Escarlate

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O vapor do café se dissipava no ar úmido do final da tarde de sábado. Lexia a minha frente segurava uma caneca amarela de chocolate fumegante. Ela tagarelava sobre música pop, mas meus pensamentos estavam distantes, mais precisamente em Charlie há dois dias:

Eu havia sonhado com estatuas de anjos, uma em especifico parecia me observar com seus olhos inertes, em instantes lagrimas de sangue brotaram e um sussurro ecoou.

- Victoria.

E então eu despertei como se me faltasse ar nos pulmões. Rapidamente saltei da cama e comecei a pintar o sonho ainda fresco em minha memória. Talvez, parte de mim tivesse medo de esquecê-lo. Já se passavam das três horas da manhã quando finalizei a pintura.

- 'Cause I'm only a crack. In this castle of glass. Hardly anything there for you to see.

Estremeci ao som da voz que parecia um tanto distante, mas mesmo em meio ao um milhão de vozes eu poderia distingui-la facialmente, como se me sussurrasse aos ouvidos. Charlie.

Eu sorri ao encontrar seus olhos cansados. Queria dizer a ele que senti sua falta, e que os dias em que ele não aparecia eram os mais tristes, eu não disse nada disso apenas me aproximei dele para poder sentir aquele ar gelado que ele emanava como os dias de outono.

- Charlie, Charlie. – eu disse, como se seu nome fosse sagrado. – As suas citações... Elas são sempre melancólicas.

- Músicas devem lhe fazer sentir algo, se não fazem, são apenas palavras vazias.

- Palavras vazias cantadas por pessoas vazias. – sentei-me ao seu lado.

A escada rangeu e Leonardo amaldiçoou algo no andar de baixo. Charlie riu.

- Ele sempre foi assim, o seu pai?

A cortina de cor grafite voava com o vento que lhe era posto. O pendente no teto balançava levemente e lá fora, o portão rangia.

- Pode ser difícil de acreditar, mas antes de tudo, da morte de Elizabeth ele era um renomado detetive.

- E o que exatamente houve com ela, Elizabeth? – Charlie me observava agora. – Não quero que se sinta obrigada a responder.

- Eu não tenho um sentimento formado por ela, talvez tudo fosse diferente se ela tivesse feito outras escolhas. – poderia ser egoísta da minha parte pensar dessa forma, mas era realmente o que eu sentia todos os dias da minha vida. – Elizabeth pôs fim à vida. Ela pulou de uma ponte, nunca encontraram o seu corpo. Apenas um vazio habita seu túmulo.

Charlie parecia encantado com uma mariposa que pousará sobre o vidro da janela, parecia distante, parecia não ouvir nenhuma das minhas palavras ditas há pouco.

- Sinto muito. – ele pronunciou.

O som estrepitoso de canecas colidindo trouxe-me de volta ao presente. Lexia ainda estava a minha frente, mas seu semblante estava diferente.

- Você parece tão distante hoje. – ela disse como se quisesse descobrir o que se passava em minha mente. Nunca pensei em contar a Lexia sobre Charlie ou a qualquer outra pessoa. – É como se você flutuasse para outra dimensão.

- Eu estava apenas pensando nas aulas de cálculos. Sinto muito! – eu me sentia mal em mentir para Lexia.

- Precisamos ir à chuva esta se aproximando da cidade. – Lexia se levantou segurando um livro de francês.

Olhei através do vidro perfeitamente lustroso da Singh Coffee em direção ao céu no momento exato de um relâmpago cintilar. Em poucos minutos a escuridão cobrirá a cidade. No instante em que minha mão tocou a maçaneta uma visão passou diante dos meus olhos.

Uma espada medieval cortou o pescoço de uma garota, e em seguida, ela caiu no chão e o sangue jorrou de seu pescoço pintando seu cabelo loiro de escarlate.

- O que houve? - Lexia tocou meu ombro direito. – Seus olhos... Era como se sua pupila tivesse tomado toda a sua íris por um instante.

-Preciso de ar. – eu disse já abrindo a porta.

Um grito estridente cortou a noite de ventos gélidos e nenhuma estrela. Um calafrio percorreu meu corpo. Lexia pareceu mais pálida que o normal logo após ouvir sobre minha visão. Ela enrolava uma mecha de seu cabelo que parecia mais acobreado sobre a luz de um poste.

- Está acontecendo! – ela disse, quase sussurrando.

- O que está acontecendo? – indaguei.

Um SUV em alta velocidade parou há poucos centímetros da calçada fazendo-me sobressaltar.

- Entrem! – vovó gritou, sem mais delongas.

Nenhuma palavra foi dita nos primeiros minutos em que entramos no carro. Vó Mia parecia inquieta e um tanto desnorteada.

- O que está acontecendo? – eu quis saber e eu tinha certeza que Lexia também queria. – Ouvimos gritos...

E no instante seguinte meus olhos se fixaram em um corpo sobre o asfalto cinza e frio. Uma poça de sangue se abria a sua volta pintando seus cabelos loiros. Os olhos dela estavam abertos, era como se olhasse além do céu. Uma primeira gota tocou o vidro do carro de vovó e em seguida uma chuva forte desabou sobre a cidade agora silenciosa como um floco de neve.

Seu sangue escarlate pintava minha visão. 

Seres das Sombras - O ValeOnde histórias criam vida. Descubra agora