem tive notícias. Juan e eu colocamos as coisas no carro e seguimos de volta para a casa dele.

“Se não veio para participar da festinha, então?” – Juan estava intrigado.

“Vamos ser francos, Juan. A minha presença vai estragar as coisas para Beth, então eu não vou fazer nada para melar a festinha de aniversário dela. Eu quis vir porque é a minha filha. Posso perder muitas coisas da vida dela e eu sei que não tenho direitos. Shelby cansou de jogar isso na minha cara. Mesmo assim, mesmo Beth me odiando, eu sempre procurei comparecer nos aniversários dela e não pretendo romper a tradição tão logo. Por isso eu vim, trouxe o meu presente e ficarei em casa quando ela estiver se divertindo com as amigas.”

Juan sorriu e eu não entendi bem. Será que soei tão ridícula assim?

“Aceito isso, e respeito.”

“Obrigada.”

“Você não é fácil, Quinn Fabray.”

“Eu sei que o senhor não gosta de mim, mas...”

“Quem disse que eu não gosto de você?”

“O senhor nunca disse, mas as suas atitudes falam por si.”

Juan encostou o carro em uma das ruas e isso me deixou nervosa. Esperei o tapa moral.

“Quinn, o seu pai é um homem homofóbico que durante anos afrontou a mim e principalmente Hiram. Um dia, Hiram e eles partiram para o braço e meu marido levou a pior. Pensamos em processar o seu pai, mas o nosso advogado nos convenceu do contrário para evitar uma corte igualmente homofóbica em Lima. Eu odiei o seu pai, mas eu nunca odiei você ou a sua mãe. Não fiquei surpreso quando Hiram e eu tentamos pressionar Rachel porque ela havia chegado em casa com as roupas manchadas de slushie pela terceira vez. Minha filha disse que foi um acidente e nunca revelou a identidade do vilão, até que um dia Brittany deixou escapulir que você era a autora dos ataques. Fiquei revoltado com suas ações e pensei em ir à escola reclamar com o diretor, mas Hiram me convenceu do contrário. Apesar disso, eu nunca te odiei porque achava que isso era a conseqüência para alguém criado por Russell Fabray. Então eu tive pena de você. Quando você engravidou aos 16, senti compaixão e te respeitei. Quando Rachel te apresentou como namorada, levei um susto porque nunca imaginei que logo minha estrellita pudesse ser ao menos bissexual. E logo com quem. Temi por Rachel porque eu sei que manter uma relação homossexual aos olhos da sociedade é muito difícil. Por outro lado, fiquei vingado porque a filha do homofóbico era gay. Quando minha garotinha chegou em casa chorando porque vocês terminaram devido a uma traição sua, Quinn, meu sangue ferveu. Como você podia ter machucado a minha estrellita? Mesmo assim procurei entender porque as duas eram muito jovens e essas coisas podiam acontecer. Quando você e Rachel anunciaram o noivado, achei aquilo uma loucura porque eram duas pirralhas brincando de casinha. Mas eu não te odiei. Você trocou os pés pelas mãos em diversas ocasiões, Quinn, inclusive com Beth, mas eu nunca te odiei. É bem o contrário. Respeito sua disposição para a luta, o seu trabalho, sua honestidade, sua disposição em querer acertar. Aprendi a gostar de você, Quinn. Eu te admiro muito. Mas gosto do meu jeito. Não me peça para te chamar de filha e ficar de chamego, afinal, você é a pessoa que deflorou a minha menininha, casou-se com ela aos 21 e a fez chorar algumas vezes. Está entendido?”

“Sim” – limpei uma lágrima e apreciei a sinceridade do meu sogro. Era um alívio, afinal.

Ele ligou novamente o carro e continuamos o caminho. Passamos por mais duas ruas antes de chegar em casa. Juan descarregou apenas uma parte das compras e deixou as coisas que ele deveria doar dentro do veículo. Vi que tinha duas caixas fechadas num canto. Ele dobrou o banco de trás para ganhar mais espaço e pediu para ajudá-lo com as duas caixas. Devia ser as trecarias a serem doadas. Fechou o porta-malas e bateu a mão no meu ombro para entrarmos. Chegamos bem na hora do almoço. Na casa de Juan não havia a necessidade de esperá-lo para fazer uma refeição, como acontecia na minha na hora do jantar. Meu pai sempre exigia a família à mesa e tínhamos de esperar ele se servir primeiro. Quando chegamos, as meninas estavam fazendo uma zona à mesa, Shelby falava alto e fazia o melhor para lidar com a três crianças. Juan e eu nos disponibilizamos a ajudar.

De alguma forma, apesar de ainda haver distanciamento, senti-me melhor na presença do meu sogro que, sinceramente, sempre me deu um pouco de meio por ele ser severo de um jeito diferente do meu pai, e que eu não tinha aprendido a lidar. Beth tagarelava sem parar com as amigas e Shelby e Juan a deixavam à vontade para tal. Enquanto comia quieta no meu canto, prestava atenção no papo típico de garotinhas da idade. Falavam que o fulano e ciclano eram detestáveis, do jeito do esmalte das unhas que iriam pintar em breve, que a fulana disse uma fofoca, que elas deveriam se reunir nas férias para tomar banho nas piscina da ciclana. Frannie chegou a ter amizades assim. Eu não. Aos oito anos, eu já era uma menina um pouco acima do peso e retraída que fazia balé, que tirava fotos com a máquina da Barbie e tinha medo demais de fazer algo errado e ser apresentada à palmatória do meu pai.

Shelby pediu para Juan arrumar a cozinha e eu me dispus a ajudar meu sogro. Ela foi tirar um cochilo antes de se arrumar para levar as meninas à tarde no salão que marcaria o aniversário de Beth. As meninas decidiram assistir um pouco de televisão e brincar com um joguinho enquanto Shelby não as ordenava para tomar um banho.

“Quinn, pode vir aqui um instante?”

Acenei e meu sogro me conduziu até o porão. Se tinha uma parte daquela casa que eu gostava era do porão. Era onde ficava a biblioteca, uma sala aconchegante com um tapete tão alto que era bom até para dormir, as paredes eram revestidas em pedras e havia os instrumentos expostos: o piano que pertenceu a Hiram e que Shelby o tocava em especial nas preparações para as aulas na faculdade, além das duas guitarras de Juan (uma autografada por Carlos Santana ficava dentro de um móvel e praticamente virou uma peça de museu), um ukulele que Puck deu a Beth e um violão para crianças que ela deveria estar aprendendo a tocar. Se não me engano, além das aulas de balé, Beth tinha aula de violão uma vez por semana.

Mas Juan não estava ali para me mostrar instrumentos, ou os livros, ou a coleção de discos de vinil, ou mesmo o ambiente em si que eu já conhecia. Ele pegou uma pasta que logo percebi se tratar de um arquivo dos trabalhos de Beth na escola. Pegou uma folha A4 pintada em giz de cera.

“Quando Beth tinha seis anos, a professora pediu para os alunos desenharem a família completa” – me entregou o desenho.

Beth estava no centro dele de mãos dadas com adultos que representavam Juan e Selby. Ao lado de Juan entendi que estava a representação de Santana com um skate nas mãos (naturalmente, Santana é a irmã legal que anda de skate apesar de isso não ser verdade) e a labradora que morreu. Do outro lado estava Rachel (quase da mesma altura de Beth) e uma mulher pintada com os cabelos loiros e olhos verdes.

“Essa...”

“É você” – Juan completou a frase – “Apesar de toda birra, Beth te identifica como da família. Eu sei que você quer ficar em bons termos com ela e por isso está aqui, assim como bem sei que Beth não é uma peça fácil. Ela é mais obediente do que foi Santana, mas é quase tão moleca quanto... enfim... Beth tem uma personalidade forte e ela reproduz alguns cacoetes de Shelby que por vezes me assustam. Sei que ela tem essa resistência à sua pessoa depois que nós contamos a verdade, mas apesar de tudo, Quinn, você é família para ela. Tenha paciência que essa birra vai passar. Ela está ficando maior e é mais fácil fazê-la entender sobre certas coisas. É uma questão de tempo.”

Era inevitável não me emocionar. Peguei o desenho e apreciei cada rabisco com o giz de cera. Enxugava os olhos para minhas lágrimas não mancharem o lindo desenho.

“Depois você guarde na pasta e coloque ali. Ok?” – Juan foi em direção às escadarias – “Ah, e se você não vai mesmo nessa festa do salão com pizza, pode me acompanhar até Lima e me ajudar com aquelas coisas. Se quiser é claro. Vou e volto hoje.”

“Eu vou” – disse sem tirar meus olhos do desenho.

“Sairemos em quinze minutos. É só o tempo de ir ao banheiro e escovar os dentes.”

Acenei mais uma vez. Tão logo Juan subiu as escadas, peguei a pasta e a guardei no lugar. Mas o desenho ficou comigo. Eu o levaria para casa. Era meu.

...

14 de maio de 2019

(Santana)

Era bizarro. Absolutamente bizarro. Nunca imaginei que eu pudesse estar no meu escritório, meu local de trabalho, sentada à minha mesa grande, sentada à minha poltrona confortável, usando meus óculos de meio grau que usava para ler em especial ao computador, com a pessoa mais inusitada às minha frente, que marcou um horário, para que eu a recebesse.

“Isso é ridículo” – consegui dizer após cinco minutos de choque.

“Por quê?”

“Você ter o trabalho de agendar uma reunião comigo. Quinn, você nunca parou para pensar no quanto isso é ridículo?”

“Se quero conversar com a Santana Berry-Lopez, diretora da Weiz Co., devo fazer da forma adequada. O que há de ridículo nisso?”

“Você é inacreditável” – balancei a cabeça – “Diga o que tem aí.”

“Gostaria que você analisasse o meu projeto de documentário para a possibilidade de um patrocínio. Trata-se de um curta-metragem independente no sentido de que estou fazendo sem auxílio de um estúdio ou produtora estabelecida. Trata-se de uma história planejada para ter entre 15 e 20 minutos sobre um grupo de amigos que traçam o plano de roubar uma guitarra do ídolo porque Eles acreditavam no valor místico do objeto. Há uma lenda do rock em que os Sex Pistols roubaram todos os instrumentos da banda do David Bowie. Então, se deu certo com o Pistols, poderia dar certo com eles. O curta permuta na idéia do fascínio pelo consumo e pelo desejo de ter. Mas no final do filme, eles vêem o ídolo jogar fora a guitarra objeto de desejo, e que ele tinha várias cópias da mesma. É uma metáfora que o poder místico em alguns objetos não passa de uma ilusão e o que importa de verdade não é o que se tem, mas o que se faz com ele. É o talento. Claro que essa mensagem vem permeada numa peça com muito humor.”

“Interessante” – passei o olho na papelada bem diagramada. Quinn tinha talento para montar esse tipo de material pelos anos que ela também mexe com isso na Bad Things.

“Não vou mentir. Investir em cinema de curta-metragem não é algo lucrativo. O plano é percorrer com essa produção pelos festivais competitivos que dão premiação em dinheiro, além de fazer a venda de cópias num site a ser criado com acesso direto ao sistema . O trailer será veiculado no Youtube e após um ano o plano é colocar a produção integralmente neste canal para que ele gere renda em acessos. O plano é devolver ao patrocinador ao menos a metade do valor investido.”

“Que é 75 mil dólares” – olhei o valor total sem prestar atenção nos valores discriminados – “Se eu me recordo bem, você fez um filme uma vez com apenas 1.500 dólares.”

“Na verdade são 74.843,21 dólares. Seu que é um valor salgado, mas se reparar nos itens discriminados, verá que esse dinheiro não apenas servirá para o pagamento dos profissionais e aluguel de equipamentos, como também está previsto os valores para marketing por meio do site e inscrições para dois festivais importantes, começando por Sundance.”

“Você diz que o plano é gravar tudo em quatro dias no final de junho com locação em Nova Jersey.”

“É mais em conta.”

“Certo...” – dei mais uma espiada no projeto – “Porque o plano de pós-produção é para ser realizado em setembro e não em julho pouco depois de terminadas as filmagens?”

“Porque eu ficarei dois meses fora do país filmando na Inglaterra.”

“Então você trabalha em outro lugar?” – brinquei de ser a empresária desinformada só para tentar desconcertar Quinn. Era divertido vê-la num impasse mental de querer me xingar ao mesmo tempo em que devia ser paciente e profissional. Bom, foi ela quem se colocou nessa posição.

“Santana...”

“Bom, senhorita Fabray...”

“Senhora.”

“Nossa, tão jovem e já casada?”

“Santana!”

“Bom, você quer que eu diga isso como sua cunhada e amiga ou como diretora da Weiz Co.?”

“Eu te procurei como empresária, então, por favor.”

“As novas políticas da Weiz Co. abriram espaço para a produção cultural. A nossa empresa procura valorizar o ser humano em todos os aspectos, inclusive e sobretudo estimular a prática criativa. Todo projeto cultural tem espaço num plano de patrocínio. Nós disponibilizamos cercar de 1 milhão de dólares todos os semestres para patrocinar projetos culturais e educacionais com até 100 mil dólares de orçamento. Esses projetos são inscritos e submetidos a uma seleção. Creio, senhora Fabray, que o edital para inscrição desses projetos culturais e educacionais saia em agosto e os resultados em setembro. Lembrando que aqueles que empenham um caráter social são preferenciais. Mas caso a senhora queira percorrer outros meios dentro da empresa, posso pedir para encaminhar o seu projeto ao setor responsável para avaliação.”

“É isso?” – ela estava descrente – “Você está me mandando concorrer a um edital?”

“Senhora Fabray, esses são os caminhos tomados pela empresa. Nós temos uma política de responsabilidade orçamentária em todos os departamentos e essa foi a maneira que encontramos de servir a população dos Estados Unidos da América com organização, justiça e responsabilidade. Além dos editais de cultura, a Weiz Co. é parceira da Fundação Weiz-Stuyvesant que identifica e dá oportunidade de uma educação diferenciada a jovens brilhantes que vem de família de baixa renda. Nós também destinamos quatro milhões de dólares anuais para ajudar mais de 50 projetos sociais espalhados por todo país. Então, sim, temos nossa burocracia, mas entendemos que ela é necessária para que a nossa empresa continue devolver um pouco a sociedade os mesmos valores de honestidade, integridade e responsabilidade que permeiam a Weiz Co ao longo de quase cem anos de existência. Espero que senhora entenda.”

Quinn me olhou boquiaberta e acho que ela nem piscou. Segurei a vontade de rir, mas foi ela que pediu.

“Bom, senhorita Berry-Lopez, obrigada pelo seu tempo.”

Quinn pegou o projeto, colocou de volta à pasta e foi saindo da minha sala cabisbaixa. Possivelmente humilhada. Bom, foi ela quem pediu. Ela me procurou como empresária e diretora da empresa. Como tal, agi de acordo com a política interna estabelecida.

“Ei, Quinn” – disse antes que ela pudesse sair do meu escritório – “Está afim de almoçar comigo já que está aqui?”

“Você fala como empresária ou como minha cunhada e amiga agora.”

“Olha, em primeiro lugar, foi você que procurou por isso. E é claro que vou almoçar contigo como amiga. Espere lá fora só uns 15 minutos que é o tempo de eu despachar algumas coisas com a minha secretária, ok?”

Ela acenou. Estava magoada. Mas acredito que ela ficaria assim por pouco tempo. Chamei a minha secretária, confirmei a presença numa reunião com a equipe do departamento de projetos. Tínhamos de fazer o balanço do primeiro semestre e estabelecer metas para o próximo. Fora isso, era bom não ter que viajar naquela semana. Johnny também estava em Nova York fazendo a pesquisa para o novo livro, o que significava que nós dois estaríamos em casa. Depois que noivamos, passamos a praticamente morar juntos. Ele mantinha o apartamento alugado no Brooklin por uma questão de detalhe.

Quinn estava sentada com uma tromba escultural no sofá de espera. Dessa vez pude sorrir.

“Ei garota” – estendi minha mão para ela – “Tem um restaurante bacana aqui por perto. Comida americana boa e barata.”

“Espero que sim. Tenho de voltar para a Bad Things em uma hora.”

“Sem grilos.”

O restaurante em questão ficava só a dois quarteirões da sede da Weiz, em Tribeca. Chegamos lá em menos de dez minutos de caminhada. O restaurante estava cheio, mas não totalmente. Conseguimos uma mesa e pedimos o famoso bife acebolado com salada verde. Eles também serviam maionese de batata que era muito boa, mas esse tipo de comida implicava em riscos que não poderia correr num dia cheio no trabalho.

“Então, o filme...” – comecei enquanto tomava uma coca-cola.

“Eu não vou discutir mais esse assunto contigo, San. Não depois que você me humilhou lá dentro.”

“Aquela era eu falando como representante da Weiz Co. Aqui eu falo como sua amiga, Quinn. Que nóia foi essa de fazer projeto de filme quando você já vai filmar um e por dois meses? E na droga da terra do chá?”

“Santiago fez aquela merda no projeto, como eu te contei naquele dia. Isso me inspirou a fazer alo meu e tê-lo de novo como parceiro. Peguei a idéia do livro do Johnny, acredita? Pensei primeiro num longa metragem, mas isso demandaria muito tempo e um orçamento milionário a levantar. Sem falar que eu teria de sair do meu emprego para me dedicar. Um curta-metragem é diferente. É mais simples, a produção é rápida e eu não preciso comprometer o meu emprego. É isso.”

“E você precisa de 75 mil dólares?”

“Para ter o mínimo de condições para fazer algo profissional, é isso.”

“Você sabe que eu ganho mais de um milhão por mês, certo?”

“E daí? Eu ganho seis mil por mês!” – Quinn deu uma gargalhada devido ao ridículo da diferença. E era mesmo.

“O que eu quero dizer é que a Santana diretora da Weiz não pode dispor esse dinheiro. Há caminhos lá dentro a seguir e eles são justos. Mas a Santana, sua amiga e cunhada, pode te patrocinar. Hoje em dia isso é nada para mim, Quinn, e sinceramente tenho dinheiro demais estocado, sem uma boa destinação. Ele só está aplicado para gerar mais dinheiro para eu investir em imóveis ou em obras de arte. Sei lá. Ainda estou analisando a melhor opção. Mas o que quero dizer é que eu tenho essa grana e posso dispor dela para você fazer o filme. Pense em mim como a produtora executiva, se quiser.”

“Sério?” – ela abriu um sorriso.

“Sério!” – estendi a minha mão – “Só peço para ficar no anonimato, ok? Não comente isso com Rachel porque conhecendo a minha irmã, ela vai brigar comigo sobre algo que ela ia querer assumir e se meter.”

Quinn acenou.

“Transfiro a grana para a sua conta até o fim da semana e depois você me passa um recibo para o meu controle de imposto de renda.”

“Sem problemas” – Quinn era outra pessoa. Estava mais radiante do que a cabisbaixa raivosa que saiu do meu escritório.

Sei lá se esse filme seria bom ou ruim. A gente tem uma dimensão das coisas no papel, mas quando colocada em prática a história pode ser outra. De qualquer forma, eu tinha um bom sentimento a respeito desse projeto e Quinn merecia o voto de confiança.






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