Everest

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O garoto que se apresentou como Charlie, seguiu-me para dentro da loja de disco. Sr. Mitchell encontrava-se fissurado com as palavras cruzadas do jornal da manha anterior. Ele parecia não ver Charlie.

Charlie caminhou entre as prateleiras de CDs e livros antigos. Ele parou e se sentou no chão. Os olhos dele pareciam sempre estar voltados para baixo.

- Eu não entendo. – comecei. – Sr. Mitchell não o vê?

- Ninguém me vê!

- Mas, como eu o vejo?

- Eu também não sei. – ele observou fixamente um livro caído em baixo da prateleira, pegou-o, depois de alguns segundos e o devolveu a prateleira. - É algo novo para mim!

- Isso nunca havia acontecido antes?

Charlie negou com a cabeça e se levantou, deixando um ar gelado tocar minhas bochechas.

Uma voz ecoou, era de Sr. Mitchell me chamando.

- Você ainda está aqui?

Aproximei-me dele.

- Como se chama a montanha mais alta do mundo? Não consigo me lembrar.

- Monte Everest. – Charlie sussurrou, antes mesmo de eu consegui pensar em algo. Sr. Mitchell ainda me observava segurando firme a caneta. - Ele também não pode me ouvir. – Charlie completou.

- Monte Everest. – repeti.

- Obrigado, Victoria! – ele marcou a ultima palavra-cruzada no jornal. – Eu sinto muito, mas eu preciso fechar a loja, tenho um compromisso.

- Claro Sr. Mitchell!

Meus olhos buscaram por Charlie, mas não havia nenhum sinal dele. Ele sumirá com um floco de neve.

Caminhei para casa observando o céu em tons de rosa. As arvores balançavam respingando sobre mim. As poças formadas pela chuva começavam a desaparecer.

...

Desci as escadas. Meu pai se encontrava sentado à mesa, o notebook à frente, parecia fazer algo importante, ele não havia se lembrado do meu aniversario, como nos anos anteriores. Não me recordo da ultima vez que ele me deu um abraço de aniversário. Eu nunca fui prioridade em sua vida. Eu sentia vontade de confronta-lo.

Caminhei em direção à casa de vovó. O sol fraco de fim de verão me abraçava.

Cheguei à frente da casa dela e observei a sua cerca e porta recém-pintadas de branco, e o seu jardim, que é o mais lindo e cheio de vida na primavera. Lá estava ela em um vestido vintage azul marinho combinando com seus olhos. A casa de vovó sempre me encantou, principalmente as pinturas emolduradas nas paredes que foram pintadas a mão, pareciam harmonizar com o lugar.

Um borrão amarelo desceu a escada rapidamente, e saltou sobre mim.

- Max! – acariciei seus pelos dourados.

Vovó se levantou, afastou Max e em seguida me deu um abraço apertado. Seus abraços sempre me acalmaram de sonhos e momentos ruins.

- Feliz aniversário, querida! - sussurrou ela.

- Obrigada vovó!

Ela retirou do forno um pequeno bolo, que por sinal, cheirava muito bem. Sentamos a mesa, com Max deitado sobre meus pés.

Vó Mia passa o ar de tranquilidade, talvez, por ter sido uma talentosíssima pintora ou por ser da alma dela mesma. Hoje ela não trabalha mais com pinturas, mas nunca deixou a arte de lado.

- Como está sendo o seu dia querida? Não é sempre que fazemos dezesseis anos. – ela sorriu.

- Diferente dos anteriores.

Um silêncio tomou vovó. Apenas o brinquedo de Max cortava o silencio. Eu queria contar a vovó sobre Charlie, mas eu não podia, não diretamente.

- Vovó? – ela me olhou. – Você já viu algo que não podia explicar?

Ela alcançou uma xícara de chá, que agora a tomará. Com a ponta do garfo, cortou o bolo em mil pedacinhos. Colocou um desses pedaços na boca e o mastigou com a maior tranquilidade do mundo. Uma brisa fresca entrou pela janela, balançando as cortinas.

- Há muitas coisas que não podemos explicar, mas mesmo assim, elas existem.

No final daquela noite, vovó me deu um presente, mas não presente qualquer. Um vestido de família. O vestido foi à primeira coisa de família que ganhei, o que me deixou animada.

No dia seguinte, passei a tarde inteira jogando xadrez com vovó, inclusive, ela é a melhor jogadora que conheço, espero jogar tão bem quanto ela um dia.

Charlie não saía da minha cabeça, eu queria descobrir mais sobre ele, ele me intrigava. Quanto mais eu pensava a respeito de Charlie, menos eu conseguia explicar para mim mesma sobre aquele dia. Todas as tardes, durante um mês, eu passei na Old Discs, mas ele não estava lá. Não fisicamente. Eu passei a acreditar que Charlie não era real, que minha mente solitária o havia criado.

Seres das Sombras - O ValeOnde histórias criam vida. Descubra agora