Julho de 2018

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02 de julho de 2018

(Santana)

Cheguei em casa após um longo e típico dia de trabalho. Estava tão cansada que esqueci que a minha estação do metrô era outra: duas depois daquela em que costumava descer quando morava com Rachel e Quinn na 71th. Precisei andar um pouco mais num dia de muito calor, mesmo de noite, até a 83th. Meus pés estavam moídos por conta do salto. E havia o peso do material na minha pasta.

Assim que fechei a porta, larguei o sapato ali mesmo junto com a pasta. Depois buscaria tudo. Juro. Olhei para o meu apartamento. Ele era pouca coisa menor do que o da minha irmã. Tinha um quarto a menos e proporções diferentes, mas a distribuição dos cômodos era similar. À minha esquerda tinha acesso a cozinha e ao armário da área de serviço, que era só uma porta. Em frente estava a sala. À esquerda ficava o corredor de acesso aos dois quartos e ao lavabo. No apartamento da minha irmã o meu quarto e o dela não eram diferentes no tamanho em si. Eu só não tinha um closet e o meu banheiro era menor. No meu apartamento, a suíte principal era enorme, mas a outra suíte nem tanto, mas dois tinham closets.

Minha casa ainda estava praticamente nua de móveis. Um decorador me apresentou um projeto que achei trabalhoso demais. Essa história de fazer tudo sob medida era um saco. Queria facilidade. Um colega de trabalho me indicou outro que fez um projeto que me agradou mais a um preço melhor. A sala tinha apenas um conjunto de sofá, um raque e a televisão. A mesa de refeições era uma discreta, redonda, de quatro lugares. Isso me dava a desculpa perfeita de fazer todas as recepções familiares na casa da minha irmã. A cozinha era funcional e sem tantos armários para evitar acumular bagunça. O quarto extra foi transformado num escritório e o pequeno closet virou uma biblioteca, que no caso tinha alguns livros e um monte de filmes e discos. Já o meu quarto era simples com a cama king, o raque para compor ambiente e um quadro. Além das cortinas. O meu closet foi montado para ser à prova de bagunça. Meu banheiro era lindo, todo em cinza escuro e branco.

Depois de tirar as roupas de trabalho, ligar o ar condicionado, e colocar um blusão velho (essa era a parte boa de morar sozinha: nunca mais teria de ouvir críticas sobre o buraco da minha blusa velha), chequei a geladeira. Resmunguei. O conteúdo da geladeira era típico de um solteiro preguiçoso. Muitas bandejinhas de comida de supermercado, presunto de peru, queijo, pão de forma, latinhas de refrigerante e cerveja, além dos congelados. Por mais que odiasse admitir, sentia falta da lista de supermercado de Rachel. Por mais que eu fizesse minhas restrições à legumes e verduras, ela sabia como preparar essas coisas. Bom, eu tinha um hambúrguer de cordeiro para fritar, mas lembrar do cheiro que toma conta de boa parte da casa me desanima. Peguei uma lata com sopa expressa, dessas com bastante sódio. Rachel me mataria.

Depois de 15 minutos, lá estava eu no meu sofá assistindo a minha televisão pendurada na parede como um quadro bem grande. Segurava uma caneca em que tinha despejado a minha sopa. Assoprava, bebia, via um seriado na TV aberta. Um drama policial idiota nos moldes de CSI. Tão idiota que os agentes não sabiam fazer uma expressão matemática primária corretamente. Os números simplesmente não faziam sentido. Por outro lado, se o roteirista soubesse a tabuada, talvez tivesse se tornado engenheiro em vez de tentar a sorte escrevendo.

“Deixa de ser burro” – esbravejei para a televisão – “É óbvio que ela assassinou para pegar o seguro. É o clichê mais manjado que existe.”

Vê essas séries manjadas não tinha a mesma graça sozinha. Sentia falta de ouvir Rachel falando dos atores, de Quinn se queixando de detalhes da produção que sinceramente passavam despercebidos para mim, ou mesmo de Johnny sorrindo para cada gafe do roteiro. Ele se deliciava com as produções trash. E eu também. Pensei no meu namorado. Devia estar no apartamento dele no Brooklin àquela hora. Que estúpida idéia a minha de querer ter a experiência de viver sozinha por um tempo. Viver sozinha era uma merda por mais que ter a cama toda para si fosse uma delícia. Morar sozinha era um saco. Estava me sentindo só. Mas me recusaria a entregar os pontos porque era também uma oportunidade. Colocar o Johnny aqui dentro de casa seria muito fácil e me privaria de viver o prazer do meu cantinho. Por isso, enquanto a televisão continuava a passar seriados e a xícara suja de sopa estava em cima da mesa de centro, peguei um bloco para fazer algumas anotações.

Precisava fazer compras no mercado e colocar menos comida industrializada em casa. Tentar dar menos trabalho para Bena, que vinha dar faxina na minha casa uma vez por semana, aprender direito a tocar violão, ficar em dia com os seriados favoritos, fazer noites de apreciação de reality shows (Johnny e Kurt são ótimas companhias para tal), fazer Rachel e Quinn me convidarem para o jantar pelo menos uma vez por semana. Talvez eu invadisse a casa da minha irmã para o café da manhã depois de dar minhas duas voltas de bicicleta pelo Central Park como parte da minha rotina para manter a forma. Era um bom plano.

Meu telefone tocou. Canção de Brittany. Franzi a testa. Fazia quase um mês que a gente não se falava. Atendi.

“Oi Britt Britt.”

“San, como vai?”

“Tudo bem. E você e Rob?”

“Vamos bem. Rob está na casa do pai. Ele vai passar uns tempos com ele e com meus pais depois que eu partir. Mas não muito que assim que eu me estabelecer, vou buscá-lo. Penso que em um mês, no máximo, consiga resolver as coisas.”

“O quê!” – dei um pulo para trás – “De uma pausa aí, Britt. Do que você está falando?”

“Da minha mudança.”

“Que mudança?”

“Para Nova Jersey. É outro estado, mas estarei bem perto de vocês.”

“Não pense que não esteja feliz, mas como?”

“Não te contei? Eu e mais duas amigas vamos montar um estúdio de dança para atender os alunos de uma faculdade e da comunidade de Rutherford. Não te falei de Kelly? Ela é uma ótima coreógrafa e recebeu essa proposta. Então ela me convidou e a Carol para acompanhá-la. Não é ótimo?”

“É... espetacular, Britt. Rutherford é próximo de Manhattan. Na verdade está a mesma distância que Long Island mais ou menos, do que do lado contrário. Quando você virá?”

“Mais para o meio do mês.”

“Oh!”

“Oh?”

“Eu vou viajar com Johnny nessa época. Vamos para Europa para aproveitar as minhas férias. O plano é visitar quatro países em 20 dias.”

“Nossa... não sabia que tinha voltado com Johnny... acho que vamos nos ver só quando você voltar da Europa então” – ela soou desapontada. Odiava isso, odiava deixá-la para baixo.

“Faremos uma festa quando eu voltar. O que acha?”

“Parece bom. Bom, San, liguei só para avisar... tenho de ir.”

“Ok...” – soei incerta – “Voltamos a nos falar mais tarde, Britt Britt.”

Ela desligou e eu suspirei. Não é que tenha medo de cometer a mesma besteira que me fez separar de Johnny, Mas saber que Brittany estará perto, muito perto, não será uma situação fácil.

...

09 de julho de 2018

(Quinn)

Assim como fiz no ano passado, tirei apenas parte das minhas férias no meio de ano para poder passar a semana descansando. Era a semana do meu 24° aniversário, Rachel tinha recém-chegado de Los Angeles e não tinha grandes projetos para o restante do semestre. Ela iria trabalhar o EP, faria um show de lançamento no final da semana do Folk Village, que era um bar relativamente famoso em fazer lançamentos de novos e promissores artistas de Nova York. Rachel estava feliz e ansiosa. A família dela estaria presente, assim como alguns de nossos amigos. Mike disse que viria à cidade especialmente para vê-la, o que me deu certo ciúme por não ter sido eu a causa do meu melhor amigo visitar a cidade. Kurt já estava aqui mesmo, Mercedes estava de passagem em Lima em visita à família dela e do marido, mas não deu certeza de que daria um pulo por aqui.

Havia a expectativa para a chegada de Brittany para o dia 16. Rachel e eu prometemos todo o suporte necessário para ela se estabelecer em Nova Jersey para o tal estúdio de dança em Rutherford. Santana não contou bem a história. Mas a parte mais importante é que ela não estará presente para ajudar Brittany por causa dos preparativos para uma viagem que ela e Johnny farão à Europa depois dessa série de três apresentações do lançamento do disco de Rachel. Santana e Johnny estavam na banda, o que era engraçado. Eles e mais Tony e Dana, que participaram das gravações. Até a minha Rachel seria instrumentista tocando teclado em algumas das faixas. Ela praticou durante todo período em que esteve em Los Angeles para poder tocar direitinho. Essa turma iria ensaiar durante toda semana.

Eu não acompanharia todos os ensaios, mas a razão era boa. Resolvi seguir o conselho a minha mulher para me reaproximar da minha filha. Uma coisa era certa: não conseguiria quebrar o gelo de Beth a visitando de duas a três vezes por ano. Foi aí que Rachel e Santana sugeriram trazê-la para passar uma semana com elas em Nova York, mas que na prática seria uma semana comigo. Shelby (sem Juan) viria para cá na sexta, passaria o fim de semana e voltaria para Columbus com Beth. Mas de hoje até quinta, minha filha ficaria comigo na maior parte do tempo. De quebra, ainda passaria o meu aniversário com ela ao meu lado. Fato inédito, aliás.

Era por isso que aqui estava eu no aeroporto esperando ansiosamente para que Beth desembarcasse junto com alguém da tripulação, como era o protocolo para crianças que viajavam desacompanhadas dos pais. Comprei para ela um cachorrinho de pelúcia, desses que vem com um coração que você faz um pedido e coloca dentro do bichinho. As meninas da idade dela gostavam dessas coisas. Passei a semana imaginando o rostinho dela ao encontrar o brinquedo no antigo quarto de Santana. Meu coração disparou quando a vi de mãos dadas com uma aeromoça, levando ela mesma a mala rosa de rodinhas. Beth usava uma roupa moderninha, mas adequada para a idade. Usava óculos de sol e tinha ar de majestade.

“Com licença” – interceptei as duas – “Eu sou Quinn Fabray e vim buscar Elizabeth Corcoran-Lopez.”

A aeromoça acenou.

“Preciso que a senhora me acompanhe até ao escritório da companhia para conferência de documentos, se for possível.”

“Claro!”

Sorri e olhei para a minha filha. Ela não parecia feliz em me ver.

“Achei que Santy viesse me buscar” – protestou tão insolente que a aeromoça trocou olhares comigo.

“Santana está no trabalho a essa hora. E não diga que eu te contei, mas Rachel está lá em casa terminando de confeitar os cupcakes para te receber.”

“O Johnny poderia me buscar.”

“Johnny também está no trabalho. Mas só pessoas da família estariam autorizadas a te buscar. Certo?” – olhei para a aeromoça em busca de um pequeno suporte.

“Certo. São as regras da companhia” – a moça sorriu. Acho que ela estava com pena de mim de antemão.

“Se eles estão trabalhando, por que você não está?” – a insolência aumentou.

“Porque eu tirei essa semana de folga só para ficar contigo.”

Caminhamos até ao escritório da companhia mais próximo no aeroporto. Não demorou mais que dez minutos entre a conferência dos documentos e a liberação de Beth. Ela ficou emburrada por sair do aeroporto comigo. Era tão cabeça-dura que sequer deixou que eu levasse a mala para ela.

“Quando Santy vem me pegar?” – ela perguntou assim que entramos o carro.

“Beth, você vai ficar lá em casa, com Rachel e eu. Esse foi o combinado com seus pais” – era duro para mim me referir a Shelby e Juan como os pais dela. Legalmente era verdade e eles a criavam desde bebê. Era a referência que Beth tinha. Como negar? Mesmo assim, era incômodo ter de me policiar perto dela e não clamá-la como minha filha.

“Então não posso dormir na casa de Santy?” – ela cruzou os braços – “Se eu não puder, já me arrependo de ter vindo.”

“Vamos ver, ok? Santana ainda está montando o apartamento novo e nem tem uma cama de hóspedes ainda. Então hoje a senhorita vai dormir lá em casa. Não vai querer experimentar todos os doces que Rachel fez? E há outras surpresas. Além disso, você vai dormir no quarto que foi de Santana. Isso conta, não é mesmo?”

“Que viagem mais chata!”

“Como você pode dizer que é chata se acabou de chegar? Nova York é incrível e eu posso te levar a um monte de lugares legais que você nunca esteve antes.”

Beth não parecia muito convencida. Ligou o rádio e sintonizou numa rádio que tocava as músicas pop mais recentes. Aumentou o som numa música de Toby Malone como se quisesse evitar qualquer diálogo comigo. Toby Malone era o novo Justin Bieber que eu tive o desprazer de cruzar com ele no primeiro hotel em que me hospedei com Rachel durante a minha lua de mel. Sujeitinho estrelinha, cheio de vontades, atrai paparazzis e faz música ruim. Não é muito diferente de outros tantos garotinhos que fizeram sucesso estrondoso por um curto período de tempo na indústria fonográfica. Eles se destacam até o próximo bonitinho criar músculos suficientes e alguns pelos no rosto para desviar a atenção das meninas para si e condenar o antecessor ao ostracismo.

Não sabia que Beth gostava desses artistas. Pelo visto o gosto apurado de Juan e Shelby não foi suficiente para bloquear a influência das amigas da escola e dos programas de TV da moda. Era coisa da idade, apesar de não ver com bons olhos o fato de uma garotinha de sete anos admirar um garoto que tinha uns 18 anos. Sabia que havia um apelo sexual por trás de todo o trabalho que menininhas como Beth não percebiam, mas guardavam em algum lugar do inconsciente. Eu fui a faculdade e estudei que capturamos informações de forma inconsciente e elas nos direcionam dentro de um determinado fio condutor. Claro que estudei isso na ótica da fotografia, só que isso se aplicava para tudo. Mas o que se poderia fazer? Proibir o acesso das crianças a esses artistas? Era quase impossível.

Balancei a cabeça. Beth era a única pessoa que me fazia falar e pensar como uma mãe chata e neurótica. Não sei se isso era bom ou ruim. Pelo menos eu não via Shelby agir dessa forma, e logo ela que tinha todo o cuidado. Às vezes eu tinha dúvidas sobre a minha capacidade materna caso tivesse ficado com Beth. A impressão que é poderia ser rígida tal como meu pai foi para mim, mas sem a parte das surras. Como saber?

“Chegamos” – procurei colocar um pouco de entusiasmo na voz enquanto estacionava o carro na garagem do prédio. Não ouvi resposta. Beth faria tudo para me desafiar, mas prometi a mim mesma que não cairia nessa armadilha. Paciência, Fabray. Paciência.

Peguei a mala rosa de rodinhas e seguimos pelo elevador. Assim que coloquei a chave na porta e a abri, Rachel estava em nossa frente com um chapéu ridículo.

“Minha assistente de cozinha chegou na hora exata” – ela disse com entusiasmo Broadway, ou seja, articulado, calculado e, sobretudo, falso – “Olá Beth” – não pude evitar em sorrir quando as duas trocaram um abraço – “Esperei você chegar para começar a enfeitar os cupcakes. O que acha de tirar esses sapatos e me ajudar a confeitar?”

“Pode ser.”

“Quinn, você nos ajudaria também?”

“Claro” – sorri pelo esforço da minha esposa em me incluir apesar do desdém da minha filha.

“Vamos lá, ladies. Lavem as mãos e para a cozinha!”

Deixei a mala no ex-quarto de Santana e suspirei ao ver o presente em cima da cama. Tive medo de ela fazer cara de desgosto e, de repente, senti vontade de sair correndo por aí e gritar como uma maluca. Em vez disso, coloquei uma camiseta, lavei as mãos e fui ajudá-las a confeitar os cupcakes. Beth parecia resignada por hora. Sorriu de algumas piadas de Rachel, mas nunca as minhas. Não que eu fosse uma boa piadista. O que eu precisava fazer para ganhar a simpatia da minha própria filha? Rachel e eu trocamos olhares e era como se pedisse telepaticamente para que tivesse paciência. Eu tinha, só que minha ansiedade para fazer tudo dar certo era maior.

...

10 de julho de 2018

(Rachel)

“Happy birthday to you...”

Comecei a cantar assim que senti que Quinn havia despertado. Então comecei a cantar ao pé do ouvido da minha esposa na melhor imitação que conseguia fazer de Marilyn Monroe cantando para John Kennedy.

“Happy birthday to you...”

Continuei a cantar atravessando uma perna no corpo de Quinn para ficar no topo do corpo dela.

“Happy birthday mrs. Fabray.”

Fiquei por cima numa posição insinuante que sabia perfeitamente que acendia o fogo de Quinn. Era proposital.

“Happy birthday to you.”

Inclinei-me dominante e capturei os lábios rosados de Quinn nos meus. Foi o mais delicioso beijo de feliz aniversário que poderíamos trocar.

“Nem mrs. Monroe em pessoa conseguiria ser mais sexy” – Quinn erguei-se e ficou sentada na cama, mas ainda me deixando no colo dela. Voltamos a nos beijar e confesso que estava ficando mais excitada do que planejei. Em especial quando senti mãos atrevidas invadir meu pijama, provocando sensações no meu baixo ventre.

“Gostou do despertar?” – perguntei ainda procurando seduzir e ataquei o lindo pescoço de Quinn. Sabia que isso sempre acendia o fogo dela e era justamente a minha intenção.

“Melhor impossível” – ela segurou o meu rosto e tentou me puxar pata um beijo guloso. Sinal de que a minha sedução havia dado certo. E como.

Era o momento do meu pequeno golpe sujo: a afastei bruscamente.

“Ótimo. Fico grata. Mas agora é hora de levantar” – saí do colo dela e deixei a cama.

“O quê?” – procurei não rir da expressão de perplexidade da minha adorável esposa.

“Temos visita, meu bem. Ou se esqueceu que Beth está no quarto ao lado?”

“Não, mas...”

“São quase sete horas, precisamos fazer o café da manhã dela” – disse seguindo para o banheiro – “Temos criança em casa, uma que requer algum trabalho de nossa parte, portanto não vamos estragar tudo fazendo barulhos que ela não vai querer ouvir.”

Sei que Quinn estava frustrada. Estávamos a cinco dias de abstinência sexual. Tivemos relações no dia em que voltei de Los Angeles, mas depois eu a cortei. Tudo fazia parte do meu plano. Nós iríamos desfrutar o dia com Beth, Santana pegaria minha irmã/enteada no fim da tarde após a pequena recepçãozinha em homenagem a minha esposa. Daí, sem Beth em casa, ou qualquer outra pessoa, teríamos a nossa noite especial. Eu planejava dar a minha esposa a única parte ainda virgem no meu corpo na posição que ela mais gostava de fazer quando usava nosso amiguinho.

Mas não era só a questão sexual que me deixava ansiosa. Se Quinn conseguir se aproximar de Beth, pode ser que ela possa se abrir mais ao assunto de expandir a nossa família. A gente nunca teria o luxo de ser “espontânea” ou de expandir a família por um “acidente”. Como se pode ser espontâneo com inseminação artificial ou mesmo em adoções, que requeriam processo burocrático para tal?

Eu tenho vontade de adotar, mas não no primeiro filho. Queria engravidar, parir, criar. Encontrar um doador de esperma não deveria ser tão difícil. Poderia oferecer um bom dinheiro para algum primo de Quinn doar esperma. Ou quem sabe algum meu, se bem que seria estranho pedir isso a Julio sabendo que ele está casado com Mercedes. Meu primo August, filho de tia Rosa, era mais afastado, mas ele tinha 14 anos, e Simon ainda era um molequinho com a mesma idade de Beth.

Também havia um método autorizado desenvolvido na Inglaterra em que se utiliza material genético de dois óvulos e um esperma mais fazer a fecundação quando a esposa apresenta problemas de ordem genética. Esse era legalizado, porém caro, e o bebê teria a maior parte das características de uma das mães. Havia outro, ainda mais radical e controverso, em que se realizava fusão do material genético de dois óvulos. Chamam isso de fecundação virgem. Há muitos embriões formados com essa técnica, mas os cientistas costumam usá-los como material para células tronco porque o desenvolvimento completo não era legalizado e enfrentava forte resistência social. Ainda assim, na Alemanha, as discussões estavam avançadas. Esse caso me interessava e estava acompanhando de perto cada novidade que surgia. A possibilidade de ter um filho meu e de Quinn atraía e muito, apesar de que o preço para tal deveria ser tão caro quanto fazer turismo espacial em que você deposita uma pequena fortuna e ainda precisa se preparar por no mínimo seis meses para entrar num foguete só para dar algumas voltinhas na estação espacial enquanto os astronautas de verdade levavam suprimentos para o local, novos materiais para experimento científico e faziam a troca de pessoal.

“No que está pensando?” – Quinn me abraçou por trás enquanto penteava meu cabelo em frente ao espelho do banheiro.

“Em coisas.”

“Coisas boas ou coisas más?”

“Coisas importantes, como o roteiro de passeio com Beth.”

“Ontem foi até melhor do que esperava. Então estou otimista” – Quinn beijou meu ombro antes de me libertar do abraço.

Deixei propositalmente que Beth decorasse todos os cupcakes e me ajudasse em outras pequenas tarefas na cozinha para o jantar. Ela aceitou e conversamos sobre nossos pais, de como meu pai estava atolado com as coisas no hospital e minha mãe foi convidada a ajudar no grupo de artes cênicas da OSU. Que ela entrou para a classe de balé e a professora já falava nas apresentações de meio de semestre e de final de ano. Mas antes de tudo, meus pais e ela viajariam para a Flórida passar uma semana na Disney World. Eu pagaria um bom dinheiro para ver meu pai, e repito, meu pai, usando qualquer coisa o Harry Potter. Fiz um acordo com Beth de que ela registraria o momento e postaria no Instangram, que era privado, assim como os de toda família por minha causa. Eu tinha um público apenas para questões promocionais necessárias: hoje em dia eu tinha que dialogar com a minha base de fãs.

Apesar de Beth ter relaxado um pouco da amarra em que havia chegado, ainda conversou pouco com Quinn e por vezes até deixava de sorrir quando minha esposa comentava algo ou mesmo aparecia na cozinha.

“Vou fazer panquecas para o café. Enquanto isso, você poderia ajudar a sua filha a se vestir ou algo assim.”

“Ela tem sete anos, Rach. Não creio que vá precisar de alguma ajuda para se vestir.”

“Então vá acordá-la daqui a mais ou menos meia hora.”

“Eu acordar Beth? Se eu já sou a bruxa na visão dela, vai piorar se eu acordá-la. Vai você.”

“Impressionante como você se transforma numa completa covarde quando o assunto é a sua própria filha.”

“Tenho minhas razões.”

De fato, ela tinha.

Fui a primeira a sair do quarto e quando espiei o quarto que era de Santana, encontrei Beth já acordada. Ela estava sentada na cama mexendo no tablet. Meus pais tinham visão interessante de mundo. Beth tinha um tablet, mas o celular dela era o mais rudimentar possível para não distraí-la. Nunca entendi tal lógica.

“Bom dia, Beth. Não imaginei que acordaria cedo.”

“Não dormi direito” – ela resmungou e eu me aproximei.

“A cama não é confortável suficiente?”

“Não, é que eu sempre acordo no meio da noite e bebo um pouco de água. Minha mãe sempre deixa a minha garrafinha de água ao lado da minha cama à noite. Então eu acordei, vi que não tinha a minha água. Depois não consegui dormir direito.”

“Você poderia ter se levantado e tomado água.”

“Fiquei com medo.”

“Do quê? Da gente brigar contigo?” – ela apenas mexeu com os ombros e olhou para baixo – “Beth, a gente jamais brigaria por causa disso e você só não teve a água ao lado porque eu desconhecia esse seu hábito. De qualquer forma, você poderia ter levantado, ido à cozinha e bebido a sua água. Ou mesmo ter acordado a gente. Não haveria problemas.”

“Ok” – continuava acanhada.

“Vamos fazer o seguinte: porque você não escova os dentes e depois me encontra na cozinha para me ajudar a fazer panquecas?”

“Pode ser.”

Aproximei-me dela e dei-lhe um beijo na testa antes de sair do quarto. Quinn já estava na cozinha adiantando o café da manhã. Dei um beijo no rosto da minha esposa e começamos a trabalhar na refeição. Beth chegou em silêncio, mas procuramos inseri-la em pequenas tarefas, como organizar a mesa. Para a minha surpresa, a campainha tocou. Não esperava ninguém àquela hora do dia. Quando atendi, minha irmã apareceu com capacete em mãos. Não usava roupas de ciclista quando dava as voltas dela de bicicleta no Central Park, mas desde um acidente que havia sofrido antes mesmo do meu casamento, passou a usar capacete.

“Oi, Ray!” – me deu um beijo no rosto e entrou em casa sem a menor cerimônia.

“Santy!” – Beth apareceu gritando e se jogou em cima da minha irmã, que a ergueu já com dificuldade.

“Bom dia, docinho” – a abraçou e a girou no ar – “Como vai a minha garotinha favorita?”

“Com raiva porque você não me buscou ontem.”

“Ah, pequena, esse não foi o combinado. Mas não faz mal porque hoje a senhorita vai dormir na minha casa. O que acha?”

A interação não me fez notar a aproximação de Quinn. Minha esposa observava a cena com atenção e pelo jeito, sabia que sentia uma ponta de ciúme. Ela sempre sentiu ciúmes de Beth com Santana apesar de nunca ter admitido.

“Dormir na sua casa hoje?” – Quinn questionou cruzando os braços. Santana e eu trocamos olhares.

“Ops, disse cedo demais?”

Acenei positivo. Sim, ela disse cedo demais. A noite que preparava para Quinn às sós era uma surpresa.

“Feliz aniversário, Fabray!” – Santana desviou o assunto, colocou Beth no chão e deu um abraço na minha esposa.

“Você está suada, San.”

“Tem gente me adora assim” – ela sorriu e piscou maliciosa.

“Eu me pareço com o Johnny por um acaso?”

“Você é uma fresca, Fabray. Vim aqui para tomar café da manhã com a aniversariante e você me recebe com esse cenho fechado? Sei que está envelhecendo e ficando cada vez mais rabugenta, mas não precisa ficar com raiva. É a vida, sabe?”

“Santy!” – dei um tapinha no ombro da minha irmã, que sorriu.

Sentamos as quatro para tomar café da manhã. Minha irmã falou sobre amenidades. O trabalho tanto na Rock’n’Pano quanto na Weiz estava indo muito bem. A julgar pelos valores depositados na minha conta bancária, posso dizer que sim. Ela contratou uma segunda funcionária para trabalhar na administração da Rock’n’Pano e deixou Tomiko na gerência. Não conheço tão bem assim Tomiko, mas a considero uma esquisita simpática, ao menos. Santana confia nela e para mim isso basta. Também combinamos os ensaios de amanhã para o lançamento do meu disco na sexta-feira. Nosso encontro seria à noite na casa de Tony, o que deixaria Quinn como babá de Beth.

“Quase ia me esquecendo” – Santana disse quando estava se preparando para ir embora. Tirou um envelope meio amassado da pequena mochila e o entregou a Quinn.

“Devo ter medo?” – minha esposa ergueu uma sobrancelha.

“De nada, Fabray.”

Quinn abriu o envelope e vi um sorrisinho brotar dos lábios dela. Estiquei o pescoço para espiar o que era.

“Ingressos para o show do Muse... e um cartão? Tim Xavier... esse cara é da Greenlight Films. É um produtor conhecido de filmes de terror.”

“Tim Xavier é irmão do diretor do escritório da Weiz em Washington. Eu comentei com ele que você e o tapado do Santiago tinham um projeto incrível em mãos, mas não queriam simplesmente vendê-lo, por isso não encontravam pessoas dispostas a apostar num idiota que era dublê de diretor de arte e numa diretora de fotografia de vídeos institucionais e vídeo clipes.”

“Eu fiz muito mais que isso” – Quinn reclamou – “Não sabe que agora eu vou filmar a campanha publicitária da Shell?”

“Enfim...” – Santana desconversou – “Tim Xavier estará de passagem por Nova York nesse fim de semana e vai assistir o show do Muse neste sábado porque ele é amigo dos integrantes da banda e vai prestigiar. Ele foi avisado de que uma jovem mulher chamada Fabray acompanhada de um panaca cabeludo com feições latinas vão aparecer no camarote para alugar a atenção dele sobre um projeto. Sugiro que você treine a lábia, Fabray. Fiquei sabendo que Tim Xavier é um maluco apostador. Feliz aniversário.”

“Santana...” – Quinn ficou sem palavras e deu um abraço apertado na minha irmã – “Obrigada, obrigada!”

“Mas sábado também tem o meu show” – fingi que estava chateada e fiz charminho.

“Rachel, eu vou te recompensar se me permitir faltar neste show.”

“Fazer o quê?”

Quinn abriu um sorriso do tamanho do mundo e me deu um beijo. Sabia o quanto era importante não desperdiçar oportunidades, sobretudo para Quinn, que era empregada de uma empresa que não queria nem ouvir a respeito do projeto, e não tinha um agente para representá-la. Santana e eu trocamos olhares. Agradeci telepaticamente por essa ajuda. Sei lá se daria certo, mas era uma tentativa.

Depois que Santana foi embora (e Bena chegou), consultei a minha pequena lista de atividades que poderíamos fazer com Beth pela cidade. Eu tinha encomendado algumas comidinhas para a recepção de Quinn e Bena estava instruída de organizar tudo. A idéia era chegar em casa no fim da tarde e ver tudo pronto e arrumado para a recepção surpresa.

“Você conhece Rockefeller Center?” – perguntei.

“Não que eu me lembre” – Beth respondeu.

“Lá é um lugar muito legal, cheio de coisas a se fazer e tem um mirante que dá para ver a cidade inteira” – Quinn procurou passar o máximo de entusiasmo.

Entusiasmo, aliás, que era legítimo. Lembro da primeira vez em que fui ao Rockefeller Center com ela. Já tinha visitado o local com bubbee numa das vezes em que a acompanhei a Nova York quando ainda morava em Lima. Mas ir até lá acompanhada de Quinn, Santana e Mike em nosso primeiro natal em Nova York foi uma experiência nova. A gente vivia duro, o dinheiro era sempre contado e recontado, e por isso procurávamos opções para sair e se divertir sem precisar gastar muito dinheiro. No máximo as passagens do metro, se possível. Resolvemos ir ao Rockefeller para ver os enfeites de natal, a famosa pista de patinação e tudo mais que fosse possível sem pagar ingresso. Foi simplesmente mágico. Lembro dos olhos de Quinn brilharem com tanta beleza. Em especial quando viu a grande árvore de natal. Nos divertimos posando para fotos, observando e apreciando o ambiente. Jantamos um sanduíche do Subway e voltamos felizes para casa com a experiência lúdica.

Era um lugar repleto de otimismo, por isso achamos válido mostrá-lo a Beth no primeiro dia de passeio efetivo em Nova York. Vestimos roupas leves e sapatos confortáveis para enfrentar o calor do verão quente da cidade. Levamos garrafas de água e eu tive o cuidado de sair de boné e óculos escuros para dificultar que alguém me reconhecesse e pedisse autógrafo e fotos. Eu não me importava com os fãs. A maioria era respeitosa e eu nunca tive sérios problemas com psicóticos seguidores ou algo nesse sentido. No entanto, aquele era um passeio com minha família, era algo primordial para o relacionamento entre Beth e Quinn, e não gostaria de ser incomodada.

Em vez de carro, metrô. Era mais legal assim. Mais Nova York. Sem falar que nos pouparia de ter de pagar estacionamento e pegar trânsito. Beth parecia estar curiosa com aquele tipo de passeio. Disse que andou de metrô apenas uma vez com meus pais, mas que nem se lembrava direito. Sei que ela também andou em Madrid e Barcelona, mas ela era apenas um bebê e seria injusto querer que ela tivesse algum tipo de lembrança.

Beth perdeu parte do entusiasmo no Rockefeller porque disse que ali tinha coisas mais de adulto do que para criança. Talvez tivesse razão. Ela agia com educação comigo, mas ainda relutava com Quinn. Talvez fosse o meu desejo para que as coisas dessem certo, mas havia momento em que sentia que a guarda dela abaixava um pouco e Quinn conseguia pequenas vitórias. O ponto alto, também literalmente, foi quando subimos ao mirante e demos moedinhas para que Beth pudesse colocar no binóculo público e conferir mais detalhes da cidade.

“Isso é mais legal do que o Google Glass.”

“Desde quando você usa o Google Glass?” – aquele ainda era um serviço caro e francamente estranho. Experimentei uma vez e a sensação que tive era de que tinha virado um cyborg. A experiência tradicional ainda era melhor.

“O pai do meu amigo tem um e me deixou usar um pouco.”

“É quase uma da tarde” – Quinn olhou para o relógio – “Está com fome?”

“Um pouco” – um pouco na linguagem infantil significava morrendo.

“Tem um restaurante aqui em que podemos ir” – Quinn sugeriu – “Eles servem ótimos hambúrgueres. Um mais diferente que o outro”

“Hambúrguer?” – franzi a testa e apenas gesticulei a boca quando Beth não estava me olhando. Quinn gesticulou de um jeito que era para eu apoiar. Era contra esse tipo de alimentação, em especial para uma criança. As opções saudáveis deveriam ser prioridades. Por outro lado, minha esposa estava numa missão e eu não a questionaria.

“Pode ser” – Beth falou fazendo pouco caso. Estava mesmo disposta a não dar o braço a torcer tão fácil.

Descemos do mirante e caminhamos até o restaurante em questão que ficava dentro do complexo do Rockefeller. Beth ficava sempre um pouco à frente de mim e Quinn com um fone de ouvido para escutar as canções que gostava e não prestar atenção em nossas conversas, que passávamos a maior parte do tempo lado a lado.

“Rachel Berry?” – olhei para o lado a procurar a voz masculina que me chamou – “Senhorita Berry” – um jovem adolescente próximo a mim acenou e se aproximou com certa cautela. Quinn parou ao meu lado. Ela era sempre tomava postura vigilante quando os fãs se aproximavam. Ela tinha natureza paranóica e dizia que alguns poderiam ser perigosos.

“Sim?” – perguntei.

“Eu gosto tanto do seu trabalho. Sou seu grande fã” – o adolescente parecia extasiado e era claramente gay. Raramente homens mais velhos se aproximavam para pedir um autógrafo ou uma foto. E quando o faziam, nunca era para eles, mas sim para o filho, a esposa, ou alguém mais que supostamente me admira. Em geral, quem me abordava eram garotas e gays, sei lá porque razão. Talvez seja por causa da minha carreira na Broadway – “Será que você poderia tirar uma foto comigo?”

“Claro.”

Ele posou ao meu lado rapidamente enquanto um amigo (ou seria namorado?) tirou a foto.

“Obrigado, senhorita Berry. E espero que você fique com Jack no final” – se referiu ao personagem de Luis Segal.

“Talvez. Tenha uma boa tarde.”

O garoto pareceu satisfeito e logo foi embora com o amigo conferindo a imagem registrada no celular. Segurei no braço de Quinn e segui o meu caminho. Foi quando notamos algo errado. Beth. Ela já não estava mais poucos passos à frente de nós.

“Cadê Beth?” – Quinn disse com a voz trêmula, já à beira de entrar em pânico – “Beth!” – falou alto, o que chamou a atenção das pessoas ao redor.

O Rockefeller Center era um lugar que costumava receber muitos turistas e ainda havia um bocado de gente que trabalhava ali. Era horário de almoço, o que aumentava a circulação de pessoas pelos espaços. Olhei para os lados, ao redor, Quinn e eu começamos a andar rápido como se tivéssemos esperanças de alcançá-la caso tivesse disparado à frente.

“Beth!” – Quinn estava quase gritando e nada de resposta.

Meu coração estava disparado. Eu via a minha esposa estar à beira do desespero, olhando para os lados, chamando por Beth, os olhos abertos, tensos. Olhava para os lados. Procurava pela garotinha de cabelo loiro escuro, camiseta rosa claro e mochila de ursinho.

“Beth!” – gritei enquanto andávamos rápido como se quiséssemos alcançá-la. O problema é que sequer tínhamos certeza se ela estava à frente ou se estávamos indo para o lado certo.

“Oh meu deus, oh meu deus” – Quinn murmurava em agonia – “Beth” – o grito dela era de pânico absoluto.

Segurei a mão de Quinn. Ela estava gelada, trêmula. Minhas condições não eram melhores, mas eu não podia me permitir entrar ao pânico. Uma de nós tinha de pensar e essa definitivamente seria eu.

“Calma. Vamos ter calma.”

“Como assim calma?”

“Vamos pensar um pouco... o celular dela... é isso, vamos ligar no celular dela.”

Peguei o meu aparelho e foi quando percebi que não tinha o nome de Beth registrado entre os meus contatos. Fechei os olhos envergonhada.

“Você tem o contato dela no seu celular?” – perguntei com a voz diminuída.

Quinn pegou a bolsa (que era grande como uma sacola) e vasculhou.

“Acho que eu não trouxe. Por deus, eu não trouxe...”

Voltei a minha atenção para o meu celular e pensei em ligar para o número dela. Uma música surgiu do interior da bolsa. No pânico, ela não conseguia sequer achar o aparelho. Peguei a bolsa da minha esposa e a vasculhei. Encontrei o celular e procurei pelo contato de Beth. Estava chamando, mas ninguém atendia. Tentei uma segunda vez. E uma terceira e uma quarta. Quinn parecia que ia desmaiar e eu não poderia deixá-la naquele estado.

“E se alguém pegou ela? Isso acontece todos os dias nessa cidade” – Quinn estava quase em pranto – “Beth!” – berrou dessa vez e chamou definitivamente a atenção das pessoas ao lado.

“Posso ajudar as senhoritas?” – um moço com uniforme da segurança local se aproximou.

“Minha filha” – Quinn falava e chorava. O queijo dela tremia – “Eu me perdi da minha filha.”

“Calma, senhora. Ela não deve estar longe. A menina tem celular?”

“Tentamos entrar em contato sem sucesso” – procurei manter minha postura.

“Pode descrevê-la?” – o segurança insistiu.

“O nome dela é Beth. Tem sete anos, loira, dessa altura, está de camiseta rosa e tem uma mochila de ursinho” – a descrevi enquanto acessava a foto que havia acabado de tirar no mirante – “É essa menina.”

“Ok, vamos tentar achá-la com a ajuda que pudermos ter” – pegou o rádio – “Emergência, código 22. Repito, emergência código 22.”

“Emergência anotada, Steve. Pode prosseguir” – ouvimos a resposta chiada.

“Sexo feminino, sete anos, loira, camiseta rosa, mochila de urso. Repetindo: sexo feminino, sete anos, loira, camiseta rosa, mochila de urso” – voltou a atenção para nós – “Os demais seguranças vão ser avisados. Se a menina estiver no complexo, ela vai ser achada. Fiquem calma.”

“Não me peça para ficar calma!” – era assustador ver Quinn a beira da histeria – “Minha filha está perdida por aí, sabe-se lá na mão de quem!”

“Quinn... calma que tudo vai dar certo.”

“Isso é culpa sua!” – ela me empurrou forte o suficiente para eu dar um passo para trás para não perder o equilíbrio – “Se não tivesse parado para atender aquele fã estúpido, nada disso teria acontecido.”

“Minha senhora!” – o segurança pegou Quinn pelos ombros e a sacudiu forte, como se quisesse fazê-la voltar ao senso – “Sua filha está sendo procurada, por isso, calma” – falou firme – “Entrar em pânico vai ajudar em nada. Então respire fundo e tente se controlar!”

“Rach...” – quase chorei ao ver a expressão dela de pânico genuíno.

“Se curve e coloque as mãos nos joelhos, Quinn. Agora!”

“Não... Beth...”

“Agora!” – Quinn obedeceu até por eu não ter dado alternativa – “Agora respire fundo. Preciso de você inteira Quinn” – massageei as costas e a região dos ombros.

“Acho que estou melhor” – ela disse hesitante – “E um pouco tonta.”

“As senhoras não querem sentar?” – o segurança sugeriu. Não respondi de imediato. Foi quando o segurança recebeu uma comunicação pelo rádio. Ele olhou para nós – “Qual o nome completo da garotinha?”

“Elizabeth Corcoran-Lopez. O apelido é Beth” – respondi.

O segurança repetiu as informações e disse outras coisas. Quinn e eu aguardávamos ansiosas por uma posição.

“Um dos nossos a encontrou em frente à loja de suvenir. Estão a caminho.”

O alívio que senti foi tão grande e imediato que foi como se tivesse saído um caminhão de cima das minhas costas. Beth acompanhada de uma segurança chegou até nós. Ela também parecia assustada. O que aconteceu é que enquanto fui parada pelo fã e Quinn ficou comigo, Beth seguiu caminhando sem perceber que havíamos parado. Ela avistou uma loja de brinquedo e correu para lá, como toda criança gosta de fazer e foi quando se viu perdida.

“Me odeie como quiser, mas nunca mais faça isso comigo!” – Quinn disse ao abraçá-la forte. O alívio na minha esposa era monumental.

Agradecemos aos seguranças pela eficiência no trabalho e tivemos um rápido debate sobre o nosso almoço. O fato era que Beth disse que estava faminta, apesar de o passeio ter perdido a graça depois do susto. Decidimos ir ao restaurante mesmo assim comer o tal hambúrguer. Seria até uma ajuda a mais para esfriarmos a cabeça.

Foi uma das refeições mais silenciosas que tive em companhia de alguém.

Voltamos para casa de táxi. Beth ainda era uma criança e se recuperava do susto rapidamente e eu já estava disposta a seguir em frente depois da lição aprendida: nunca descuide de uma criança. Mas Quinn passou pensativa por todo trajeto. Se eu conhecia bem minha esposa, diria que ela estava decepcionada consigo mesma. Tanto que ela entrou em casa e foi direto para o quarto.

“Beth, porque você não ajuda Bena a arrumar as coisas para a festa quase surpresa de Quinn?”

“Você me manda muito para a cozinha” – ela reclamou.

“Pode ir ao escritório e brincar com o meu teclado, se quiser. Ou assistir televisão. Têm filmes, livros. Só não tem videogame porque está na casa de Santana. Fique à vontade para fazer o que quiser.”

“Ok” – ela correu para frente da televisão.

Entrei no quarto encontrei Quinn sentada na beira da cama.

“Que dia!” – passou a mão pelos cabelos – “Nunca dei tanto vexame em toda minha vida.”

“Não foi um vexame. Só ficou nervosa e com toda razão” – sentei-me ao lado dela e passei a mão nas costas procurando confortá-la o melhor que podia.

“É por essas e outras que penso que entregar Beth à sua mãe foi a melhor decisão da minha vida” – os olhos delas estavam marejados – “Beth tem toda razão em me odiar. Eu sou um fracasso. Fui um fracasso na primeira vez em que tentei agir como mãe e olha que foi um simples passeio.”

“Quinn Fabray. Você pode ser muitas coisas, mas não é um fracasso e nem uma mãe ruim. Afinal, você é uma Fabray, certo?” – procurei puxar para o orgulho dela – “O que aconteceu hoje foi um acidente, um descuido com final feliz e lição aprendida.”

“Será” – ela franziu a testa – “Jamais deveria ter tirado os olhos de Beth. A culpa foi minha.”

“Nós duas não deveríamos ter tirado os olhos dela nem por um segundo.”

“É... mas você não é a mãe dela, Rachel. Eu sou” – o tom era duro – “Se você queria uma resposta sobre aquela discussão em aumentar a família, aí está ela.”

“Não seja dura consigo mesma, Quinn. Isso não faz o menor sentido. O que aconteceu foi apenas um acidente, um susto. Beth está bem. Todos nós estamos. Remoer vai adiantar absolutamente nada.”

“Só preciso de um tempo sozinha para absorver isso, ok?”

Acenei e dei um beijo no rosto dela antes de sair do quarto. Pensei sinceramente em ligar para todo mundo e desmarcar a recepção. Por outro lado, deixar o pessimismo de Quinn vencer o dia em pleno aniversário dela não me pareceu correto. Como voltei mais cedo que o esperado, ajudei Bena em organizar as coisas. Arrumamos a mesa e até Beth, vencida pelo tédio da televisão, nos ajudou com a organização em trabalhos pequenos, de criança.

“O que estão fazendo?” – Quinn franziu a testa quando resolveu sair do quarto. Encontrou a mesa da sala arrumada.

“Uma festa para você” – respondi seca e fiquei grata por Beth continuar a arrumar o que foi designada como se nada tivesse acontecido.

“Mas...”

“Sem mais, Quinn Berry-Lopez Fabray. Sugiro que vá tomar um banho, colocar uma roupa apropriada porque daqui a pouco alguns dos seus bons amigos vão chegar para tomar um vinho contigo em honra o seu 24º aniversário.”

“Eu não estou no clima...”

“Se não está, que encontre um rapidinho” – motivar a depressão momentânea de Quinn seria a pior coisa que poderia fazer, por mais culpada que me sentisse por ser o catalisador da situação adversa.

“Você me deve uma, Rachel.”

“Que seja.”

Ao menos Quinn obedeceu. Vestiu-se num informal bem arrumado como era o clima requerido para a pequena recepção. Fiz o mesmo e Beth colocou um vestido e abriu um sorriso quando sugeri que ela colocasse os pijamas na mochila para dormir na casa de Santana. O plano original continuaria. Johnny foi o primeiro a chegar. Presenteou Quinn com um bom whisky. Como ele era conhecedor da bebida, garantiu que aquele era um de excelente qualidade. Sendo assim, imagino que se fosse pesquisá-lo na internet descobriria que se tratava de um exemplar caro e Johnny sequer tinha dinheiro sobrando. Ele era apenas um escritor que se sustentava sendo um tatuador. Santiago chegou em seguida, depois Kurt, Luis, Roger, alguns poucos amigos da Bad Things. Santana foi uma das últimas a chegar alegando atraso por culpa de uma reunião.

Na medida em que a recepção caminhava, senti as feições de Quinn suavizando mais e mais. Boa coisa que ela se distraiu. Reparei que ela, Roger e Santiago conversaram mais reservadamente e imaginei se isso teria a ver com o projeto do filme. Perguntaria depois. Cantamos parabéns, apreciamos o bolo e próximo das onze horas, Beth já tinha ido para a casa de Santana, assim como todos os outros convidados já tinham se retirado. O apartamento estava todo para nós duas.

“Precisamos arrumar essa bagunça...”

“Nada disso” – a puxei pelo braço para um abraço – “Paguei um dia extra para Bena especialmente para isso.”

“E mandou Beth para dormir com Santana...”

“Você entendeu as minhas intenções” – nos beijamos.

“Rach?” – ela me abraçou forte.

“Hum?”

“Se importaria de eu te frustrar por hoje?”

“Hum?” – fiquei surpresa.

“Olha, eu adorei tudo que fez por mim, por ter convidado nossos amigos e até pessoas que sei que não gosta tanto assim só por minha causa. Tenho certeza que planejou algo maravilhoso para fazermos em qualquer lugar deste apartamento, que faria eu me lembrar pelo resto da vida, mas poderíamos adiar?” – Quinn tinha de estar ainda muito chateada para recusar a minha oferta de intimidade.

“Ainda não superou o susto” – sentei-me na poltrona da sala – “Quinn...”

“Eu sei o que vai dizer, Rach, e acho que tem toda razão. Mas você me conhece bem e sabe como funciono. Deixa eu remoer isso por hoje, me dê um tempo, que prometo compensar depois.”

“Tudo bem” – o que poderia fazer mais? Voltei a me levantar e peguei na mão da minha esposa – “Vem... se você não quer o seu presente por hoje, então permita-me te abraçar enquanto dormimos.”

“Essa é uma ótima idéia. Obrigada. Obrigada mesmo.”

...

14 de maio de 2018

(Santana)

“Esse seu estilo minimalista precisa ter um fim” – minha mãe criticou tão logo colocou os pés na minha casa pela primeira vez – “Às vezes fico em dúvidas que se a garota que ocupava aquele quarto de decoração escura, porém elegante, em Lima é a mesma que ocupa essa casa de paredes claras, poucos móveis e pouca decoração.”

“Aquela menina definitivamente não é mais a mesma, apesar de que ela continua com ótimo gosto. Não acha, mamãe?”

“Não posso negar, filhinha” – ela colocou um breve sorriso falso no rosto e continuou a analisar o meu apartamento.

Shelby chegou hoje na cidade e veio direto para minha casa sem a companhia de papi, que ficou em Columbus por conta de uma situação de emergência que aconteceu na cidade. Houve um acidente grave com um ônibus nas proximidades da capital de Ohio e muitos dos feridos foram levados para lá. Meu pai, como o único cirurgião geral atendente, precisou ficar para coordenar a equipe de residente durante o atendimento. Vi alguma coisa na internet quando Shelby avisou que ela embarcou só. Sete pessoas estavam em estado grave.

O plano original era dos meus pais irem para um hotel, como sempre. Mas como seria só Shelby, achei por bem levá-la para minha casa, apesar de o apartamento de Rachel ter quarto e cama extra. Ela acabaria indo para lá, tinha certeza disso. O meu plano era retardar o encontro o máximo possível, ou mesmo convencê-la a ficar a fim de evitar que minha adorável mãe descarregasse a bronca dela em cima de Quinn e Rachel por causa do episódio com Beth. Minha irmãzinha deu com a língua nos dentes sobre o que aconteceu e Quinn levou uma dura chamada por telefone. Foi um saco.

Shelby também estava bronqueada porque levamos Beth até ao bar para assistir ao show de lançamento do EP de Rachel. Tudo bem que deveríamos ter contratado uma babá para ficar com Beth, mas a pequena insistiu. Quinn foi contra, Rachel foi a favor e eu endossei, afinal, todo mundo que conhecíamos e confiávamos estaria lá e ninguém teria comportamento abusivo na frente dela. Por via das dúvidas, ela ficou o tempo todo comigo no palco sendo a minha assistente enquanto Rachel detonava na frente da banda.

Gostei da experiência em ficar mais ao fundo do palco fazendo os vocais. Tive a oportunidade de observar algumas coisas. Tony era um baterista primoroso e trocava olhares o tempo todo com Dana, que tocou baixo. Eles basicamente sustentaram a banda inteira. Johnny era um guitarrista inseguro, ou muito tímido. Ele passou a maior parte do tempo mais ao fundo do placo olhando para o set list e para o pedal. O bom é que ele não deu bola para as galinhazinhas da platéia que tentavam chamar atenção dele. Eu voaria no pescoço de alguma que tentasse invadir o palco ou avançar o sinal nos bastidores.

E tinha a minha irmã como frontman numa postura muito diferente daquilo que me habituei vê-la quando ela cantava os solos no nosso coral em Lima (teatro era outra história). Ela era naturalmente o centro das atenções, as pessoas na platéia marcaram presença porque já eram fãs (e eles lotaram o espaço), diferente do que acontecia com artistas novos. Havia interesse da imprensa considerando que Rachel era uma atriz da Broadway e que fazia parte do elenco de uma série popular da HBO. O trabalho no EP já tinha sido elogiado por muitos dos críticos. Então o objetivo da minha irmã era alcançar legitimidade como cantora e música, não como uma diva. Daí os gestos mais contidos, a adoção de um diálogo direto com os presentes, e ela estava mesmo disposta a tocar o teclado direito. Fiquei orgulhosa.

Repetiríamos a noite hoje e amanhã. Shelby praticamente exigiu uma participação especial para cantar uma canção junto com as filhas uma vez que ela não foi convidada para participar do disco, o que considerou uma ofensa. Claro que Rachel topou. Minha mãe poderia ser desconhecida, mas era uma tremenda cantora. Isso ninguém poderia negar.

“Como você me oferece hospedagem se não tem um lugar reservado?” – ela vasculhou o meu escritório que ainda estava sendo montado.

“Tem a minha cama. A não ser que a senhora queira dormir na casa de Rachel e dividir o quarto com Beth.”

“Seria mais apropriado, concorda?”

“Beth não reclamou quando ela passou uma noite comigo.”

“Imagino que não. As duas são parceiras do crime como nunca vi. O que fizeram? Jogaram vídeo game até tarde e comeram chocolate no café da manhã? Sorvete?”

“Nem tanto. Bananas carameladas. Bem saudável. Isso foi depois de levá-la para andar no Central Park, o que também é saudável. A gente só não jogou vídeo game até tarde porque Beth chegou com sono. Dormiu com um anjo.”

“Você é impossível, Santana.”

“Eu sei, eu sei.”

“Preferia que Beth tivesse ficado aqui contigo.”

“Sem chance. Tive de resolver um monte de coisas nessa semana para poder viajar na segunda-feira com Johnny. Beth ficaria entediada se ficasse confinada num escritório. Quinn cuidou muito bem dela.”

“A ponto de perdê-la em Nova York? Falo de Nova York, Santana, não de uma cidade ovo como é Lima ou até mesmo Columbus. Nova York!”

“Primeiro lugar, ela não se perdeu em Nova York. Foi só uma desatenção no Rockefeller Center e a senhora sabe como é lá: cheio de distrações e também de seguranças. Depois, pessoas se perdem em Lima. Lembra do caso em que aquela menina lá de McKinley se perdeu em Lima Heights e só foi encontrada no dia seguinte?” – Shelby disse com o olhar para eu parar em enrolar ela – “É sério, houve um caso assim. E a garota tinha uns 15 anos.”

“Só se a garota fosse Brittany. Então eu acreditaria na história.”

“Brittany não é incapaz, ela só tem déficit de aprendizagem” – coloquei agressividade na voz.

Foi inevitável. Até hoje me irritava profundamente quando alguém tenta caçoar da minha melhor amiga por causa de uma deficiência que ela vai carregar para o resto da vida. Eu poderia estar brava com Brittany, ou mesmo com clara intenção de evitá-la. Ainda assim jamais admitiria que alguém fizesse piadas ou insinuações com a condição dela. Pela cara que Shelby fez, ela entendeu o recado.

“Desculpe.”

Não respondi. Não aceitei as desculpas de imediato. Ninguém caçoava de Brittany pela condição intelectual dela. Ninguém. Nem mesmo a minha própria mãe. Sobretudo quando minha amiga ainda estava do outro lado do país e não poderia sequer sonhar em se defender.

“Desculpe” – Shelby repetiu – “Foi uma referência infeliz. Você sabe que eu respeito e gosto da Brittany.”

“Ok” – desarmei um pouco.

“Tem falado com ela? Com Brittany?”

“Pouco” – disse ainda um pouco armada – “Sei que ela está de mudança para Nova Jersey. Só que não estarei aqui para ajudar.”

“Mesmo? E o que Johnny acha disso? De ver Brittany tão perto de você mais uma vez?”

“Não há riscos da minha parte. Não quero mais nada com Brittany além de amizade.”

“Tenho certeza?”

“Tenho” – disse com serenidade.

“Fico feliz por você e por Johnny também. Gosto muito dele, filha. Principalmente porque te faz feliz. Você passou um ano muito amargo quando terminaram. Talvez seja por isso que me referi a Brittany daquela forma. Ficou o ranço.”

“Brittany não fez sozinha.”

“Eu sei.”

“Isso é página virada, ok, mãe?”

“Certo.”

Shelby olhou mais uma vez para o ambiente e depois foi até a janela conferir a paisagem. Se você esticasse o pescoço para o lado poderia ver o Central Park. Bem que eu gostaria de um prédio com varanda, como aquele em que morei no Queens.

“É um lugar excelente. Apesar do seu apartamento ser um pouco menor, ele me parece mais bem distribuído e melhor localizado do que o de Rachel.”

“É porque fica pouca coisa mais próximo do que o Central Park.”

Shelby espiou mais uma vez pela janela da sala antes de sentar-se no sofá e finalmente relaxar um pouco. Ela pegou um panfleto sobre o show de Rachel que estava em cima da mesa de centro e olhou fixamente para ele. O que se passava na cabeça dela, eu não tinha a mínima idéia. Havia uma foto do tamanho de um postal com Rachel à frente e a banda atrás. Eu estava logo à esquerda da minha irmã, no fundo junto com os outros. Foi Carl Tomiko quem fez a arte, uma muito simples e eficiente, e quem bateu a foto foi Quinn no parque que fica perto da casa de Tony e Dana. Posamos no playground vazio. Ficou interessante. Quinn tinha bom olho para a imagem. Vendo minha mãe ali, no meu sofá, olhando a nossa foto, me veio a curiosidade.

“Posso te fazer uma pergunta? Uma que talvez a senhora não fique à vontade para responder?” – sentei-me ao lado dela. Shelby olhou intrigada para mim e relutou um pouco para acenar positivo, como se quisesse adivinhar o questionamento – “Por que você não gosta da Quinn?”

“Eu gosto dela” – respondeu súbito de mais, defensivamente demais.

“Mãe!” – pressionei. Shelby evitou olhar para mim – “A senhora ignora Quinn a maior parte do tempo. Até quando está na casa dela. Por um acaso isso tem a ver com Beth?”

“Eu disse que gosto de Quinn. Eu a respeito. É uma garota forte que lembra muito a mim mesma. Então eu entendo certas motivações dela e isso pode ser ruim para Rachel ou Beth caso as coisas saiam do controle.”

“Como?”

“Quinn e eu temos muitas coisas em comum. Coincidências de vida. Nós duas fomos criadas por pais duros, mães submissas e sob fortes dogmas religiosos. Eu como mórmon e Quinn como presbiteriana. Nós duas nos rebelamos de maneiras diferentes. Eu praticamente saí correndo de casa tão logo completei 18 anos. Bom, Quinn é gay, logo era uma rebelada natural. Nós duas engravidamos, verdade que em situações distintas, mas temos em comum o fato de abrirmos mão de nossos filhos. E Santana, se existe uma coisa que desejo vocês, minhas filhas, é que nunca, mas nunca mesmo, passem pela mesma situação. É uma dor pior do que a do parto.”

“Então a senhora se arrependeu de ter nos entregado.”

“Nos três últimos meses de gestação eu estava tão perdida em amor pelas duas que pensei mais de uma vez em fugir no mundo para que os seus pais não me achassem ou a vocês. Não pense que Hiram foi bonzinho ao me fazer morar com os dois quando estava de sete meses. Ele queria garantias. Eu sequer tive a chance de segurar você ou a Rachel quando nasceram. Era um termo contratual que dizia que não teria mais direito algum tão logo vocês saíssem de mim, e que, a partir daquele momento eu só poderia me recuperar e ir embora. Se quisesse vê-las novamente, teria de esperar 18 anos. Fiquei três dias internada, e na saída uma colega minha de Cleveland disse que todas as minhas coisas estavam no apartamento dela e ela me entregou uma carta de Juan com uma foto das duas já embrulhadinhas em roupinhas rosas e uma cópia de um comprovante de depósito.”

“Eu não sabia disso. Quer dizer, eu sabia da parte do contrato, que você tinha de nos entregar e não poderia entrar em contato. Mas não dos detalhes.”

“Hiram sempre foi o simpático da dupla. Mas ele não se deixava enganar. Ele me considerava uma pequena ameaça e estava certo. Uma por causa do meu desejo em sumir com as duas e outra em relação a Juan.”

“Papi?”

“Filha, o seu pai é bissexual. Digo, bissexual. Ele sentia atração por mulheres mesmo casado com Hiram.”

“Eu sei disso... está na cara... mas ainda assim...”

“Hiram aceitou que eu fosse a doadora dos óvulos, mas relutou para que eu também fosse a barriga de aluguel. Porque ele sabia que Juan se sentiu atraído por mim. E eu certamente estava por ele.”

“Mãe, a senhora e o papi não...”

“Numa noite, quando estava morando com seus pais, Juan e eu nos beijamos. Aconteceu nada além disso, mas não foi por falta de eu não querer.”

“Oh! Eu desconfiava dessa união tão rápida depois que papai morreu, mas... nossa!”

“A questão é que eu fui embora de Cleveland com 50 mil dólares na minha conta bancária. Tinha o meu sonho de Broadway, mas também uma dor monumental pela perda das duas. Eu quis compensar isso com maconha, um pouco de cocaína, festas, sexo. Nos dois primeiros anos de Nova York tive homens e até algumas mulheres.”

“Mulheres?”

“Eu tive momentos de experimentação. Mas sou hétero, filha.”

“Sem julgamentos aqui, mãe. Só fiquei surpresa. Sempre pensei que a senhora, apesar de todo talento, não deu certo na Broadway por falta de sorte.”

“Isso também, mas nesses dois primeiros anos em que tive a segurança do dinheiro, além de administrar muito mal as minhas finanças, não tive o foco necessário. Era uma agressão inconsciente que fiz contra mim mesma. Pessoas machucadas são como bombas relógio, filha. Chegou um ponto na minha vida que depois de eu ter caído no poço e depois reconstruído a minha vida de uma forma diferente daquela que sonhei, mas com dignidade e esforço, ainda havia esse buraco a preencher.”

“Foi quando armou aquela arapuca em Lima 16 anos depois?”

“É. Eu queria ter vocês de volta.”

“Você nos feriu muito naquela ocasião. Em especial Rachel.”

“Eu sei. Quando reencontrei com as duas. Primeiro naquele palco, com Rachel fazendo o solo, vendo que você também estava ali no coral, as duas tão bonitas. Nunca tive tanto orgulho na minha vida. Foi uma emoção poderosa, Santana. Eu chorei naquela apresentação como uma idiota. Isso me deixou determinada e também apavorada.”

“Por isso aconteceu tudo que aconteceu... acho que agora consigo entender alguns por quês de suas atitudes.”

“Então você também entende porque tenho reservas a Quinn, em especial quando Beth está envolvida.”

“A senhora tem medo que Quinn a roube. Isso não me parece possível, mãe. Não acho que esse seja um motivo real.”

“Eu sei o que é o sentimento da mãe pela cria, Santana. Sei que Quinn não vai fazer nada estúpido e quero sinceramente que Beth a trate melhor, que sejam amigas. Só que não é fácil. Não é fácil por causa do meu medo de um dia Beth a preferir, não é fácil porque Rachel é casada justo com ela e a ama perdidamente. Isso dificulta a administração dessa relação dela com Beth. Não é fácil porque eu sei que Quinn tem instabilidades emocionais por tudo que enfrentou na vida.”

“Quinn tem ajuda profissional, se isso conta. E se um dia a senhora comentar isso com alguém, vou negar até morrer, mas eu confio nela, mãe. Conheço Quinn desde criança e aprendi a amá-la aos trancos e barrancos. É uma boa garota, muito séria e batalhadora. Dê uma chance a ela, mãe. Uma real. Quando a senhora se abrir um pouco, vai perceber que em vez de uma concorrente, vai ganhar outra filha.”

Acredito que Shelby aceitou por hora. Se ela iria realmente tentar era outra história. Fiquei grata pela conversa franca. Senti-me mais próxima dela e a perdoei interiormente sobre certas birras que ainda tinha. Era estranho pensar que ela e papi já se sentiam atraídos um pelo outro desde antes de eu ser concebida, sobretudo por causa de papai, mas acho que as coisas terminaram como deveriam. Não consigo imaginar papi com outra pessoa senão com Shelby depois que ele se tornou viúvo.

Minha mãe e eu almoçamos junto com Johnny num bom restaurante italiano. Meu namorado estava extasiado com a noite da estreia e contou algumas boas histórias da banda que ele montou quando fazia high school. O irmão o chamava de gay porque ele escrevia poesias e pequenos contos. Para um adolescente, ver o irmão mais velho chamá-lo assim diante de garotos mais velhos era o fim. Então Johnny musicou mal e porcamente algumas das poesias e disse que na verdade eram letras de música para uma banda de rock. O maior público dessa banda foi durante uma noite de talentos na escola em que tocaram duas canções diante dos pais das mesmas garotas em que queriam conquistar. Patético, mas adorável. Johnny é cinco anos mais velho. Enquanto tudo isso acontecia em Connecticut, eu ainda era uma virgem marrenta que estudava na Junior high em Ohio e meu mundo girava ao redor de Brittany. Interessante como as coisas mudavam e vidas que aparentemente tinham nada a ver se cruzavam.

Johnny comentou que estava em fase de escrever os capítulos da pesquisa que fez sobre os buracos indies de Nova York City. Se tem uma coisa boa que a antiga namorada dele fez foi sugerir um livro que tinha possibilidades mais comerciais do que um romance. Tinha esperanças de que Johnny pudesse finalmente alcançar o sonho dele de ser um escritor profissional.

Depois do almoço já tardio, fomos até a casa da minha irmã. Beth fez uma festa quando viu Shelby e começou a mostrar a ela todos os presentes e mimos que recebeu de Quinn e Rachel durante o tempo em que passou com as duas. Acreditava que as coisas começariam a entrar nos eixos a partir daquela ocasião. Pelo menos Beth estava menos birrenta com Quinn. Bem menos, diga-se de passagem.

“Não vai ao show?” – Shleby perguntou a Quinn.

“Tenho um encontro.”

“Com quem?” – ela perguntou inquisitiva.

“Um produtor.”

Revirei os olhos. A conversa ainda monossilábica mostrava que ainda havia um longo caminho a se percorrer entre as duas, em especial do lado da minha mãe.

Shelby não se convenceu que levar Beth ao show novamente era uma boa idéia. Argumentou que a experiência (motivada por irresponsáveis, ela frisou) foi suficiente para uma noite só. Não precisava expor Beth à madrugada mais uma vez. Bom, ela pensava como mãe, fazer o quê? Ligou para a agência de babá que acionava toda vez que estava em Nova York e disse que passaria o fim de semana na casa de Rachel e não na minha. A estratégia não deu tão certo assim. O show de Rachel foi montado para ter 12 músicas: todas as seis que estavam presentes no EP e mais seis covers que ela e os outros escolheram.

A noite estava igualmente cheia quando chegamos ao bar. Cabiam mil e quinhentas pessoas com segurança lá dentro e a capacidade era a máxima. Não havia um camarim formal. Usávamos uma sala dos bastidores do bar para ter acesso aos fundos e entrar no palco sem ter necessariamente o contato com a platéia. Rachel tinha problema algum com multidões, mas como naquela situação era a figura central, era necessária a proteção dela. Na sala dos bastidores, antes do show, Rachel cedeu uma rápida entrevista a dois jornalistas, sendo que um era estudante da Long Island University. Achava legal que Nina orientava Rachel a atender grandes e pequenos veículos. Era também fundamental prestigiar o público universitário que foi o que melhor recebeu o trabalho da minha irmã. Era pop suficiente para ganhar rádios, mas que também caia no gosto dos hipsters de plantão. Sou suspeita para falar, mas eu adorei o trabalho que minha irmã fez em parceria com Tony e Dana.

“Alguns de vocês devem saber que eu canto na Broadway de vez em quando” – minha irmã começou a dizer quando o show estava quase no fim – “Eu venho de uma família que gosta muito das artes. Eu estou nessa área, minha irmã ali atrás canta muito, como vocês tiveram o prazer de ouvir, minha avó foi pianista de jazz e a minha mãe foi do teatro por algum tempo e hoje dirige o coral popular da OSU, de Ohio. E ela está aqui para dar uma canja. Por favor, recebam com aplausos Shelby Corcoran-Lopez.”

Shelby entrou no palco com naturalidade incrível. Também aplaudi as pessoas que a aplaudiam sem nunca tê-la visto antes. Ela me deu um beijo na minha têmpora antes de ir até Rachel e beijá-la no rosto. Pegou o microfone e eu fiquei curiosa com o que sairia dali sem um ensaio. A banda começou o arranjo adaptado para Bitter Sweet Symphony e Shelby mandou ver.

“Cause it’s a bitter sweet symphony this life/ try to make ends meet/ you’re a slave to Money then you die/ i’ll take you down the only Road i’ve ever been down/ you know the one that takes you the places where all the veins meet yeah.”

Foi um assombro. Aplausos contundentes surgiram de imediato. Até mesmo eu que estava acostumada com a voz e técnica da minha mãe fiquei boquiaberta. Fiquei em silêncio apreciando o quase duelo entre Rachel e Shelby.

“No change. I can change/ i can change, i can change/ but i’m here in my mold/ i am here in my mold/ but i’m a million different people/ from one Day to the next/ i can’t change my mold/ no, no, no”

Fizemos uma farra e tanto depois da música e levamos um tempo para nos reorganizarmos para a última música do show.

Nos bastidores, a comemoração. Celebramos mais uma noite de sucesso com champagne e muitos sorrisos. Os amigos de Rachel apareceram e Rom tietou a minha mãe, o que foi engraçado. Depois que as coisas acalmaram, senti o celular vibrar no meu bolso. Quinn.

“Oi Quinn!” – disse alto no celular e fui para um canto mais reservado por causa do som alto.

“Ei San.”

“Como foram as coisas aí? Já conversou sobre o projeto do filme?”

“Gostaria de ter conversado.”

“O que deu errado?”

“Ele estava chapado demais para ter qualquer conversa razoável e ainda quis enfiar a mão na minha blusa. Avise Rachel que estou indo direto para casa, por favor?”

Putz. Nada nunca está 100%.






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