2 | lucca

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— Toma.

A atenção de Yiriz, antes mergulhada por uma série de preocupações que Lucca compreendia, desviou-se, seus olhos desgrudando de um ponto qualquer para a caneca. A fumaça branca espiralava graciosa, ascendendo e desaparecendo, e o aroma do liquido denso marrom-escuro enlaçava-se com a fumaça.

O rapaz segurou o cabo da caneca, os olhos verdes acesos como dois vaga-lumes seguiram os movimentos de Lucca enquanto ele sentava ao seu lado, também segurando uma caneca com letras bastão escrito "Para o melhor dong-saeng do meu coração, segunda edição". A primeira edição − como Vincent gostava de dizer − ficava na outra casa, junto às outras que todo mês seu hyung enviava para Lucca e Kira.

— Como você parecia gostar de chocolate, eu fiz um quente − Ele fitou Yiriz, os olhos dele meio avermelhados, os cílios longos úmidos. Ele era bonito; era uma evidência que nem mesmo um narcisista poderia negar − e menos ainda quando Yiriz parecia ter chorado em algum momento desde que chegaram naquela casa.

Yiriz olhou para o chocolate quente da caneca, dando uma golada demorada, piscando como sentisse que realmente estava quente, e afastou a borda da caneca dos lábios, seguido de um suspiro.

— Está muito bom.

Lucca abriu um sorrisinho, sorvendo de seu chá preto quente com limão. O sabor ácido estremeceu seu peito, o sentimento de saber que ele estava bem mesmo, de que nada estava faltando mesmo depois de estar dentro de um trem no céu e ter caído dele com uma estrela nos braços.

Lucca fitou a caneca. O menino que surgiu por além daquelas lascas de cristal era quente apesar da cor azul. Ele tinha segurado uma estrela.

Era tão inacreditável quanto Yiriz ao seu lado, também uma.

Ele olhou para o rapaz outra vez, os dedos longos em torno da caneca como se para aquecer as mãos, os olhos perdidos outra vez na única pessoa que Lucca também só conseguia pensar.

E não conseguia parar de pensar no que Yiriz sentiu ao descobrir que essa pessoa, todo esse tempo ao seu lado − mesmo que Lucca ainda não saiba quanto tempo era esse −, era o motivo de sua existência. De ter caminhado por aquele mundo há mais tempo que qualquer geração das guerreiras, procurando e ansiando pelo dia em que encontraria aquele que era sua morada. A maneira que Yiriz segurara Zoey enquanto corriam até a casa tinha despertado o lado mais explícito da curiosidade de Lucca - aquela em que você quer perguntar, sem filtro nenhum, do porquê.

Yiriz sussurrava "mer pyteah, mer pyteah", o rosto grudado no de Zoey como se na tentativa de passar a própria vida a ela.

Era curiosidade de uma criança, Lucca sabia; porém ele queria saber o significado. Mesmo sabendo da razão de Yiriz ter repetido as mesmas palavras, ele queria saber.

— Se quiser perguntar alguma coisa, o faça logo. Não precisa ficar me encarando desse jeito. − disse Yiriz, e Lucca piscou; ainda estava o fitando. O rapaz ergueu uma sobrancelha, como se inquisitiva, mas desprovida de arrogância que ele normalmente fazia.

— Você sabe todos os idiomas, mas não sabemos do seu. − Lucca balançou a caneca, o líquido escuro oscilando. − O que significa "mer pyteah"?

Yiriz permaneceu com os olhos nos de Lucca, as pupilas retraídas, como se em alerta ou do excesso de ansiedade e preocupação. Yiriz era como uma questão ambulante não resolvida pela ciência, sequer imaginada pela religião.

— Minha casa. − Ele respondeu, então, com um suspiro, desviando o olhar para o chocolate quente. − Mer seria similar ao pronome possessivo de vocês para "meu, minha", enquanto Pyteah é "casa, lar, morada".

Algo se remexeu no peito de Lucca. Minha casa. Quando ele viu Yiriz abraçar Zoey como se sua vida dependesse disso − o que era, em parte, verdade −, ele lembrara de quando Kira sempre ficava ao seu lado na cama após os surtos. No quarto surto que tivera, ela repetia numa mistura de japonês com coreano "fica comigo, fica comigo", dando tapinhas em sua bochecha mesmo quando já consciente, os olhos brilhando.

"Fica comigo" não era a mesma coisa de "minha casa"; porém, de tudo o que sabia sobre Yiriz, de ter vivido mais vidas do que Lucca poderia viver, Zoey era o lar que ele sempre voltaria.

E perder esse lar seria...

— Não vamos perde-la. − disse Lucca, quase num sussurro. Ele sentiu os olhos arderem, recordando-se de quando ele abrira os olhos, sentindo que estava em solo firme, quando a única coisa que ele conseguia enxergar era Zoey diante dele, nariz e boca manchados de sangue e fuligem no rosto, perguntando se ele estava bem. De quando, após a luta contra a rainha, ela nunca parecia se importar se estava bem ou não; sempre os outros, sempre eles. Ou de quando Zoey estava prestes a zarpar em direção aos jogadores sendo engolidos pelo chão naquele dia chuvoso.

Lucca olhou para os dedos em volta da caneca. Pela primeira vez uma sensação estranha havia circundando seu coração, da sensação de algo escapar de seus dedos, diferente de quando Kira dera a notícia sobre sua omma, de Lavelle, de Glen. Era uma sensação estranha de estar acordado e sentir que alguma coisa está prestes a ir embora. Você está consciente, e a sensação está te agarrando como garras fincando na pele, mas essa coisa está a um dedo de ir embora.

E Lucca sabia que, para Yiriz, Zoey não era seu lar apenas por ser sua conjuradora.

Assim como para ele não era apenas sua parceira de investigações.

— E não será por falta de criaturas humanas para não deixa-la ir. − Yiriz sorriu, olhando para Lucca.

O menino retribuiu o sorriso, ambos correspondendo do mesmo sentimento que compartilhavam pela mesma pessoa − embora tão diferentes quanto aquele chá e chocolate quente.

Their war, our curse - FBTG Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora