Abril de 2020

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04 de abril de 2020

(Rachel)

Era incrível como minha irmã era linda. Parecia que ela ficava ainda mais bela na simplicidade. Ali estava ela com um vestido simples branco que ia até a altura dos joelhos. Tinha um arranjo muito bonito de flores no cabelo. O véu seria colocado à parte, apenas para cumprir a tradição da nossa religião. Fez um dia lindo em Honolulu e tudo estava na mais perfeita ordem. Tinha de agradecer Marta Romanov por ter feito tudo daqui. Lógico que ela estava em contato comigo por telefone o tempo todo e foi muito bem paga. Ainda assim, há de se elogiar o grande serviço prestado. Sem falar que o restaurante que ela e o meu colega de Broadway, Wilson Romanov, tocavam servia uma comida espetacular. O sucesso do buffet estava garantido. Mas nada disso tranqüilizava Santana, que andava de um lado para outro e apertava as mãos. Entendia bem o lado dela. Também tinha passado pela mesma coisa. Lembro de estar tão nervosa no dia do meu casamento que mal conseguia pensar.

“Será que todo mundo está aí?” – ela me perguntou pela enésima vez.

“Todo mundo está te esperando, inclusive Johnny.”

“Oh meu deus, eu vou me casar” – ela sacudiu as mãos para tentar relaxar os braços.

“Não está pensando em dar uma de Julia Roberts, né?”

“O quê?”

“Noiva em fuga.”

“Oh” – ela voltou a olhar pela janela do quartinho – “Não sei...”

“Santy!”

“Eu estou nervosa, Ray, caso ainda não percebeu. E eu já estou no limite do vinho. Mais uma taça e vou perder o controle e partir para a embriaguês.”

“Ao menos você está ciente o suficiente para se preocupar com essas coisas.”

“Odiaria ir bêbada ao altar.”

“Relaxa” – segurei a mão da minha irmã – “Daqui a pouco você vai sair desse quarto para os braços do seu homem.”

“Bizarro, não é?”

“O quê?”

Santana não respondeu. Fomos surpreendidas pela entrada de Brittany e Quinn. As três madrinhas estavam reunidas com a noiva. Tínhamos vestidos com modelo similar ao da minha irmã, porém azul para fazer uma relação com céu e mar. Enfim, tudo na festa tinha pequenos significados, inclusive a pulseira afro de papai que estava enterrada na cápsula do tempo. Fazia quatro anos que Santana e eu fomos ao Oregon com essa missão. Nossa, nem parece que faz tanto tempo assim.

“Dez minutos, San” – Brittany deu um afago no braço da minha irmã.

“Já?” – ela esfregou as mãos como se estivesse com frio.

“Últimas palavras antes de entrar para o time das casadas?” – Quinn tentou brincar.

“Quero morrer?”

“Não creio que Johnny vá gostar de saber disso” – mais uma pequena provocação, e eu já considerava expulsar minha própria esposa daquele quarto. Santana estava realmente nervosa.

“Bom, ele não é o cara? O seu homem?” – Brittany perguntou à sério.

“É sim” – Santana respondeu de imediato, mesmo que baixinho. Brittany deu um beijo na mão da minha irmã e sorriu.

“Então vá lá e não perca a oportunidade, San. A gente não pode ter medo de ficar com as pessoas que amamos de verdade.”

As duas se encararam, sorriram uma para outra e trocaram um longo abraço. Era a despedida. Não uma de verdade, mas uma despedida simbólica, como se Santana deixasse o passado amoroso com Brittany para trás em definitivo com a benção da própria. Quinn passou o braço pelo meu ombro. Acredito que ela também interpretou a cena da mesma maneira. Que ali estavam as melhores amigas de uma vida, pessoas que se amavam profundamente, num momento muito especial. Elas trocaram ainda um selinho nos lábios, um nada diferente que eu trocava com a minha própria irmã de vez em quando. Santana tratou de enxugar uma lágrima e que bom que a maquiagem não borrava. Ali eu soube: acabou.

Bateram à porta. Era meu pai. Ele estava lindo com uma camisa social cor creme de um tecido leve e calça social. Usava sandálias em vês de sapatos, assim como todos nós. Seria ridículo andar de salto alto na areia ou sapato social.

“Eu vim buscar a noiva” – meu pai franziu a testa e fez cara de choro – “Ainda bem que vou ter um bom espaço de tempo até fazer isso de novo. Meu coração não é mais tão forte para receber esses golpes baixos.”

“Que horror, pai!” – reclamei, mas Santana sorriu.

“Quando a sua filha estiver a caminho do altar, você vai se lembrar dessa cena e vai me dar razão” – olhei para a minha própria barriga já protuberante e arredondada. Automaticamente comecei a alisá-la e senti um pequeno chute.

“Ela não gostou do seu comentário” – repreendi meu pai – “Não ligue para o seu avô, filha. Ele está ficando velho.”

Meu pai revirou os olhos e Quinn deu uma gargalhada. Brittany entregou o véu para Santana e saímos do quarto. Santana e meu pai ainda ficaram lá dentro, provavelmente num momento muito particular entre os dois. Beth veio nos encontrar. Ela era a florista. A moça o cerimonial nos posicionou e foi feito um pequeno anúncio para a entrada das madrinhas. Saímos do hall da pequena pousada direto para o pedaço reservado da praia. Havia poucas pessoas, o que era compreensível num casamento realizado no Hawaii. Do lado do noivo estava o irmão e família, Tony e Dana, Thomas Bressan e esposa e o filho mais jovem do casal que tem 16 anos. Bressan foi o melhor amigo do pai de Johnny e é uma espécie de padrinho não-oficial dele. Foi Bressan quem ajudou Johnny a sair do fundo do poço na época mais difícil da vida dele e também foi ele quem me deu um emprego por alguns meses logo depois que cheguei a Nova York. Eu fui a garota do Xerox no escritório de advocacia que ele tem no Harlem. Também tive a oportunidade de conhecer Kevin, o irmão de Johnny, na véspera do casamento. Então entendi porque os dois não são próximos.

Os convidados da noiva eram mais numerosos. Além dos meus pais, Beth, Brittany e Robby, também foram: Tomiko e Andrew, senhor White e esposa (outros executivos não compareceram porque Santana iria promover uma recepção só para o pessoal da Weiz em Nova York depois que voltasse da lua de mel – minha irmã não queria misturar os públicos), todos os Lopez compareceram, menos minha prima Daniela e família, zaide e bubbee, Linda Corcoran, Kurt e David (os dois assumiram o namoro). Os únicos convidados “alheios” foram o casal Romanov. Senti falta de Mercedes, mas aparentemente ela queria distancia de qualquer um com o sobrenome Lopez.

Johnny estava de pé no altar simbólico, que tinha ao fundo o próprio oceano. Ele tinha roupas similares à do meu pai. Ao lado dele, como bom padrinho, estava Mike, com jeito de orgulhoso. Vi a minha mãe ao lado dos meus avós. Acenei para eles enquanto atravessava o pequeno corredor com pequenas colunas de flores. Algumas tochas circulavam a pequena arena naquele entardecer. Minha irmã tinha razão quando optou por casar no Hawaii: o cenário seria magnífico.

Depois das madrinhas, Beth entrou jogando as pétalas de rosa no tapete que Santana passaria. Ventava um pouco e o barulho do mar se misturava ao pequeno burburinho. Sendo a principal madrinha, posicionei-me no altar me espelhando com Mike, ao lado de Johnny. Vi a minha mãe chorosa, assim como zaide. Bom, Santana era a favorita deles, certo? Alisei a minha barriga e parei minha mão no ponto em que minha pequena guria pressionava o pezinho. Se pressionasse um pouco, talvez poderia contar os dedos. Talvez.

“O que foi?” – Quinn sussurrou no meu ouvido.

“Nada, é só a sua filha que está agitada.”

Os músicos começaram a tocar um arranjo violão e ukulele de Here Comes de Sun. A música que minha irmã entraria era uma surpresa e de fato foi. Tudo bem que ela gostava bastante de Beatles, mas nunca pensei que ela fosse querer entrar ao som de uma música deles. Sabia, por outro lado, que não seria uma cantiga religiosa. Ela entrou com o véu, de braços dados com meu pai, que estava nervoso. Ele deu um beijo na testa da minha irmã antes de cumprimentar Johnny e entregá-la ao marido. Achei essa parte emocionante. Minha irmã 29 minutos mais velha estava casando. Peguei um lenço e sequei minhas lágrimas. Senti Quinn atrás de mim, como se me desse um discreto, mas importante suporte. As pessoas se acomodaram e a cerimônia começou.

O rabi começou a fazer as orações e o discurso de benção. Assim como aconteceu no meu casamento, o rabi não fez a celebração na tradição judaica porque Quinn é cristã. No caso aqui, Johnny é agnóstico. Os dois já estavam casados em cartório num dia que não houve cerimônia alguma. Só assinatura de papéis na presença do senhor White, minha e de Mike. Não houve discursos ou declarações. Só um beijo trocado entre Santana e Johnny. Horas depois, minha irmã, Brittany, Robby e eu embarcamos para Los Angeles.

Rabi disse palavras doces e advertências sobre a vida a dois. Neste ponto, encostei minha cabeça no ombro da minha esposa. Era um ponto em que sempre a gente pegava carona e renovava intimamente e silenciosamente nossos votos em segredo também. De fato era mesmo uma cerimônia muito bonita. Olhei para os convidados e todos estavam compenetrados numa estranha harmonia. Alguns com os olhos marejados, como era o caso de bubbee. Zaide permanecia com os olhos fechados e as mãos unidas como se ele mesmo estivesse fazendo uma prece de benção. Meu avô parecia tão cansado. A saúde não era boa, estava com algumas dificuldades e a perda de visão avançava por conta da diabetes, de tal forma, que eu agradeci por ele ainda ser capaz de poder enxergar, mesmo que mal, o casamento da minha irmã.

Os demais convidados estavam compenetrados. Muitas esposas encostavam as cabeças em seus maridos. As crianças não prestavam atenção, claro, mas também não atrapalhavam. Se bem que não havia ali criancinha de colo. O mais jovem era justo Robby, que tinha cinco anos. Ele era seguido, em idade, por Beth e meu primo Simon.

Então chegou o momento de trocarem os votos. Eles ficaram de frente um para o outro. Johnny foi o primeiro.

“Duas coisas que sempre odiei na vida de solteiro: primeiro é a falta de disposição de comer em casa, porque preparar refeições só para você mesmo é tedioso. A outra coisa é lavar roupa. A primeira a gente resolve, a segunda não tem jeito. Por outro lado, hoje eu agradeço a deus todos os dias pela necessidade da higiene, porque senão eu jamais teria conhecido a mulher da minha vida exatamente numa lavanderia pública. Quando eu te vi entrando toda brava, dizendo para a sua irmã quais eram as opções de pé sujos da redondeza em que poderiam comer por causa do pouco dinheiro, pensei comigo: que menina linda e que personalidade. Em dez minutos você me destratou e depois praticamente vendeu a sua irmã por causa de folhas de amaciante” – pausa para risadas. Especialmente de quem estava presente no fatídico dia.

A cena desse dia voltou forte à minha mente. Lembro muito bem de ter sido abordada pelo sujeito que parecia um mendigo que tomava banho dia sim dia não. Johnny tinha cabelos cumpridos, sem um corte, os dentes eram amarelos e as roupas cheiravam maconha. Pensei que ele fosse me assaltar. Quinn tirava fotos em frente à lavanderia e Mike dançava com um fone no ouvido. Oito anos depois, Johnny tem dentes brancos, se veste muito melhor, tem cabelos bem cortados que ressaltam o homem bonito que é. Quinn continuava fotografando. Ela saiu ao lado do altar e estava entretida tirando fotos do casamento. Mike não tinha um fone no ouvido, mas fisicamente mudou nada. Por deus do céu, ele chegaria aos 40 com cara de garoto. Johnny continuou:

“Aquele encontro me fez acreditar que existe mesmo destino. No dia seguinte nos encontramos novamente de um jeito casual e trocamos contatos. Em poucas semanas éramos grandes amigos. O tempo passou e eu me apaixonei de tal forma que hoje estou aqui implorando para que você aceite passar a eternidade comigo. Santana Berry-Lopez, eu te amo tanto que sou capaz de fazer tudo que pedir. Eu te ofereço casa, comida e principalmente roupa lavada em qualquer lavanderia que me pedir para ir. Te ofereço todo o meu ser, minha alma é sua. E tudo que peço em troca é que me ame também. Que cuide deste meu coração, que é frágil. Eu te amo para sempre, San. Você aceita ser a esposa deste cara meio maluco e sonhador?”

“Aceito” – Santana tinha um lago sorriso no rosto e lágrimas nos olhos.

Mike passou o anel para Johnny, que o colocou no dedo da mão esquerda da minha irmã. Em seguida, deu um beijo prolongado no anel já devidamente posto. Era a vez de Santana.

“Gostaria de ter o dom de dizer palavras bonitas agora” – Santana começou um pouco trêmula – “Eu tenho dom com números e insultos. Mas poesia? Papai, que Deus o tenha, era bom com as palavras, e você também é. Mas eu sou tão atrapalhada em dizer coisas sobre o coração que até apelei e pedi para Rachel escrever um discurso para mim” – fiquei vermelha. Foi verdade – “Só que a minha irmã usa advérbios e palavras grandes demais. Desculpe Ray, mas tive de jogar aquele troço fora” – fiquei ainda mais vermelha quando ouvi as risadas dos presentes – “Talvez eu me arrisque dizer algumas palavras próprias” – sorriu e depois fez uma pausa. Respirou fundo e se concentrou no noivo – “Meu Johnny Boy, eu sei bem que não sou uma pessoa tão fácil de lidar. Minha irmã e minha família que o diga” – mais algumas risadas – “Mas você me enxerga de uma forma tão especial que muitas vezes me comove. É como se fosse além das minhas máscaras, das minhas idiossincrasias, das minhas birras, e enxergasse apenas a Santana, menina bobona e nerd que sou. Não sabe o quanto sou grata a você por me suportar e por me dar afago nos momentos em que mais preciso. Eu te amei primeiro como amigo. Agora te amo como homem e companheiro que desejo ter pelo resto da minha vida. É incrível como esse sentimento apenas cresce em mim a cada dia. Eu não sei o que exatamente fez comigo, Johnny Boy, mas você desperta desejos que nunca tinha sentido antes. Ontem era apenas uma garota meio turrona que vivia a juventude. Hoje sou uma mulher que cobiça poder envelhecer ao seu lado, com filhos e netos à nossa volta. Sei que será nada fácil, mas você aceitaria ser meu marido e companheiro de uma vida inteira?”

“Só se a gente puder começar neste segundo! Eu aceito, minha princesa!”

Bati palmas empolgada com o instante. Então vi que minha irmã me deu um olhar atravessado e me lembrei que o anel estava comigo. Sorri e entreguei o símbolo da união dos dois. Assim que ela desposou Johnny, meu amigo surpreendeu: pegou Santana pela cintura a ergueu e a girou no ar uma vez antes dos dois compartilharem um dos beijos mais românticos que vi em casamentos. Não foi por menos que os convidados aplaudiram de pé.

“Sendo assim” – Rabi continuou – “após tanto amor emanado aqui pelos noivos e pela família dos mesmos, eu vos declaro marido e mulher. Você já beijou a noiva, mas pode beijar de novo.”

Johnny e Santana trocaram um beijo mais comportado. O violonista começou a tocar “All We Need is Love” num solo muito bom enquanto os noivos começaram a abraçar os padrinhos e também os meus pais. Brittany foi a última a ser abraçada por Santana. Vi que ela disse algumas palavras ao ouvido da minha irmã que já estava às lágrimas. Tenho certeza que eram palavras de amor. Uma vez que todos estavam recompostos, o rabi deu por encerrada a cerimônia. As pessoas aplaudiram mais uma vez. Antes dos recém-casados saírem do altar, zaide repetiu a cena que fez no meu casamento: ele ofereceu uma taça de vinho aos noivos. Depois de beberem, envolveu a taça de cristal num lenço e a quebrou ao pisá-la. Era a forma tradicional de abençoar a união. Santana abraçou zaide antes de pegar na mão do agora esposo e sair do altar. Era hora da festa, que aconteceria no mesmo lugar, uma vez que o hall e o pátio da pequena pousada estava enfeitado e pronto para a festa do casamento. O altar e as tochas ficariam ali na praia e as pessoas poderiam retornar à areia sempre que quisessem.

Peguei na mão da minha esposa e nos direcionamos à festa.

Foi outro ponto em que tudo estava ótimo. As pessoas se acomodaram no espaço, o DJ começou a tocar canções tradicionais do Hawaii para construir um ambiente inicial. As bebidas começaram a circular assim como alguns dos petiscos para que as pessoas esperassem pelo jantar com alguma coisa no estômago. Peguei Quinn pela mão e nos arrumamos numa mesa junto com Mike, Brittany, Kurt e David. Imediatamente ao lado estavam Tony, Dana, Andrew e Tomiko. O resto da família estava espalhada. O senhor White e esposa foram convidados a sentarem com meus pais e meus avós. Mas isso era só no início porque minutos depois todo mundo circulava no espaço. Também não demorou muito para o DJ anunciar a chegada dos noivos.

“Senhoras e senhores, eu vos apresento Santana Berry-Lopez e John Edward Hall Jr.”

Pode parecer sem-graça que os dois tenham optado por não mudar os nomes. É bem a cara da minha irmã continuar em sua postura de Berry-Lopez do que adotar o Hall. Santana Liza Hall não ficaria bem. Johnny Berry-Lopez até que soava bem, mas não acho que ele perderia a identidade dele assim em favor da esposa. Só sei que independente de nomes, eles estavam casados e felizes. Entraram no pátio dançando “This Is Love”, do Bob Marley. Conforme a tradição, os pais e os padrinhos se juntaram aos dois. Johnny dançou com minha mãe e Santana com meu pai. Eu puxei Quinn para a pista de dança. Confesso que me atrapalhei um pouco em dançar com essa barriga junto com minha esposa. Mas tudo há um jeito nessa vida. E nós dançamos. E comemos. E Quinn bebeu por mim e por ela. Brittany teve seu direito a dançar com Santana, inclusive uma música lenta. Acredito que foi uma despedida honrosa para a história do romance delas: nostalgia sim, mas com uma desejando sempre a felicidade da outra. As pessoas dançaram e foram bem servidas.

No final, depois do bolo e da despedida à francesa, assim como no meu casamento, Johnny e Santana se despediram de nós. Apenas simbolicamente porque eles iam passar mais uns dois dias em Honolulu antes de embarcar para o Japão. A maioria da família também ficaria mais dois ou três dias aproveitando as mini-férias. Santana cumprimentou o padrinho e o irmã de Johnny. Depois reservou mais tempo para nós. Primeiro Beth, depois Quinn, meus pais e eu fui deixada por último.

“Eu te amo, Ray” – ela me deu um abraço apertado, ainda que fazendo o máximo para não apertar a minha barriga.

“Eu te amo, Santy.”

“Não se esqueça que o nosso cordão umbilical continua intacto.”

“Sempre.”

Passei gentilmente a mão no rosto dela e limpei as lágrimas. Minha irmã pegou na mão de Johnny e deixou a festa. Eu suspirei. Mais um círculo foi completado. Então olhei para Quinn e passei a mão na minha barriga. Um novo círculo começou.

...

28 de abril de 2020

(Santana)

Televisão estava cada vez pior. Parecia que o emburrecimento cultural generalizado havia chegado ao ápice. Trocava de canais e nada me satisfazia. Um bando de seriados de merda para agradar os dois neurônios sobreviventes entre boa parcela da população. Nem mesmo Johnny estava presente para me distrair. Ele foi a trabalho a uma feira literária em Michigan. Ainda bem que não precisava sequer cogitar em acompanhá-lo devido à série de compromissos com a Weiz e a Rock’n’Pano. Mesmo se tivesse tempo livre, o que ia fazer naquele fim de mundo chamado Detroit? Só tinha trabalhado no período da manhã naquele dia. Cheguei de lua de mel no fim de semana e o meu ritmo de trabalho ainda era cadenciado. Voltaria à loucura habitual tão logo chegasse a segunda-feira. Era prudente retomar aos poucos.

Coloquei no HV1 e estava passando um daqueles programas sobre fama. O alvo da semana: Vanessa Hudgers. Sequer era uma atriz tão boa assim. Toda a estrutura do programa era ridícula.

Era por isso que gostava dos programas da Discovery. Não precisava fritar o meu cérebro com bobagens. Bastavam as revistas de fofocas que lia a cada vez que me encontrava num consultório de médico ou no dentista. As pessoas davam valor demais para a vida alheia. Ontem a imprensa repercutia o rasgo na calça da Cameron Diaz. Hoje as páginas da internet repercutiam a frase da minha irmã: “Sou casada com uma mulher”.

Era por isso que evitava a internet por hoje. Não queria ceder à tentação e visitar os sites que estavam comentando a notícia. Pior: ler os comentários. Eles eram os piores. Não importa o quão decente você fosse: as pessoas simplesmente diriam coisas horríveis ao seu respeito simplesmente porque queriam encher o saco e falar um monte de besteiras gratuitas. Minha vontade era de sair xingando todos os cretinos. Mas criar polêmica só pioraria as coisas. Ainda bem que não dava bola para redes sociais. Tinha aquelas obrigatórias que usava mais por questões profissionais.

O problema é que o assunto me chateava mais ainda quando pensava que Rachel não deu pistas sobre o que estava por vir. Ficou em silêncio. Brittany é que ligou para mim e disse que eu deveria dar uma olhava na internet. Li a entrevista cedida a Norah alguma coisa. É uma colunista de televisão de algum renome. Tentei ligar para a minha irmã e ela não me atendeu. Deixei recado. Assim como deixei e recebi vários recados dos meus pais, de Johnny e até de Mike. Todos disseram mesmo: foram surpreendidos com a declaração.

Então procurei tentar aliviar meus pensamentos com besteiras na televisão. Mas a burrice só me fazia ficar ainda mais ansiosa.

Peguei o meu tablet e acessei de novo a entrevista:

“Filha de duas mães

Rachel Berry revela numa entrevista exclusiva sua verdadeira sexualidade e mais: a filha que está esperando não teve participação de um espermatozóide.

Por Norah Elster

A história de vida da atriz Rachel Berry é incrível desde o nascimento. Ela e a irmã gêmea foram geradas pela mulher que doou os óvulos e também foi a barriga de aluguel para os dois pais das meninas. O procedimento de fertilização foi o velho método in vitro. Pouco mais de 25 anos depois, Rachel está grávida de uma menina gerada pelo mesmo procedimento. Porém com uma diferença: em vez da tradicional fecundação espermatozóide-óvulo, a criança foi gerada a partir de dois óvulos. Um de Rachel Berry e o outro da esposa que ela manteve em segredo por anos com a cineasta Quinn Fabray (25). Rachel Berry faz essa confissão e conta a história com exclusividade.

NE – Então você vivia sob um casamento secreto com a cineasta Quinn Fabray?

RB – Correto. Quinn e eu somos casadas há três anos e meio. Mas nos conhecemos há muito mais tempo e termos um relacionamento de oito anos.

NE – E por que só agora decidiu se abrir quanto sua sexualidade e estado civil?

RB – Eu nunca quis esconder o fato de ser homossexual, mas o meu empresário e minha assessora, além dos meus agentes, sempre aconselharam a não arriscar minha carreira por causa do preconceito que sofreria. Apesar de todos os avanços sobre a garantia os direitos civis para todos, sem distinções, nossa sociedade ainda é muito conservadora. A questão é que nunca consegui esconder bem isso. Meus pais sempre ensinaram a ter orgulho do que você é. Então para mim, ficar no armário foi muito difícil e nunca consegui fazer o jogo muito bem. Chegou a um ponto que os fãs especulavam com força, as pessoas especulavam nos bastidores, a imprensa dava indiretas. Comecei a ter pequenos incidentes com paparazzis, que insinuavam coisas porque andava abraçada pelas ruas com a minha irmã.

NE – Então toda a história que você teve com Rom Tyler e depois com Michael Chang e Luis Segal foi uma armação para esconder o fato de você ser gay e que estava numa relação estável?

RB – Não é bem por aí. Rom sempre soube da minha história, e as fofocas entre nós foram criações da própria imprensa. Apenas deixamos acontecer: eu e ele. Sempre fomos amigos e, hoje, mesmo sem estarmos trabalhando juntos, continuamos muito próximos. Sobre Mike, a história de ele ser meu beard foi proposital. Mas a única coisa falsa que existia em nosso relacionamento era o namoro em si. Ele é meu amigo desde Lima, Ohio. Moramos juntos em nossos primeiros anos em Nova York. Batalhamos juntos para vencer na carreira. Eu o amo como um irmão e só tenho a agradecer o que ele fez por mim. O mesmo posso dizer de Luis. Ele propôs me ajudar e fizemos o jogo por algum tempo. Somos bons amigos e temos grande empatia profissional. Já participei de um filme dirigido e escrito por ele, e em alguns dias, minha esposa vai dirigir a fotografia de outro produção dirigida pelo Luis.

NE – Se não me engano, Quinn Fabray também veio de Lima, Ohio, correto?

RB – Sim. Conheço Quinn desde quando éramos crianças. Mas só começamos a namorar em Nova York. Nunca nos separamos desde então e nossa história juntas está prestes a completar oito anos. Ela é o amor da minha vida e em breve vamos começar a expandir a família com a chegada da nossa filha.

NE – Acha que o fato de você ter sido criada por um homossexual e um bissexual pesou na sua sexualidade?

RB – De forma alguma. Meus pais nunca interferiram nisso, nunca fizeram apologias. Pelo contrário, minha irmã e eu vivenciamos situações muito ruins, de preconceito, porque eles eram casados e criavam duas meninas que eram filhas biológicas deles. Seria muito fácil a gente renegar tudo isso porque ser heterossexual é muito mais simples e fácil do que ser gay. Apesar das pessoas acharem que não, formávamos uma família normal: tomávamos café da manhã juntos, meus pais nos faziam comer verduras e fazer o dever de casa. Assistíamos filmes da Disney e tínhamos de dormir cedo. E meu pai Hiram nos fazia ir à sinagoga de Lima todos os domingos. Sobre a minha sexualidade em si, eu tinha atração por garotos na escola. Namorei três deles. Mas foi uma mulher, Quinn, quem me conquistou.

NE – Por que você e sua esposa optaram por ter filhos por meio de um método arriscado e sem autorização para ser feito em nosso país?

RB – Porque queríamos ter filhos biológicos. Não apenas com os genes meus ou os dela. Nossos. E existe um meio para isso acontecer. O método ainda é proibido aqui porque existe um entrave causado por falsos moralismos. Daí a nossa opção por ir à Alemanha e fazer nossa tentativa. Mas acredito que as coisas evoluam aos poucos. Primeiro não se podia falar em homossexualidade. Depois aceitaram que gays existiam, apesar de todos os poréns. Daí alguns estados começaram a concordar que o casamento entre pessoas do mesmo sexo era uma questão de direito civil. Acredito que o nosso país um dia vai dar mais este passo evolutivo rumo a uma sociedade mais humana e igualitária. Uma que olha as virtudes do cidadão sem se importar com cor da pele, religião e sexualidade. E que todos tenhamos efetivamente direitos iguais.

NE – Você se posiciona também politicamente. Isso quer dizer que estamos diante da nova porta-voz pelos homossexuais?

RB – Não me espere no Congresso ou numa parada gay. Acho importante que essas coisas sejam feitas, mas não é da minha natureza. Acredito que já existam pessoas muito mais fortes e qualificadas nessas frentes. O que posso fazer para contribuir à causa e também ao meu país é simplesmente ser eu mesma. Procuro ser uma boa esposa, filha, irmã, amiga e profissional. Agora vou fazer o possível para ser uma boa mãe para a minha garotinha. Sou uma cidadã que paga impostos e tenta contribuir na sociedade. Brigo pelos meus direitos entendendo que eles vão até onde começa o do outro. É isso. Nada diferente do que um cidadão americano comum faz.

NE – Você teme por sua carreira agora que o seu segredo foi revelado?

RB – O que mais desejo é ter a oportunidade de continuar trabalhando. Depois do meu resguardo, quero voltar a fazer teatro. O palco é o meu segundo lar e estou com saudades dele. Se surgirem convites para cinema e televisão, que maravilha, porque também amo atuar diante das câmeras. Já fui indicada a alguns prêmios, tenho o reconhecimento do meu meio. Minha vida também é atuar. Lembre-se que construí toda minha carreira tendo Quinn ao meu lado. Isso nunca me fez ser menos ou atrapalhou na minha profissão. Muito pelo contrário.

NE – Você é uma pessoa feliz, Rachel?

RB – Sim, muito.

NE – É feliz por ser gay?

RB – A homossexualidade é só uma parte do que sou. Não é o que me define.

NE – E como você se definiria?

RB – Uma menina romântica e afortunada que veio de uma pequena cidade de Ohio para Nova York e realizou o sonho de criança. E também uma perfeccionista incorrigível. Sou uma atriz concentrada no trabalho que busca desafios e a versatilidade. Também sou uma pessoa caseira de hábitos simples. Sou uma apaixonada pela vida. É isso que me define: eu, Rachel Berry-Lopez Fabray.”

Era uma entrevista concisa, direto ao ponto. Perfeita para a internet. As respostas da minha irmã foram excelentes e a entrevistadora não a atacou em momento algum. Era uma publicação totalmente favorável a Rachel que eu deveria ficar feliz. Mas não. Pesava o fato de ter ficado às escuras e não gostei dessa sensação. Rachel sempre conversou sobre tudo comigo até mesmo sobre aquilo em que não estava interessada em saber. Essas caraminholas estavam me dando dor de estômago. Resolvi mandar uma nova mensagem de texto.

“Preciso falar contigo. Posso ir aí?” – eu

Fiquei frustrada porque não recebi uma resposta. Fui até a geladeira e tomei o resto do suco de laranja desses de caixa. Bebi no gargalo. Estava no fim mesmo e Johnny não estava em casa para reclamar dos meus maus hábitos masculinos. Isso me fez pensar que estava pensando demais e agindo de menos. Coloquei um chinelo e pensei em trocar de blusa. Estava de short jeans, mas não ficaria bem sair por aí com a camiseta do Mickey que comprei durante minha despedida de solteira. Que se dane. Só amarrei o meu cabelo num rabo de cavalo e desci do meu prédio. Peguei minha bicicleta no depósito no térreo com o intuito de agilizar o trajeto até o apartamento da minha irmã. Havia dois paparazzis por lá. E só estavam ali de plantão porque a história estava quente. Tomara que eles não achassem a minha irmã em Cleveland. Eles me reconheceram antes que eu pudesse acionar o controle do portão para guardar a bicicleta e começaram a disparar alguns flashes medonhos e fazer perguntas truncadas. Os ignorei por completo. Ao menos a presença deles indicava que minha irmã estava em casa. Passei pelo porteiro e peguei o elevador. Pensei seriamente em abrir a porta com minha chave sem me anunciar, mas aí estaria ultrapassando limites. Toquei a campainha. Abriram a porta. Rachel abriu a porta.

“Oi Santy.”

“Por que você não respondeu minhas mensagens?” – esbravejei.

“Oh! Eu desliguei o celular” – ela me deu passagem para que eu entrasse. Foi o que fiz, entrei na casa da minha irmã pisando duro. Fui direto para a sala. Estava cheia de caixas pela sala e móveis desmontados do quarto que iria ser reformado. Pensei que ela só ia começar a mexer com isso depois de ir para Ohio passar um tempo com zaide e bubbee enquanto Quinn trabalhava no filme. Rachel fechou a porta e me seguiu.

“Deixei incontáveis recados para você” – ainda estava com raiva, mas procurava me controlar.

“Desculpa. Nina e meus agentes me aconselharam a ficar fora de área por enquanto.”

“Quinn?”

“Saiu cedinho para se encontrar com Santiago e Luis.”

“Se acontecer alguma coisa, como é que ela vai falar contigo se o celular está desligado?”

“É você nunca se lembra, mas eu tenho um telefone fixo muito privado. Lembra daquele número que sempre te dou e você nunca grava em lugar algum?”

“Ok... Ray, porque você não me contou que ia sair do armário?” – falei alto. Extravasando minha raiva e angústia – “Por que eu tive de saber disso numa merda de blog? Pior, por que tive de saber disso através de Brittany? Por que você não falou nem com nossos pais? Você sabia que eles estão aflitos?” – estava ofegante e possivelmente vermelha.

“Santana!” – ela falou enérgica – “Senta! Vou te dar um copo d’água.”

Obedeci. Estava ofegante. Rachel veio com um copo enorme de água. Bebi por inteiro em alguns segundos. Então respirei fundo. Não queria me exaltar mais. Rachel ficou em silêncio, esperando que eu voltasse ao normal. Então coloquei o copo na mesinha de centro e a encarei.

“Por quê?” – disse simplesmente.

“Essa foi uma das maiores decisões da minha carreira e quis fazer isso sem a influência de vocês. Eu estava cansada dos boatos sobre minha sexualidade e gravidez supostamente independente. Isso me estressava. Conversei com Quinn primeiro e depois com as pessoas que representam minha carreira. Claro que eles me alarmaram para não fazer isso, mas eu estava decidida. Depois eu tive uma reunião com Nina, Josh e minha agência para traçar a melhor estratégia. A gente escolheu a melhor jornalista e lugar para soltar a notícia. Nina pensou em alguém que toca um meio mais reservado e que tivesse algum respeito. Algo que não fosse revista Out para não dar um ar ativista, e nem um blog popular fofoqueiro simplesmente. Escolhemos o blog da Norah porque ela é uma jornalista de formação e também uma crítica especializada em TV respeitada, além de ser uma integrante votante da associação dos críticos da América. Era um lugar perfeito. Então Nina entrou em contato com Norah e a gente combinou os termos da entrevista. Eu a fiz por skype com Nina e Quinn ao meu lado e uma semana depois ela foi publicada. Norah fez uma grande edição. Ela é realmente boa.”

Encarei a minha irmã. Estava surpresa com a serenidade dela.

“Bom... você poderia ter me contado depois que fez a entrevista...”

“Para quê? Você estava no Japão curtindo a lua de mel com o maridão. Merecia esse tempo tranqüilo com Johnny sem se preocupar com problemas da sua família. Além disso, neste caso, achei por bem me isolar. Deixar todos vocês no escuro me pareceu uma boa idéia.”

“Bom... não foi!” – cruzei meus braços.

“Desculpe” – ela me encarou – “Mas não me arrependo.”

Fizemos mais uma rodada de silêncio. Uma encarando a outra. Era como quando brincávamos de sério quando crianças. A gente se encarava e quem risse primeiro perdia. Desta vez eu perdi. Que droga era esse treinamento da minha irmã em se manter concentrada nas emoções por mais tempo. Só sei que estava chateada e mesmo assim disparei a rir. Não demorou a Rachel me acompanhar. Demorou um pouco para que a gente se acalmasse.

“Então? Estou perdoada?” – ela fez carinha de inocente

“Pro diabo que não!” – fiz uma breve pausa – “Por outro lado, não vim aqui só brigar. O que queria mais era saber se estava bem.”

“Estou bem. Eu te asseguro. Estava aqui terminando de arrumar minhas malas para viajar para Cleveland amanhã.”

“Parece que a sua ida para a casa de zaide e bubbee veio bem a calhar, certo?”

“É mais fácil sumir no meio de Ohio do que em Nova York. Mas vai ser bom. Zaide precisa desse carinho.”

“Concordo. Eu penso em fazer algumas visitas a vocês durante esse tempo junto com Johnny. Prepare-se porque papi e nossa mãe também vão baixar lá.”

“Vão mesmo? Você viu a foto do berço que eles compraram?” – ela sorriu.

“Não.”

“Disseram que não terei desculpas em não passar um tempo com eles com a minha filha.”

“Papi vai ser um vovô muito babão. Ele está uma coisa contigo.”

“Ciúmes?” – Rachel provocou.

“Que nada” – dei uma olhada nos móveis desmontados pela sala. Coisas do meu antigo quarto e que permaneceram na casa até aquele momento – “Pensei que você fosse começar a reforma do quarto mais adiante.”

“O pessoal veio aqui ontem e desmontaram tudo. Vão começar a reforma depois de amanhã.”

“Mas e o Mike? Ele ainda está em Los Angeles.”

“Johnny não chega amanhã de Detroit.”

“Sim, amanhã à noite.”

“Então ele pode supervisionar. Eu só não quero que você fique aqui porque é capaz de enxotar os carpinteiros.”

“Cara de pau! Abusando da boa vontade do meu marido.”

Rachel soltou uma gargalhada e me deu um beijo no rosto.

“Já te mostrei o projeto do quarto?”

“Ainda não. Bom, eu estava no Japão, certo?”

“Vem...” – ela se levantou do sofá e me puxou minha mão – “deixa te mostrar.”

Ela me puxou até ao escritório que estava cheio de equipamentos fotográficos espalhados. Quinn aproveitava o armário do quarto para guardar essas coisas que agora teriam de ser alojadas de alguma forma por ali. Eram máquinas, lentes, objetivas, suportes, pequenas lunetas que eu não sabia bem para o quê serviam. O que eu sabia de fotografia era pegar uma máquina amadora, colocar no modo automático e disparar. Quinn tinha adquirido ao logo desses anos um arsenal de equipamentos. Deus me livre conversar sobre o assunto com ela. Seria soterrada com milhares de termos técnicos. A questão é que Quinn era boa no que fazia. De verdade. As fotos “de brincadeira” que ela fez do meu casamento ficaram infinitamente melhores do que as do fotógrafo oficial.

Rachel sentou-se na cadeira e ligou o computador. Rapidamente acessou o projeto. Minha sobrinha teria um quarto de móveis brancos com detalhes de cores pastéis com o lilás. Pensar nisso pode ser estranho, mas se as coisas ficarem como no projeto, digo que será a coisa mais fofa do mundo. Minha sobrinha teria um armário e na lateral dele terá o acabamento de prateleiras para colocar bonequinhas e outros enfeites. Teria uma poltrona para Rachel amamentar e Quinn ninar nas noites em que elas ficariam sem dormir se revezando com a garotinha. O banheiro sofreria uma pequena reforma para acomodá-la até quando fosse uma criança de cinco ou seis anos. O sanitário seria menor e tudo mais para ela não ficar entalada lá dentro. O ambiente seguia a decoração do quarto. O armário da pia seria modificado para ter uma extensão maior e também servir como trocador.

Comecei a rir baixinho enquanto Rachel me explicava tudo. Embora não tivesse a lembrança, papai costumava a contar as histórias de quando Rachel e eu éramos bem pequenas. Quando estávamos aprendendo a usar o banheiro, houve uma vez em que eu fiquei entalada no sanitário. Rachel morria de rir disso quando era criança. Era como uma pequena vingança contra a irmã gêmea sempre mandona.

“O que foi?” – ela parou o tour virtual.

“Bobagem... continue.”

A reforma também passaria pela cozinha e o grande armário de serviço que ficava a caminho do escritório e do lavabo. A idéia do armário permanecia, mas com a decoração em acordo com a nova cozinha e mais funcional.

“O novo armário vai ter uma parte para abrigar os equipamentos de Quinn. Essa foi a nossa maior briga porque ela dizia que a proximidade com as máquinas de lavar e secar poderia estragar as lentes com a vibração e a umidade. Mas o decorador arrumou um esquema em que eles ficariam nos dois extremos do novo armário e não haveria riscos. Desse jeito eu não tenho de colocar um armário aqui e tumultuar ainda mais o escritório.”

“Bom, vocês são casadas... tem que dividir.”

Ouvimos barulho da porta se abrindo. Quinn estava chegando em casa.

“Rach, trouxe o lanche que você me pediu” – ouvimos a voz dela ecoar pela casa – “Oh! Ei San!” – ela apareceu no escritório – “Não sabia que viria aqui hoje.”

“Está brincando? Depois das notícias de hoje?” – Quinn às vezes conseguia ser uma cínica – “O que trouxe para Rachel?” – estava curiosa.

“Bolo de chocolate nada vegan.”

“Tenho alguns desejos...” – Rachel tentou desconversar.

“Ontem ela comeu um hambúrguer de verdade pela primeira vez na vida!” – Quinn sorriu e eu arregalei os olhos. Até onde sabia, a dieta de proteína animal da minha irmã não ultrapassava ovos e leite, apesar da ordem médica para ela comer um pouco de carne também.

“Isso é... isso é... histórico!” – fiquei boquiaberta – “Rachel não come carne desde os oito anos de idade.”

“Era de frango” – ela colocou um cacho de cabelo atrás da orelha do jeito que fazia quando ficava embaraçada. Estava com o rosto vermelhinho.

“Sério Ray! Você só comia esses hambúrgueres horríveis de carne de soja ou de bolinho de arroz. Agora que acredito que você é uma pessoa evoluída” – ela me deu o dedo! Meu deus, Rachel Berry-Lopez me deu o dedo! Era mesmo um dia histórico.

“Bom, o bolo dá para três” – Quinn ia saindo do ex-escritório – “E como eu trouxe a comida, vocês que preparem o suco e coloquem a mesa. Eu vou tomar uma chuveirada.”

Rachel apenas abaixou a tampa do computador. Estava mais uma vez a sós com minha irmã. Foi quando Rachel me olhou esquisito e agarrou minha mão para colocar na barriga dela. Sorri quando senti a minha sobrinha se agitar naquela piscina apertada. Fiquei de joelhos diante da minha irmã só para curtir melhor o momento.

“Viu? Ela ficou feliz em saber que vai comer bolo de chocolate” – Rachel estava sorrindo.

“Não está na hora de parar de chamá-la de ‘ela’? Não é possível que você e Quinn ainda não decidiram um nome.”

“A gente ia contar em outra ocasião, mas acho que depois de ter te deixados às escuras hoje com a entrevista e de você ter vindo aqui tirar satisfações e ainda ter gritado menos do que pensava que faria. Você merece essa exclusiva...” – ela deu uma parada súbita, mas aquele suspense estava me matando.

“Fala logo! Não me mate aqui.”

“Preparada?” – dei um beliscão na batata da perna dela para parar com esse suspense. Minha outra mão continuava colada na barriga dela, sentindo minha sobrinha – “Ok. Michelle Berry-Lopez Fabray.”

“Berry-Lopez? Você vai manter o nosso nome?” – abri um sorriso.

“Pensei seriamente em manter a tradição dos nossos pais em colocar nomes de atrizes de musicais em nossos nomes. Eu amo o meu e você odeia o seu... enfim. Quinn queria colocar Prudence porque aparentemente foi um nome que Beth sugeriu. E sabe como ela é: faz das tripas coração para agradar a primogênita dela. Mas eu bati o pé e disse que não. Que se fosse para colocar o nome de alguma música dos Beatles, que fosse Michelle. Porque tem uma história muito melhor do que alguém que ficou catatônico na Índia...” – ela revirou os olhos.

Eu conhecia essa história desde criança. Meu pai vivia contando coisas sobre certas músicas para nós. Michelle não foi inspirada numa pessoa real, mas a frase “I Love You” dita no meio da música foi uma sugestão de John Lennon à letra de Paul McCartney para citar a canção “I Put a Spell On You”, de Nina Simone. Meu pai adora Nina Simone. Quase tanto quanto Carlos Santana. Ele disse certa vez que por pouco o nome de Rachel não foi Simone. Como ele já tinha escolhido meu nome, papai fez valer a vontade dele e impôs Rachel por causa do personagem de Jennifer Aniston. Papai era fanático por “Friends”, que tinha começado a passar no ano em que nascemos, além disso, Rachel era um nome bem judeu.

“Quinn relutou bastante” – Rachel continuou – “Mas Michelle era a segunda opção da lista de nomes que ela fez. É um nome bem francês, e você sabe o quanto Quinn adora aquele país. Ficou sob minha responsabilidade colocar o segundo nome. Pensei em homenagear nossa abuela, mas você me mataria se o fizesse” – verdade. Gostaria de chamar a minha filha, se eu tiver uma, de Miranda – “Pensei em Catherine, em Diana. Mas pensei melhor e acho que minha filha também merece carregar o nosso sobrenome. Tudo bem que na escola e nos outros lugares ela será Michelle Fabray. Mas o nome da nossa família vai estar lá também. Berry-Lopez.”

“Ok, Michelle” – direcionei minha voz para a barriga da minha irmã – “Prepare-se porque a sua tia-dinda tem uma porção de coisas para te ensinar.”

Ela reagiu. Chutou minha mão. Inevitável não sorrir. Rachel também parecia muito feliz. Estava muito bem com o mundinho dela. Para quê esquentar a cabeça com a repercussão da entrevista como eu estava. Todas essas coisas que ela vivenciava dentro de casa eram muito maiores.

Levantei e nós fomos para a cozinha. Acho que passamos tanto tempo curtindo Michelle se mexer que deu tempo de Quinn sair da chuveirada e se surpreender por não termos feito nada. Preparei o suco. Rachel colocou alguns waffles na torradeira. Quinn colocou a mesa. Logo estávamos as três, e Michelle, sentadas e apreciando uma refeição simples e boa. Conversando bobagens. A cidade gritava lá fora. Pessoas que achavam que se importavam demais ou sabiam demais lotavam as caixas de comentários nos sites da internet. E nós ali: comendo bolo de chocolate. É mesmo! Rachel é que estava certa.














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