Dezembro de 2018

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10 de dezembro de 2018

(Rachel)

A Nova Zelândia é linda. Bem que meu pai disse que deveria conhecer o lugar. Foi onde ele passou a lua de mel dele com a minha mãe. Achei surpreendente porque meu pai sempre foi um admirador de paisagens naturais no conforto de uma sacada do hotel e adorava praticar esportes dentro de uma academia (a mais recente paixão dele é squash). Até hoje não entendia com ele foi um jogador de futebol americano na escola e na faculdade. Enfim, segundo minha mãe, meu pai praticou até canoagem durante a lua de mel. Esportes de aventura era coisa de papai, nunca do meu pai. Mas só foi chegar aqui na Nova Zelândia para entender que tudo é tão organizado, que o passeio supostamente radical fica acessível até às crianças.

Uma pena que não aproveitava o que a Nova Zelândia tinha a oferecer. Havia certo assédio da imprensa local por Star Wars ser filmado em parte no país. O pessoal estava aqui há três semanas, ao passo que eu passei duas semanas e voltaria para Los Angeles em dois dias junto com todo mundo. Lá estava eu com roupas jedis, que basicamente era um roupão com uma capa, tinha um ventilador pequeno no meu rosto para secar o suor porque estava quente. A equipe de maquiagem e cabelo fez um penteado padawan em mim, com trança e um amarrado desleixado. Bom, eu estava num campo de batalha, minha roupa estava empoeirada e com algumas sujeiras de lama, havia um sanguinho de maquiagem no canto da minha boca e eu estava prestes a gravar a cena em que eu morria nas mãos de um aprendiz sith. Só conseguia imaginar a expressão de felicidade da minha irmã. Ela que era secretamente uma fanática por Star Wars.

O set estava movimentado. Havia alguns figurantes circulando e tirando algumas fotos, embora a produção tenha deixado claro que os atores não deveriam ser incomodados. Eles não incomodavam, mas tiravam as fotos quando achavam que ninguém mais estava olhando. Mark Hamill era o mais assediado, e também Phillip Warshall, o ator jovem bonitão que interpretava Jacen Solo.

“Rachel Berry” – justamente Phillip sentou-se ao meu lado e acenou para algumas meninas que gritavam o nome dele durante o intervalo – “Entediada?”

“Mais ou menos. Estou é com calor.”

“E pensar que lá em casa está nevando.”

“Ah, sempre está. Nova York, neve e umidade combinam.”

“Oh, eu quis dizer Los Angeles.”

“Oh” – recaiu o silêncio entre nós.

“Nossos agentes se telefonaram” – olhei para ele com curiosidade.

“Sobre...”

“É, sobre. Seis meses de contrato. O que acha?”

“Seis meses de intenso amor na frente das câmeras para depois termos uma separação cuidadosamente roteirizada. Se você quer a minha sincera opinião, eu acho isso um saco.”

“Eu sei. Só que estamos em Hollywood e precisamos fabricar algumas histórias pelo bem de nossas carreiras.”

“Talvez.”

“Você se incomodaria se rolasse sexo casual nesse tempo.”

“Você pode pegar quem quiser nos bastidores. Eu não ligo” – continuei a observar a movimentação do set.

“Digo entre nós” – arregalei os olhos para Phillip. Eu não sei o que Josh conversou com o agente dele, mas sexo definitivamente não entra no contrato – “Por que o espanto? Você é atraente.”

“Isso não vai dar certo” – balancei a cabeça e procurei pelo meu celular.

“Por que não?”

Encarei Phillip. Por que não daria certo? Vamos começar pelo fato de eu ser gay, ou pelo menos eu me identificava como tal naquele exato momento. Em segundo lugar, eu era uma mulher casada com Quinn Fabray. Sim, Quinn Fabray, a mulher mais bonita do mundo, apesar de ser geniosa, cabeça-dura e ciumenta. Outro detalhe: era a data do meu segundo aniversário de casamento e em vez de eu estar na costa leste americana celebrando com a minha esposa, como deveria ser, eu estava do outro lado do mundo, literalmente, sentada num set de filmagens ao lado de um galã bissexual muito estranho e com mal-hálito discutindo um contrato de relacionamento promocional em que ele gostaria de incluir uma cláusula dizendo: ok, podemos fazer sexo quando eu quiser. Era o que eu queria despejar na cabeça dele com toda interpretação, entonação e gesticulação dramática. Mas não. Tudo que fiz foi respirar fundo e balançar a cabeça.

“Você não faz o meu tipo e eu não sou de fazer sexo casual com essa naturalidade.”

“Bem que me disseram que você é a senhorita certinha. Dizem até que você é assexuada.”

“Talvez” – ele pensasse o que quisesse.

“Phill, Rach” – o diretor nos chamou para dar as instruções.

Foi um alívio cortar essa conversa com Phillip. Não é que ele seja uma pessoa ruim. Era um garoto que sabia que era bonito, tinha alguma arrogância, mas nada que pudesse ferir. O diretor nos deu as instruções de como proceder na cena e fizemos uma rápida recapitulação com o coreógrafo dentro da demarcação estabelecida pelo diretor de fotografia. Eu peguei o meu “sabre” de luz verde e manejei um pouco para soltar os movimentos. Era uma cena sem diálogo e a minha morte não seria determinante na trama. Ela seria seca e rápida quando a minha personagem se precipita para enfrentar o sith antes de Jacen Solo. Ela morre, ele avança e mata o bandido no campo de batalha. Era basicamente isso.

Repetimos a ação umas dez vezes e eu não apenas estava morrendo de calor como estava com vontade de fazer xixi também. Sem falar que esse fuso e essas bactérias diferentes da Nova Zelândia estavam judiando do meu corpo. Foi um pesadelo passar a primeira semana correndo para o banheiro. Acho até que emagreci ainda mais. O bom é que o diretor ficou satisfeito e aquela era a última cena que gravaria na Nova Zelândia. Eu poderia até pegar um voo mais cedo, mas qual seria o ponto quando Quinn estava em Massachussets gravando o filme para a TV para a mesma companhia da Disney, mas por meio da Bad Things, que eu estava presa naquele momento? Era melhor fazer turismo por dois dias e voar de volta junto com todo mundo para Los Angeles, gravaria o ensaio para a revista e de lá voaria para Vancouver, onde as cenas de estúdios seriam feitas.

Depois de tirar o figurino e aliviar minha bexiga, voltei ao hotel na van que estava a serviço da nossa equipe. Olhei para o relógio. Era seis da tarde, o que queria dizer que estava amanhecendo na costa leste. Mandei uma mensagem a Josh mandando cancelar o acordo com o agente de Phillip. Arrumaria outro beard em outro lugar. Esperei chegar na segurança do meu quarto para ligar para a minha esposa.

“Rachel?” – ouvi a voz sonolenta dela do outro lado da linha. Infelizmente a conexão não era boa para viabilizar a imagem dela também.

“Feliz aniversário, baby.”

“Feliz aniversário. Ei, como foi o seu dia?”

“Acabei de chegar do set. Foi bem cansativo, mas terminei de gravar as minhas cenas aqui.”

“O meu batente começa daqui a pouco. Ontem a gente ficou até as duas da madrugada filmando para aproveitar a noite sem neve. Mas estava um frio medonho. Meu corpo está estranho e acho que vou resfriar.”

“Isso é ruim.”

“Está todo mundo empenhado em terminar isso antes do natal. E o Gary está iluminado, sabe? Ele pensa em soluções ímpares para economizar o dinheiro do orçamento. Aliás, se a gente terminar antes do natal, vamos economizar nada mais que 300 mil dólares. Se isso acontecer, os executivos da ABC vão ficar muito felizes e podem autorizar o piloto de duas séries de TV da Bad Things. Uma para TV aberta e outra para a ABC Family.”

“Você está cotada para essas séries?”

“Não sei te dizer. Ninguém fala nada até tudo estar muito bem acertado entre os chefões. De qualquer forma a gravação de um piloto só acontece em abril, maio. Você conhece o esquema.”

“Sim...”

“Mudando de assunto, você abriu a caixinha que eu coloquei na sua mala para você abrir especialmente hoje?”

“Ainda não.”

“Que tal abrir agora?”

“Espere um pouco” – fui até a minha mala e enfiei a mão no compartimento para pegar a caixinha. Quinn havia colocado ela na mala na minha presença e deu instruções específicas para não abrir até o dia no nosso aniversário de casamento. Resisti bravamente a minha curiosidade para não abrir antes – “Peguei. Ao menos o tamanho me diz que não é um kama sutra lésbico” – minha esposa rui do outro lado do telefone. Abri o pacotinho e franzi a testa ao encontrar um pendrive em formato de Darth Vader.

“Abriu?”

“Sim... é um pendrive?”

“Não se deixe enganar pelas aparências, Rach. Abra o arquivo que está nele e depois a gente volta a conversar.”

“Ok. Eu te amo.”

“Eu te amo mais.”

Quinn desligou o telefone e eu fiquei curiosa com o pendrive. Conectei-o no meu tablet. Havia apenas um arquivo de vídeo e eu o acessei. Quinn apareceu na tela.

“Rachel. Sei que não preciso repetir que você é o amor da minha vida. Bom, você é e não custa nada reafirmar. Quando você me falou da sua agenda de gravações de Star Wars sei que não reagi tão bem porque você não estaria presente no dia do nosso aniversário de casamento. Desculpe por aquelas palavras grosseiras. Sei que isso faz parte da sua carreira e quis o destino que eu também estivesse fora de casa no nosso dia. Passei um tempo pensando num presente apropriado para você. Podia ser uma jóia, um livro, uma daquelas lanternas com a caricatura da Barbra Streisand. Mas nada seria tão especial e pessoal como eu queria. Então tive a idéia de gravar uma canção para você. Espero que goste.”

Mal acreditei. Era um vídeo de boa produção, com áudio perfeito. Quinn estava com uma camiseta lisa vermelha, uma calça jeans, os cabelos soltos e começou a cantar Crazy For You, da Adele. Claro que a voz dela não tinha comparação com a intérprete original, mas ainda assim, Quinn estava fazendo um trabalho muito bom e bonito. A imagem dela foi condensando com fotografias nossas na tela, num trabalho muito bom de edição.

“Tell me to run/ and i’ll race/ if you want me/ to stop i’ll freeze and if you are me/ gonna leave/ Just hold me closer, baby/ and make me crazy for you/ crazy for you...”

Ela cantava enquanto eu via na tela imagens nossas em Mckinley, nosso primeiro ano em Nova York, algumas fotos minhas no teatro, fotos dela trabalhando no set, o dia em que noivamos, nossa viagem a Barcelona e depois a Paris. Algumas fotos da nossa desastrosa lua de mel, mas que certamente teve momentos felizes. Por último, uma foto do nosso casamento.

Eu estava em lágrimas quando o vídeo clipe terminou. Passei mais duas vezes porque era simplesmente lindo. Maravilhoso.

Precisei de um tempinho para me recuperar e voltar a ligação.

“Oi Rach...”

“Eu te amo, eu te amo e eu te amo, Quinn Fabray. Mais do que tudo... eu que sou louca por você, obrigada pelo presente lindo. Eu nunca imaginaria... eu simplesmente amei, amei” – disparei a falar.

“Fico feliz, meu amor.”

“Estou até com vergonha. Eu comprei para você uma jóia. Um colar de ouro branco e amarelo trabalhados... espero que esteja nas suas coisas, e desculpe por ter estragado a surpresa, mas é que estou realmente emocionada e queria muito estar aí contigo, Quinn. Nunca desejei tanto isso quanto agora.”

“Eu também, Rach. Eu também.”

“Termine esse filme e voe para Vancouver assim que puder.”

“Natal no Canadá?”

“Eu gravo minha última cena no dia 26 de acordo com o programa.”

“Tudo bem, meu amor. Estarei lá. Comemoraremos o Natal e o Hanukkah.”

“Obrigara, obrigada.”

“Eu te amo, esposa.”

“Eu te amo mais.”

...

19 de dezembro de 2018

(Santana)

“Por que América do Sul?” – perguntei a Johnny enquanto examinávamos o mapa mundi no Google – “Não seria uma novidade.”

“Não seria novidade para você, senhorita” – Johnny enrugou a testa – “Eu nunca estive lá.”

Analisei o mapa atentamente na tela do meu computador. Eu já estive em várias partes do mundo, menos no continente africano e na Ásia. Com o Johnny em específico eu estive nas Bahamas, Espanha, França, Itália, Holanda e Inglaterra. A América do Sul poderia ser uma boa. A gente poderia ir ao Chile e visitar a vinícola dos tios de papi além de fazer turismo no sul do país, que era simplesmente lindo. Era muito caro visitar o Brasil, em especial o Rio de Janeiro. Não que isso fosse problema para mim, mas tinha de respeitar as possibilidades de Johnny. A Argentina não passava por um momento muito bom. A outra possibilidade que via era o Peru. Dava para visitar Cuzco e fazer a trilha para as ruínas de Machu Pichu. Eu nunca fui a Machu Picchu mesmo.

“Eu posso te mostrar o Chile. Não é caro, o país é lindo, organizado e a gente pode trazer uma porção de vinhos baratos de lá. Vinhos bons, diga-se de passagem. Pergunte ao tio Pedro.”

“Seria legal conhecer as origens da família Lopez” – Johnny sorriu – “Conhecer os caminhos percorridos pela lendária Miranda Lopez.”

“Então a gente vai ter que visitar a periferia de Santiago, porque abuela militava por lá quando era integrante do partidão.”

“Partidão?”

“Era como eles chamavam o partido comunista. Abuela sempre teve ideais socialistas. Sempre. Até mesmo quando ela fez o trabalho comunitário em Lima Heights, foi baseado nesses ideais. Eu me lembro de quando ela reunia os netos para ajudar no bazar anual em Lima Heights para atender as famílias mais carentes. Eram montadas as barracas no estacionamento da igreja e eu, Rachel, Daniela e Julio tomávamos conta da barraca que vendia suco de limão geladinho e saquinhos com cinco balas por 50 centavos. Todo dinheiro arrecadado servia para ajudar a reparar algumas casas e a investir na cooperativa de costureiras e artesãs que abuela ajudou a organizar. Era um trabalho lindo.”

“Posso imaginar você e Rachel vendendo suco de limão.”

“Era legal. Fiz isso até quando tinha uns 13 anos. Depois não sei mais porque não quis participar. Talvez tenha sido adolescente demais. Rebelde sem causa demais. Mas era legal enquanto participei do bazar com os meus primos. Rachel queria mandar, esquematizar, minha prima Daniela ficava mais tempo sentada olhando para o mundo do que ajudando. Julio vez ou outra roubava um saco de balas. E eu cuidava do dinheiro. Conseguia precisar quanto tínhamos arrecadado sem precisar contar as moedas.”

“Você tem mais primos. Da sua tia Rosa, certo?”

“Tenho, mas naquela época ela já morava em outra cidade. Mesmo assim, August ainda era uma criancinha birrenta e Anna ainda era bebê de colo. Simon nem tinha nascido ainda. Foi neste ano que August entrou na High School, para você ter uma idéia da diferença de idade.”

“Dez anos?”

“Nove anos e meio” – sorri – “Tia Rosa me mandou ontem uma mensagem de texto desejando feliz aniversário. Foi a primeira da família.”

“Bacana!”

“É sim” – abracei Johnny – “Você sabia que Anna foi batizada assim por minha causa?”

“Não sabia.”

“Tia Rosa gosta muito de mim e do meu nome. Só que não é legal repetir nomes entre primos de primeiro grau, sabe? Daí a minha prima ficou Anna, a metade de Santana, e é assim que tia Rosa me chama também. Eu sou Ana e a minha prima é chamada de Anita.”

“Nunca deixo de achar a sua família curiosa. Eu não tenho essa proximidade com os meus tios. A última vez que os vi foi no funeral da minha mãe e mal falei com eles e com os meus primos. Sei que Kevin ainda tem contato” – Kevin, o irmão do Johnny, era um insuportável. Nem queria pensar no que ele poderia falar sobre Johnny com o resto da família.

“Estou com saudades deles” – pensei com carinho nos meus tios e primos. Sentia um pouco de falta até mesmo de Daniela, apesar de a gente nunca ter se dado bem quando crianças.

“Você vai rever sua família neste fim de semana.”

“Eu sei, mas estou com saudades deles agora. Acho que é a essa história de fazer aniversário e da minha idade avançada.”

“Realmente os seus 24 anos começam a pesar bastante. Daqui pra frente só piora” – Johnny sorriu.

“Olha como fala velhinho!”

“Respeite os meus 29 anos. Nesses dias achei até um cabelo branco.”

“Jura?” – comecei a fingir procurar cabelos brancos, mas eu só queria brincar com ele, bagunçar os cabelos de Johnny e estavam ficando compridos de novo.

Na brincadeira eu o segurei pelo pescoço, como se fosse dar um mata-leão desajeitado, tentei subir nas costas e dominá-lo para fazer cosquinha. Johnny era sensível e num movimento brusco em meio as nossas risadas, ele virou o corpo de um jeito que alavancou o meu e eu caí da cama de costas no tapete que ficava do lado de onde costumava dormir.

“San...” – Johnny me olhou assustado ainda em cima da cama – “Está tudo bem?”

“Ai...” – foi tudo que pude dizer diante da perplexidade do susto. Eu caí da cama. E caí porque o meu namorado me jogou para fora da cama. Foi sem querer, mas jogou.

Johnny saltou da cama e se agachou ao meu lado. Estávamos em nossos pijamas ainda. Quer dizer, claro que transamos noite passada, mas eu vesti o meu pijama depois de uma rápida chuveirada e Johnny estava acostumado com a minha exigência de ele pelo menos vestir uma cueca samba canção que fosse para dormir comigo mesmo depois do sexo. Daí o fato de eu sempre amanhecer vestida.

“Está bem?” – ele me ajudou a me levantar.

“Acho que eu voei.”

Ele começou a rir. Rapidamente aquilo se transformou numa gargalhada. Estava em bom espírito, era o meu aniversário e comecei a rir também. Johnny acariciou o meu rosto e me beijou com suavidade.

“Será que ainda temos tempo?” – ele perguntou.

“Dificilmente” – eram quase oito horas da manhã e eu teria um dia ocupado. Precisava adiantar coisas se quisesse pegar a semana de folga até o ano novo.

“Saco” – ele fez uma adorável expressão desanimada.

“Espere até o fim do expediente.”

“Com certeza” – ele me beijou mais uma vez e segurou minha mão para ajudar a me levantar do chão.

Johnny não quis que eu fizesse o café da manhã. Ele mesmo fez o suco (estava com uma crise de gastrite e não poderia tomar café expresso), torradas, e foi buscar os cupcakes que estavam na portaria de uma encomenda que ele fez especialmente para o meu aniversário. Colocou uma pequena vela em cima de um deles e cantou parabéns sem a menor vergonha.

“Faça um pedido, princesa.”

Fechei os olhos e pensei. Assoprei e Johnny beijou meu rosto. Tomamos café da manhã em paz, apear da minha relativa pressa para chegar ao escritório da Rock’n’Pano. Apesar de acompanhar basicamente tudo do meu computador, gostava de ir lá pelo menos duas vezes por semana para ver como as coisas estavam indo. O bom é que Tomiko era zelosa, mas eu não gostava muito da ajudante e estudava inclusive a contratação de outra. Mas isso só no ano que vem, até porque era sacanagem demitir em pleno natal. Acontecia, claro, mas eu sempre optaria por não ter de fazer isso. Coloquei uma roupa mais informal para trabalhar (ou seja, uma calça jeans), coloquei um casaco grosso, meu gorro e fui trabalhar de metrô.

O dia do aniversário sempre traz algumas reflexões interessantes. Não apenas por nos fazer olhar o cotidiano, as ruas, de uma maneira diferente e até mais filosófica. Todo ano, nas proximidades do meu aniversário, sempre penso em quais são as minhas prioridades e desejos. Era um mero exercício que papai havia me ensinado. Quando tinha oito anos, a minha prioridade era o futebol com a gangue no parque, a amizade com Brittany e o meu desejo era que Rachel fosse menos chata. Olha, eu nunca consegui realizar esse desejo apesar de amar a minha irmã incondicionalmente. Quando tinha 16 anos a minha prioridade era Brittany, ficar no topo da cadeia alimentar escolar e desejava um carro. Quando tinha 19 anos, a minha prioridade era sobreviver à Nova York à pressão da faculdade, de zaide e desejava alguns momentos de folga além de estabilidade financeira. Aos 24, minha prioridade é a minha família, meu namorado e meus amigos, apesar de continuar desejando menos pressão no trabalho. E desejo saúde para mim e para os meus também.

Dinheiro? Ele perde um pouco da graça depois que se tem o bastante e pouca motivação para gastá-lo. Tenho minhas aplicações, investimentos particulares que me sustentarão caso a Weiz exploda, um grande currículo apesar da minha pouca idade, não desejo ter trocentas propriedades, o carro luxuoso do ano, jatinhos ou iates. Talvez um pequeno veleiro e uma casa para o dia em que quiser aprender a lidar com o mar.

Desci na estação e caminhei fechando minhas roupas até ao escritório da Rock’n’Pano no Bronx. Ganhei um abraço de feliz aniversário de Tomiko e da minha outra funcionária, a que iria demitir após o ano novo. Tomiko fez a gentileza de me comprar uma lembrança, uma peça artesanal estilo japonês que a mãe dela faz.

“Meu irmão desenhou e minha mãe fez a montagem. Está escrito o seu nome em japonês.”

“É uma peça linda, Tomiko. De verdade. Agradeça Karl e sua mãe por mim” – a abracei.

Depois de fazer uma pequena reunião, estabelecer o rodízio de folgas entre nós três (eu não tinha uma folga formal, na verdade, e podia trabalhar de casa), mas tinha de liberar Tomiko em algum momento para que ela tivesse o feriado dela. Acredito que a divisão atendeu bem as duas. Tarefa cumprida, peguei o metrô novamente para descer até Tribeca, em frente à prefeitura, no edifício 250 que tinha uma agência do Citibank. Era onde ficava a sede da Weiz Co. O edifício inteiro (exceto as lojas alugadas), era a Weiz Co. Eu tinha estacionamento privado ali, mas dirigir no asfalto escorregadio daquela época do ano não era a minha.

Cheguei no meu escritório (agora tinha um privado e com direito a secretária), e pendurei em minha luminária a peça que ganhara de aniversário à pouco. Era mais um toque pessoal.

“Senhorita Berry-Lopez” – minha secretária entrou no escritório trazendo uma pasta – “Aqui está a agenda do dia da diretoria e do departamento de projetos.”

“Obrigada Irene.”

“E feliz aniversário.”

Sorri para a minha secretária. Olhei para a mesma planilha de compromissos que poderia encontrar na intranet da Weiz. O papel era mais cômodo. Não havia nada de mais a fazer naquela semana do ano quando todo mundo pensava mais em viajar para algum paraíso tropical do que se preocupar com estratégias industriais. Meu celular tocou. Rachel.

“Olá Ray.”

“Feliz aniversário, Santy.”

“Feliz aniversário, Ray” – rimos ao telefone. Coloquei o meu celular no suporte, assim poderia conversar mais à vontade – “Como está aí na terra dos lenhadores?”

“Tudo bem. Vou gravar uma cena daqui a pouco. Uma que eu tenho falas. Depois vou para o hotel.”

“Emocionante.”

“Não sei para quê eu fui me meter a fazer esse filme. Quanta complicação. Quanta espera. É muito trabalho por uns dez minutos de tela. Aliás, acho que nem isso eu terei.”

“Mas são dez minutos de tela na maior franquia do cinema de todos os tempos. Pense nisso.”

“As pessoas falam aqui da maldição de Star Wars. Uma que se parece com a maldição do Oscar. Dizem que quem protagoniza Star Wars faz mais nada no cinema, a carreira desanda.”

“Natalie Portman e Harrison Ford estão aí para dizer o contrário. E também Liam Nelson e Samuel Jackson” – pontuei.

“Sei lá, Santy. Só sei que não é o trabalho que imaginava. Acho que estou um pouco frustrada em estar aqui quando eu queria estar aí.”

“Aguente firme. Você disse que isso acaba dia 26, certo?”

“Acaba a minha parte.”

“Então. Imagine todos os outros que vão precisar passar mais um mês nesses estúdios congelados.”

“Pode ser. Adoraria que Phillip congelasse.”

“Aquele gatinho que faz o papel de Jacen Solo? Você não disse antes que ele era um chato. O que aconteceu?”

“Lembra que eu te disse sobre o beard? Ele é meio gay, mas não totalmente ao que parece. Disse que durante o nosso namoro promocional gostaria de transar comigo. Eu cancelei essa porcaria de assinatura de contrato e ele não gostou. Agora age como um idiota.”

“Que cara babaca...”

“Totalmente.”

“Mas vem cá, Ray. Essa história de beard tem que ser necessariamente com atores?”

“Não. É que com atores vem o bônus da publicidade. Por quê? Tem alguma sugestão?”

“Sei lá... lembrei daquele seu antigo colega de WWBD, o Will Potter.”

“Ele é gay assumido. Por isso que só faz Broadway agora.”

“E o Josh Solano? Ele é gente boa, participou o seu EP, é relativamente seu amigo e mora em Nova York. Vocês agora não são representados pelo mesmo agente agora?”

“Solano namora uma garota há dois anos e ouvi dizer que há planos de casamento. Então não” – ela suspirou – “Vamos mudar de assunto?”

“Você vai passar o ano novo com nossos velhos?”

“Não pensei nisso. Você vai?”

“Vou. Eu e o Johnny. Shelby ligou ontem reclamando de papi. Disse que ele está um estresse só por conta de problemas no hospital. Ela quer que ele largue o posto de cirurgião chefe e vire professor na OSU com dedicação exclusiva. Papi recebeu essa proposta, sabe?”

“Devemos nos meter?”

“Devemos monitorar. Eu já ia passar as festas de fim de ano com eles mesmo. Talvez seja momento de uma pequena reunião de família. Quero passar algum tempo com eles, mas também verificar a extensão dessa pequena crise.”

“Eu não vou passar o natal. Quinn vem para cá, inclusive, mas agora que você mencionou, talvez seja oportuno pegar um avião até Columbus.”

“Talvez seja, Ray.”

“No mais, tem planos para hoje? Planos com Johnny, talvez?”

“Meu plano é chegar em casa e namorar um pouco. E você?”

“Meu plano é chegar ao hotel e namorar virtualmente um pouco.”

Soltei uma gargalhada. Ah, essa miserável vida a dois da minha irmã com Quinn em que elas passam boa parte do ano se resolvendo virtualmente. Nesse sentido, sou uma felizarda.

“Santy, estão me chamando para trabalhar. Nos falamos depois.”

“Ok, Ray. Tenha um bom aniversário.”

“Você também. Até mais.”

Dei uma olhada nas planilhas do meu setor. Estava tudo de acordo com o planejamento anual e o presidente da empresa (apesar de eu ser a dona por ter mais ações), ficaria feliz com os resultados. Era bom entrar na planilha de investimentos e ver que a Weiz Co teve 648 milhões de dólares de lucro no ano. Número consolidado. Pode parecer modesto frente às empresas financeiras habituadas às cifras bilionárias, mas para uma empresa que lidava basicamente com indústria, era um número muito satisfatório que nos deixa numa boa posição frente ao mercado. Era outra realidade perto dos 51 mil dólares que a Rock’n’Pano gerou de lucro em 2018. Olhei para o relógio e decidi pedir comida. No catálogo de restaurantes, optei por comida vegetariana por causa do meu estômago ruim. Minha irmã ficaria orgulhosa se soubesse o meu cardápio.

“Irene” – chamei a secretária pelo telefone interno.

“Sim?”

“Vai comer por aqui?”

“Sim senhora” – ela costumava levar marmita de casa porque era intolerante a glúten e gostava de fazer a própria comida.

“Ótimo, quando o meu pedido chegar, vamos almoçar juntas.”

Irene foi designada a trabalhar comigo neste ano. Era uma senhora agradável, tinha 40 anos e anos de experiência como secretária em grandes empresas. Usei meu tempo para agilizar alguns dos despachamentos internos, até que recebi o retorno de Irene dizendo que o meu pedido tinha chegado. Paguei o entregador e Irene me acompanhou até ao refeitório do andar debaixo para fazermos nossa refeição. Gostava do refeitório. Tinha seis mesas redondas com cinco cadeiras cada, uma geladeira de moedas para suco e refrigerante em lata, outra de lanchinhos. Muita gente comia ali, em especial os funcionários mais humildes, como as copeiras, o pessoal da limpeza e os seguranças. Eu gostava de fazer as minhas refeições ali quando não descia para algum restaurante. Santana na mesa mais próxima da janela e ouvia a conversa dos outros. Talvez fosse a única diretora que aparecesse por ali, mas aquilo já não era motivo de espanto porque os funcionários estavam habituados à minha presença em algum dos refeitórios da Weiz Co. Acreditava que se sentiam bem ao ver que um dos dirigentes da empresa estava entre eles, sem frescuras e barreiras. Afinal, a Weiz era minha. 30% minha, mais os 10% da minha irmã que eu administrava e que me davam o poder da palavra final.

No final do almoço, quando começava a fazer os despachos do departamento de projetos, Irene me chama pelo telefone.

“Senhorita Berry-Lopez, o senhor White está aqui e deseja falar.”

Não dei uma resposta. Fui logo abrir a porta para receber o meu advogado e também diretor do setor jurídico da Weiz Co.

“Senhor White? Não esperava vê-lo hoje. Entre.”

“Na verdade, Santana, fiz questão de vir até aqui em pessoa porque gostaria que me acompanhasse, se for possível, claro.”

Meu coração disparou. Toda vez que ele vinha até ao meu escritório era porque alguma coisa ruim aconteceu, alguma crise estava por estourar. Era a forma que ele usava para falar comigo em pessoa e preparar o meu espírito.

“Recebi a visita do advogado que representa as fábricas do seu avô. Ele está aqui na empresa nos aguardando na sala de reuniões.”

“O que ele quer?”

“Fazer que você assine documentos que transferem as tecelagens para o seu nome e de Rachel.”

“O quê?” – estourei – “Não, não! Zaide não pode fazer isso comigo! Isso é sacanagem!” – não me contive e falei alto pelos corredores.

“Santana...”

“Ele não pode! Eu não tenho a menor condição de administrar as tecelagens e ele sabe disso. Isso não pode estar acontecendo. Não pode!” – pior que isso: a Rock’n’Pano dependia das tecelagens de zaide. Ele era o meu sócio silencioso nisso. Era também uma forma de eu me relacionar com a tecelagem sem ter de tomar parte dela.

“Santana...” – o senhor White tentou me acalmar mais uma vez antes que pegarmos o elevador. Ele me segurou firme nos braços e me deu uma leve sacudida – “Calma. Vamos primeiro ver quais são as condições e depois você pensa no que poderá fazer. Uma coisa de cada vez.”

“Mas...”

“Você sabia muito bem que isso iria acontecer. Agora é ouvir primeiro e raciocinar depois. Eu estou aqui ao seu lado e não vou deixar você trocar os pés pelas mãos. Você confia em mim como seu advogado?”

“Sim... claro...”

“Então você vai sentar naquela mesa de reuniões, vai ouvir primeiro e então negociaremos.”

“Ok... ok...” – respirei fundo.

Entramos no elevador e eu respirava fundo para me conter e não entrar em pânico. O advogado de zaide era um homem calvo, pequeno e tinha algum desvio no nariz porque ele parecia assobiar quando se levantou para me cumprimentar.

“Boa tarde, senhorita Berry-Lopez. Meu nome é Gilbert Coldman e sou representante legal do senhor Joel Berry para tratar dos documentos de transferência da Tecelagem Haenel para os nomes da senhorita e de Rachel Berry-Lopez Fabray.”

“Muito bem” – e senhor White tomou a dianteira – “Podemos finalmente ver esses papeis?”

A minha mente fiou confusa. Enquanto o senhor White e o advogado de zaide discutiam papeladas, eu não conseguia prestar atenção no que diziam. Tudo que sentia era o desespero de ter mais uma responsabilidade do meu calcanhar. Pedi licença, saí da sala de reunião ou morreria sufocada lá dentro e decidi ligar para zaide, mesmo sabendo que não deveria fazê-lo de cabeça quente.

“Alô? Zaide?” – disse furiosa assim que atenderam o celular.

“Não Santana, aqui é a sua avó” – bubbee disse com estranha calma – “O seu avô saiu e se esqueceu do celular.”

“Bubbee, eu sei que ele está aí e não quer me atender.”

“Talvez. Mas você pode falar comigo, correto? Ah, e antes que me esqueça, feliz aniversário, sheli nechdah. Mazál tov” – odiava quando bubbee se referia a mim em hebraico. Odiava. Em nossas celebrações tudo bem, mas no dia a dia era puro sinal de dissimulação.

“Todá rabá, bubbee. Mas, por favor... preciso falar com zaide.”

“Ele não está.”

“Por favor!” – estava quase chorando.

“Presumo que recebeu o seu presente” – ela riu ao telefone.

“Não tem a menor graça, bubbee. A senhora sabe que eu não posso.”

“Será, Santana? Você se preparou por tanto tempo para assumir uma empresa de um estranho que é muito maior do que a nossa humilde tecelagem. Eu não digo que você deva desistir da sua vida e do seu trabalho aí em Nova York, mas o que o seu avô fez não foi para te prejudicar. Ele só quis adiantar algo que estaria em suas mãos e de Rachel tão logo ele fechasse os olhos.”

“Mas ele ainda não fechou os olhos.”

“Não ainda, graças a deus. Mas o seu avô é um velho diabético que está muito cansado. Mês passado ele recebeu a notícia de que está ficando cego. Foi o que finalmente o convenceu de que deveria se aposentar e aproveitar um pouco da saúde que lhe resta. Ele trabalhou duro a vida inteira, Santana. Manteve as fábricas para que Hiram não tivesse as privações que nós passamos. E depois que Hiram se foi, ele só pensava em você e Rachel. Especialmente em você, que sempre foi mais ligada a ele. Eu não sei como você vai administrar tudo, mas eu tenho certeza que encontrará um jeito porque é uma das pessoas mais capazes que tive o privilégio de conhecer. O que sei é que no próximo mês eu vou embarcar com o seu avô para a Cecília, porque um dos últimos desejos dele é visitar a terra dos pais enquanto ainda pode ver alguma coisa.”

Fiquei sem palavras. Que argumentos poderia usar contra? O que bubbee disse era mesmo verdade: zaide era um homem velho e diabético que trabalhou duro a vida inteira. Era um senhor de 80 anos que já não tinha mesmo a energia de lidar com tanto estresse.

“Eu não sei se o que vou te dizer vai ajudar, mas o seu avô não se importa com as fábricas. Ele se importa de verdade é contigo e Rachel. E eu também. Pense nisso quando for tomar a sua decisão.”

“Pensarei. Shalom, bubbee. Diga a zaide que eu o amo.”

Esperei um pouco do lado de fora da sala para ponderar minimamente a respeito. Quando me reuni com os advogados, houve um silêncio na sala.

“Onde assino?” – perguntei encostando-me a poltrona.

“Santana, eu conversei com o senhor Coldman e essa transferência pode esperar pelo menos até Rachel também estar presente. É o mais correto a se fazer.”

“Claro... claro...” – encarei o advogado de zaide – “Senhor Coldman, agradeço a sua presença e gostaria de te reembolsar todas as despesas com passagens e hospedagem do senhor aqui em Nova York e acho pertinente que marquemos uma nova data para nosso encontro. Será que no dia 3 de janeiro nas fábricas em Cleveland está bom para o senhor?”

“Está perfeito” – me deu um cartão – “Aguardo a senhorita tal como a senhora Fabray em Cleveland e obrigado pela consideração.”

Acenei e apertamos as mãos. Senhor White permaneceu à mesa enquanto eu acompanhei o outro advogado até a recepção. Quando voltei, sentei-me na frente do meu advogado.

“Preciso ter uma reunião com Mendez, Friedlander e Banks sobre a possibilidade da Weiz comprar as fábricas de zaide, ou pelo menos 50% das ações, caso a minha irmã não queira vender a parte dela. Sei por conhecimento de causa que o conjunto todo não vale mais do que 70 milhões. Também preciso fazer uma consulta com Antoine do financeiro sobre outras opções de mercado. Tenho algumas em mente, mas preciso de uma segunda opinião. Talvez possa vender a marca por um valor menor e ficar com o imóvel, o que seria também interessante. Também quero ver a tabela orçamentária e proposta para minha Rock’n’Pano estabelecer um contrato com a Tecelagem Weiz no fornecimento de tecidos e confecção.”

“Isso vai requerer os relatórios de custos e lucros da empresa do seu avô.”

“Sei disso. Vou providenciar o envio do documento ainda hoje.”

“Agora você está falando como a jovem boa empresária que conheço” – White sorriu.

“Tive um ataque de pânico, mas minha avó me ajudou a voltar para a terra.”

“Claro” – senhor White sorriu.

“Senhor White, cá entre nós, acho que vou precisar de um baseado no fim do dia. Com certeza de uma garrafa de vinho.”

Ele gargalhou.

“Feliz aniversário, Santana.”

“Obrigada.”

...

30 de dezembro de 2018

(Quinn)

“Juro que vou aproveitar o cantinho dos meus pais para dormir por uma semana. Estou morta.”

Minha mulher se atirou na cama do quartinho reservado a nós na casa dos meus sogros. Olhei para o ambiente e franzi a testa. Confesso que preferia ter ido direto para Nova York, mas Rachel prometeu a Santana e aos pais que passaríamos o ano novo em Columbus. Foi uma decisão unilateral e que não tive espaço para argumentar contra. Essa família Berry-Lopez estava em polvorosa nesse fim de ano. Ai de mim se eu falasse qualquer coisa.

“Estou com fome” – era verdade. Tomamos um chá de aeroporto porque nosso voo atrasou, serviram amendoim de lanche e Santana teve de nos buscar em Cleveland. Ainda tive de esperar porque as meninas passaram na casa dos avós para pegar umas papeladas além de desejar feliz ano novo aos dois. Complicação. Pura complicação. E eu ali azul – “será que sobrou alguma coisa do almoço?”

Rachel me olhou como se tivesse crescido mais duas cabeças no meu pescoço. Desculpa se eu realmente estava com fome e não estava afim de me envolver no último drama financeiro. Minha opinião estava dada, Rachel era uma atriz com pouca habilidade para administração de finanças. Ela que vendesse a parte dela à Santana e pronto. Mas ao que parece, o negócio vai se resolver de outra forma de modo que Joel Berry também se beneficie para garantir uma vida tranqüila não só para ele, como também para Sarah Berry. É uma complicada transação que nem sei por onde começa. Então desisti de entender. Lidar com negócio é coisa de Santana e o melhor que fazia era não me envolver.

Por outro lado, se fosse só isso estaria tudo bem. Ainda havia um draminha pessoal envolvendo o meu sogro. À pedido de Shelby, as meninas iriam ajudar a pressionar para que ele largue o posto de cirurgião chefe do hospital para aceitar o cargo na OSU. A única coisa boa de estar em meio a essa confusão é que posso prosseguir na minha reaproximação a Beth. Ela já não é mais tão hostil a mim desde o incidente em Nova York. Isso é uma ótima coisa no meu caderno, porque tudo que mais desejaria era a aceitação da minha filha. Sei que não a teria de volta. Não tenho direito algum. O que está feito, está feito. Mas só em ter a amizade dela, já seria um sonho.

Enquanto Rachel permanecia esparramada na cama, fui até a cozinha para literalmente checar as panelas. Havia peixe grelhado, um resto de salada verde, maionese com batata e um arroz com milho. Aqueci tudo no microondas e sentei para almoçar às quatro horas da tarde.

“Desde quando você virou operário de construção?” – Johnny sorriu ao ver o tamanho do prato que fiz.

“São quatro horas da tarde e a última refeição que tive foi às seis da manhã.”

“Está perdoada.”

Olhei para os lados para checar a movimentação da casa. Beth estava brincando no quarto dela, Santana conversava com Shelby e Rachel deveria estar meditando para agüentar esse jejum.

“Como está o clima aqui?” – perguntei baixinho.

“Shelby e Juan tiveram uma briga feia depois que chegamos da festa de natal na casa dos tios das meninas em Lima, porque Juan mal pisou em casa e já foi para o hospital. Desde então ele mal o vejo por aqui. Santana está apreensiva, mas totalmente ao lado da mãe, o que é inédito.”

“De fato. Rachel e eu só viemos passar o ano novo aqui porque Shelby pediu e Santana reforçou. Nosso plano era voltar a Nova York, passar o ano novo por lá e depois sair em férias para as Bahamas.”

“Mesmo? San e eu vamos passar duas semanas no Chile em fevereiro. Já estou até treinando espanhol.”

“Adorável” – continuei a mastigar – “E como estão as vendas do livro?”

“Ótimas para uma editora pequena. Se bem que esse lance de e-book ajuda bastante.”

“Eu gostei do que você fez. Você se encaixou bem nesse estilo de pesquisa. Bem mais do que nos romances.”

“Meu editor sugeriu outro livro na linha de pesquisa em centros urbanos...” – ele parou de conversar quando Rachel entrou.

“O que tem para comer?”

“Arroz com milho, maionese de batata e um resto de salada verde” – mesmo se Rachel não fosse vegetariana não havia sentido em dizer que tinha peixe porque eu peguei todos os pedaços.

“Preciso de comida” – Rachel também esquentou tudo no microondas.

“Johnny, Johnny” – Beth entrou correndo na cozinha – “Está nevando! Você disse que a gente faria uma guerra de neve se nevasse. Precisamos derrotar Santy.”

“Só que a princesa Santana está tendo um particular com a rainha Shelby nesse momento e não sei se ela estará com bom humor para guerrear.”

“Mas você disse...” – o rostinho de decepção da minha filha era adorável. Estava perdida. Por mais mal-criada que fosse, essa menininha me tinha na palma da mão.

Ouvimos a porta da frente bater. O barulho foi seguida das vozes de Santana, Shelby e Juan. Dois minutos depois, meu sogro aparecia na cozinha.

“Oi pai” – Rachel se levantou para abraçá-lo.

“Hola mi estrellita. Que tal el viaje?”

“Agotador. Estoy muerta de cansancio.”

“Somos dos, hija.”

Depois de tanto tempo namorando Rachel, já conseguia entender mais ou menos o espanhol. Não sei como o clima da casa estava ao certo, mas Juan me passou a impressão de estava mesmo esgotado. Ele abraçou e beijou Beth antes de me cumprimentar com um rápido e frio abraço.

“Como está Quinn?” – ele disse com a cordialidade habitual.

“Muito bem, senhor. Só um pouco cansada.”

“Entendo. Que bom que está em casa, certo?”

Acenei, mesmo não concordando. Santana estava em casa, Rachel estava em casa. Mas eu não me sentia em casa. Não podia falar por Johnny. Juan estava com a barba crescida e mais magro, como se estivesse doente ou algo parecido. Ele saiu da cozinha acompanhado por Beth e nesse meio tempo Santana entrou. Parecia que ela estava brigada com o pai.

“Agora você entendeu?” – dirigiu-se a irmã.

“Acabei de chegar, Santy. Deixa eu comer primeiro.”

Terminei o meu almoço/janta e fiquei sentada no sofá da sala da lareira, que também ficava a televisão, assistindo uma reprise de Charlie Brown. Peanuts era sempre uma boa pedida para quem não queria pensar em coisa alguma, rir um pouco e não correr o risco de ficar ofendido com uma piada grosseira. Johnny sentou-se ao meu lado e Beth estava sentada no tapete prestando mais atenção no Nintendo do que no mundo ao redor.

Acho que cochilei no sofá. Quando dei por mim, passava o noticiário das sete horas na televisão, Beth já não estava ali, ou Johnny. Pior: havia vozes de discussão vindos da sala. Fui lá espiar discretamente.

“É isso que o seu pai faz agora. Dobra plantões para ficar longe de casa e não ter que ouvir a verdade” – Shelby reclamou.

“Eu tenho uma chance real de fazer um trabalho aqui e não vou desperdiçar isso para dar aulas a moleques que tem medo de sangue.”

“Vocês deveriam ponderar...” – Rachel tentava entrar na briga.

“Como o senhor vai ter uma chance real se o hospital cortou o investimento da sua pesquisa de anos?” – Santana gesticulava – “Me parece idiota receber um salário a mais para se tornar um burocrata que faz cirurgias.”

“Ah claro, Santana. Olha quem fala de burocracia quando você é a especialista no assunto” – Juan debateu.

“Eu sou uma empresária, não uma burocrata, papi.”

“Tem razão. Você é a figura que passa por cima de tudo para ter lucro.”

“Interessante o senhor usar o papo socialista quando lhe convém. Acho que isso faz do senhor um tremendo hipócrita, diga-se de passagem.”

“Santana!” – Shelby e Rachel a censuraram ao mesmo tempo. O tempo estava fechado e era bom que Beth não tivesse ali para ouvir aquilo. Provavelmente Johnny estava no segundo andar com ela.

“Eu cansei dessa conversa” – Juan foi saindo da sala.

“Você está fugindo de novo” – Shelby vociferou – “É o que aprendeu a fazer agora. O que há de tão atraente nesse hospital agora? Por um acaso é uma enfermeira nova. Ou um enfermeiro? O que é, Juan? Por que você não abre o jogo na frente das suas filhas?”

“Olha aqui” – ele deu meia-volta com o dedo apontado – “Eu nunca dei motivos para você duvidar da minha honestidade. Mas se é isso que quer, posso providenciar.”

“Vai se foder, Juan” – ela deu um tapa na mão do marido.

Vi Juan se enfurecendo e o pânico tomando conta dos rostos de Rachel e Santana. Eu fiquei com medo naquele instante. Vi Rachel tentando entrar no meio dos dois enquanto Santana continuava parada. No meio da confusão, Juan pareceu paralisado. Ele deu dois passos para trás, esbarrou na poltrona e caiu de costas.

“Pai?” – vi Rachel sussurrar. Juan levou a mão ao peito e parecia sem fôlego – “Pai!” – Rachel gritou enquanto Santana e Shelby continuavam paralisadas.

Minha esposa correu até Juan e foi quando eu me aproximei para ver o que aconteceu ou se poderia ajudar.

“Quinn” – ela olhou para mim e disse com urgência – “Liga para 911. Agora!”

Tateei o bolso em busca do meu celular. Como não encontrei, corri até o quarto meu e de Rachel. Procurei dar o melhor de mim para não entrar em pânico. Encontrei o meu telefone em cima da mala e disquei o número de emergência.

“Aqui é Quinn Fabray, falo da...” – lutei um instante para lembrar do endereço – “Meu sogro precisa de uma ambulância agora.”

“Tudo bem, Quinn. Me diga em que endereço está.”

“Acho que é... South Virginia Road, 220... acho que é isso.”

“Ok, Quinn vou acionar agora uma ambulância. Você está sozinha com o seu sogro?”

“Não. A família está aqui... eu... eu não sei o que se passa, mas ele está passando muito mal” – disse me encaminhando novamente para a sala. Rachel estava ao lado do pai enquanto Santana segurava Shelby. Fiquei ainda mais apreensiva quando vi Johnny segurando Beth, que se debatia – “Por favor, só venham depressa.”

As cenas pareciam que ficaram em câmera lenta. Juan estava ali deitado no chão, Rachel tentava agir, Beth chorava e Shelby também enquanto Santana tentava mantê-la distante do marido. Ouvi o barulho da ambulância e corri para abrir a porta. Os paramédicos chegaram, colocaram Juan numa maca e vi Rachel seguindo com o pai na ambulância. Johnny parecia ser o mais calmo. Shelby me ordenou cuidar de Beth, enquanto Johnny pegou as chaves do carro e foi seguido por minha sogra e Santana. Beth tentou ir com eles, mas eu a segurei. Ela se debatia para se libertar, gritava e me xingava, mas eu a apertava envolvida nos meus braços, até que ela parou de resistir. Quando a libertei, Beth me chamou de vagabunda. Que eu não deveria existir. Em meio a minha confusão mental, tive um impulso. Minha mão colidiu no rosto da minha filha.


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