Abril de 2019

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11 de abril de 2019

(Quinn)

“Diz alguma coisa!”

Por mais que Santiago estivesse com pressa para uma resposta, ainda estava ocupada tentando elaborar uma boa resposta diante ao estranhamento que a nova concepção do projeto do filme. A versão original era uma obra-prima visual. A versão econômica tirava toda graça da invenção de Santiago para cair num lugar comum. A história também sofreu alterações que não eram interessantes. Os toques de ousadia no roteiro que Santiago havia sumido.

“Eu posso entender as concessões para baratear o projeto, mas e o roteiro?”

“Conversei com o pessoal e eles disseram que assim fica um produto mais fácil de se vender.”

“Mesmo? Acho que o vendido é você! Não sou eu quem está insatisfeita numa produtora só por causa de um salário e um plano de saúde.”

“Sem querer ser coorporativa, essa produtora me deu uma posição na qual eu me especializei para atuar. E daí se eu não faço os filmes? Ao menos estou atuando na minha área e me aperfeiçoando até o dia em que eu puder fazer minha carreira solo.”

“Mesmo?” – Santiago sorriu incrédulo.

“Por causa da Bad Things tive oportunidade de ter contato com grandes fotógrafos, fiz um curso de atualização com Robert Richardson que valeu mais do os meus três anos de faculdade. Por causa da Bad Things o meu currículo aumenta à galope. Você, Rachel, todo mundo me enche o saco para sair e eu realmente não gosto de dirigir propagandas, mas acredite, Tiago, eu sei o que faço. Apesar de tudo, ainda tenho um pouco de ambição na carreira. Não estou tão passiva assim e eu sei o que estou fazendo.”

“Não vai me dizer que a nova série de comédia vai vingar e você vai se enfurnar em Nova Rochelle mais uma vez?”

Sorri e tomei um pouco do meu suco de laranja. Isso sempre deixava Santiago meio maluco porque ele sabia que eu tinha algo a dizer e que era grande. Mas eu gostava de fazer suspense.

“O piloto da série de comédia não foi aprovado. Mas a Bad Things conseguiu emplacar o piloto da série de drama para a ABC Family. Eles começam a gravar em junho.”

“E você estará nele?” – acenei negativo – “Então?”

“A Bad Things recebeu sinal verde para gravar Solar, em Reading, na Inglaterra. Vai receber 40 milhões da Paramount na produção. Começa neste verão... acho que você ouviu falar isso, certo? Michael Fassbender vai fazer o papel principal.”

“Ouvi falar alguma coisa... por um acaso eles ofereceram a direção a você?”

“Não. Quem vai dirigir a fotografia é ninguém menos do que Jeff Curtis. Oscar à vista, certo?”

“Então?”

“Fui escalada para ser a operadora de câmera e para fazer o second unit” – sorri confiante.

Second unit significava que eu ficaria responsável pela direção de todo processo de filmagem das cenas e tomadas secundárias. Verdade que teria de ser mais fiel possível ao estilo de Jeff Curtis, o que requeria um bom exercício de humildade. Na prática, significaria que eu estaria no set em tempo integral. Operaria a câmera nas cenas principais com Curtis à frente e depois agiria de forma independente junto ao assistente de direção nas passagens menores. O bom nisso tudo é que além do meu salário fixo na Bad Things, eu ainda receberia um pagamento adicional pelas funções que iria desempenhar, como se fosse um profissional free lancer.

“Uau, isso é... muito bom para você, Fabray. De verdade.”

“Eu disse que sei o que estou fazendo, Tiago. Não quero fazer uma carreira galgada na Bad Things e dirigir fotografia em publicidade a vida inteira. Não e isso. Eu, mais que ninguém, sei o quanto esse tipo de trabalho pode ser frustrante até porque não tem muito reconhecimento. Mas saiba que eu tenho o meu prazo.”

“Quando será esse prazo?” – Santiago estava sério e ligeiramente frustrado.

“Verão de 2020. É o tempo que me dou lá dentro para fazer a maior rede de contatos possíveis para me sustentar depois como freela e com um agente.”

“Tem certeza?”

“Absoluta.”

“E o nosso projeto?”

“Sei que o Luis está empenhado. Baratear o projeto de arte é até razoável, mas eu não acho que as concessões no roteiro sejam justas. Você deveria lutar pelo máximo de integridade do projeto.”

Santiago pegou o copo de cerveja e deu uma longa golada. Limpou a boca da espuma e sorriu chorando.

“O que foi?” – perguntei.

“É tarde demais para voltar atrás, Fabray. Eu já vendi os direitos. A produtora do Luis explora como quiser o projeto de agora em diante. Claro que estou dentro, mas é isso.”

Fechei os olhos e balancei a cabeça. Isso não estava acontecendo. Santiago poderia ter feito todas as merdas do mundo com o projeto, menos a de vender os direitos. Tudo bem que a idéia era dele, a criação era dele, mas achei que éramos parceiros nisso. Também me sentia um pouco dona.

“Isso me leva ao segundo assunto que vim tratar contigo” – ele enfiou a mão na mochila e tirou de lá um cheque dele próprio no valor de dois mil dólares.

“O que é isso, Tiago?”

“A sua parte no projeto. Luis me pagou 20 mil pelos direitos mais 2% do valor de bilheteria.”

Olhei para o cheque e balancei a cabeça. Oferecer 2% do valor da bilheteria era o acordo de praxe. Alguns atores também eram pagos com participação na bilheteria, mas isso representava uma aposta pessoal deles em troca de um salário de tabela sindical. Muitos atores ganharam alguns milhões com pagamento em participação da bilheteria, como George Clooney, Brad Pitt, Tom Hanks e Sandra Bullock. Em geral são produções com orçamento modesto, mas com potencial de lucrar alto. Também há casos de apostas milionárias em blockbusters. Estima-se que Robert Downey Jr ganhou 50 milhões de dólares em participação de bilheteria pelo primeiro filme dos Vingadores. Ainda assim, é sempre um risco do filme naufragar, afinal, é preciso devolver o dinheiro investido ao estúdio.

Cinema é arte. Mas é uma arte desenvolvida dentro de uma lógica de mercado: sem público e o conseqüente retorno que ele gera, a arte não existe e a câmera é desligada. Isso é algo válido para todos, até meso para o diretor que fazia a obra mais autoral e experimental, como Goddard. Sem dinheiro, não há cinema. Não importa de onde esse dinheiro venha: se é de uma indústria estabelecida que exige retorno, como é o caso da norte-americana, ou se vem de subsídios do governo que não exige retorno e os cineastas pegam dinheiro para financiar algumas nóias, como caracteriza alguns pólos da América Latina. O capital é uma presença obrigatória, até mesmo em produções amadoras. Indomável Sonhadora, por exemplo, custou 1,8 milhões e foi considerada uma produção não apenas independente como também amadora porque boa parte da equipe envolvida e elenco sequer era sindicalizada. Foi o primeiro trabalho de Benh Zeittin no cinema e era um sonho dele que conseguiu o aval de distribuição da FOX Searchlight, que é o braço desse estúdio que lida com produções independentes.

Aliás, se eu entendia um pouco dos caminhos das pedras, Luis deveria estar em contato com a FOX Searchlight para viabilizar o projeto. O primeiro filme indie dele também teve distribuição deste selo. Não é à toa que ele ordenou mudanças no projeto para o orçamento ficar abaixo de 10 milhões. Menor orçamento significa maior possibilidade de ter o projeto realizado. Mas a que custo?

“Eu não vou pegar esse cheque, Tiago.”

“Mas foi o que combinamos. Você teria 10% de tudo, certo?”

“Mas não nessas circunstâncias. Fico feliz por você ter ao menos conseguido um bom dinheiro por um trabalho que você se dedica desde a faculdade, só que eu não concordo com o que aconteceu e não quero ter parte nisso. O Luis é um cara legal e tudo mais, só que é também um sujeito que quer se dar bem no meio. Ele te pagou 20 mil, para lucrar alguns milhões depois. Não é que esteja errado porque a gente sabe que as coisas na indústria funcionam dessa forma, mas você tinha de ter se protegido e protegido melhor o projeto.”

“Não pensei na hora. Luis é bom de lábia e os 20 mil dólares encheram meus olhos. Além disso, estava precisando da grana para colocar o aluguel e o cartão de crédito em dia.”

“Quanto você ganhou para fazer a webserie?”

“O preço da tabela do sindicato.”

Balancei a cabeça mais uma vez. O preço da tabela do sindicato era o piso. E o piso era baixo. Se fosse pelo sindicato, eu estaria ganhando 2 mil dólares por mês, e não 6 mil. Luis era muito esperto. Não tinha duvidas de que ele prosperaria na indústria.

“Eu posso imaginar o que você está pensando, Fabray, que fui um otário. Só que eu estava passando fome, ok? Os bicos que eu pegava cobriam uma coisa e outra.”

“Por que não me disse nada?” – bronqueei.

“Porque é um problema meu.”

Santiago terminou de beber a garrafa de cerveja e ficamos em silêncio à mesa do pequeno restaurante barato há três ruas da Bad Things. Era uma situação estranha entre nós. Até então achava que ele contava absolutamente tudo para mim. Descobrir que não me feriu, apesar de não ter moral para tal uma vez que eu não contava tudo para um dos meus melhores amigos.

“Há previsão de quando o projeto vai começar?” – perguntei cautelosa.

“Daqui a um ano. Sei lá. Vai depender do quão depressa ele vai conseguir levantar a grana.”

“Há outros projetos à frente?”

“Não sei dizer.”

Acenei. Peguei o meu celular e acessei a agenda do meu número para checar alguns contatos.

“Lembra do Mark Millar?” – Santiago acenou – “Ouvi dizer que ele vai produzir um doc sobre a nova Broadway. Acho até que vão ligar para Rachel para tentar um depoimento.”

“Fabray...”

“O quê, Tiago?”

“Eu sei o que está fazendo. Não precisa, ok? Sério! Se eu estiver precisando de algo urgente, vou gritar. Por hora eu consigo me virar.”

“Certeza?”

“Certeza.”

“Promete que vai me dizer se estiver precisando de trabalho?” – ele acenou e eu não tinha alternativa que não fosse aceitar e confiar.

“Bom...” – ele conferiu o relógio – “Você tem horário, Fabray.”

Acenei. Dei um abraço apertado no meu amigo e nos despedimos ali mesmo. Precisava ajudar Santiago. Como eu ainda não sabia. Quem sabe eu não inventaria, eu mesma, um projeto?

Voltei para casa depois do expediente disposta a pensar em alguma coisa nesse sentido. Rachel estava em Los Angeles para gravar a série e dar uma de namorada do Luis na frente das câmeras. Ela não era a maior fã do Luis naquele exato instante. Santana estava viajando e eu não me sentia disposta a conversar com Johnny, Kurt, Brittany, Mike ou mesmo com qualquer pessoa da família, exceto Beth e Rachel. Irina propôs que eu tentasse uma forma de reaproximação diferente. Antes de tentar ganhar Beth diretamente, eu precisava ganhar os meus sogros. Fazia sentido. Se eles não gostavam de mim e Beth era criada por eles, então era lógico que ela gostasse de mim também por uma influência até mesmo involuntária da postura deles em relação a mim e a minha em relação a eles. Verdade seja dita: eu nunca tentei me aproximar de Shelby ou de Juan. Pensaria nisso depois.

Depois de um banho revigorante, fiz um sanduíche e me servir com um copo grande de suco. Fui para o escritório, fiquei diante do computador e fiz algumas pesquisas que pudessem me dar idéias para um filme. O ruim da internet era o excesso de informação. Talvez não fosse isso. Em cima do balcão estava uma edição impressa do terceiro livro do Johnny, o único que ele escreveu de forma decente, mas que pudera: não se tratava de um romance de ficção: algo que ele era desprovido de talento. Comecei a folhear o livro, olhei as fotos e prestei atenção naqueles personagens. Não era o cara dono da livraria alternativa que foi preso por roubar a guitarra do Billie Joe Armstrong num show do Green Day em Portland? Apertei os meus olhos diante da fotografia do sujeito gordo e barbudo e abri o Word. Escrevi uma sinopse.




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