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— Já disse que sou o homem mais feliz desse mundo? – Vincent lhe entregou uma taça de vinho tinto, sentando-se ao seu lado no sofá.

Kira ergueu as sobrancelhas, observando o liquido escuro oscilar.

— Não preciso responder sendo que você diz a mesma coisa quando dormimos aqui. – Ela falou mais baixo, dando uma golada no vinho. Desceu amargo, quase quente, e a mulher soltou um suspiro. Não fazia tanto tempo desde quando tomou o licor – ontem, talvez -, porém, após o ocorrido mais cedo, ela precisava que o álcool tranquilizasse suas veias, diminuísse os batimentos cardíacos para que pudesse dormir em paz por pelo menos quatro horas.

— Eu tentei convencer o dong-saeng a trazer as coisas dele para cá – Vincent exalou o cheiro forte do vinho, e Kira olhou para Lucca com as sobrancelhas franzidas. Ele estava deitado no amontoado de cobertores e travesseiros ao lado de Yuki, a cadela samoiedo dormindo com o focinho enterrado nos cabelos bagunçados do irmão. A luz da lua banhava o cômodo escuro, irrompendo da janela que ia do chão ao teto, dando a visão para um jardim imenso que ficava atrás da pequena casa de Vincent. – Mas ele não quer te deixar sozinha.

Kira deu outra golada no vinho. Ela murmurou um muito bom mesmo em japonês; a bebida era do vinhedo Reece, e parecia coincidência demais para ela em um só dia.

— Ele sabe que eu não vou me mudar para cá – ela balançou a taça, a manga de seda do roupão oscilando junto. – Não quando temos assuntos mais importantes para resolver.

— Ah, então é uma possibilidade? – Kira olhou para Vincent, o rosto cheio de entusiasmo, os olhos azuis escuros pelas sombras da sala.

Ela virou o rosto, a nuca esquentando, agradecendo aos deuses por estar escuro.

— Não.

O homem fez um muxoxo, jogando a cabeça para trás no encosto do sofá. Ela só dormia ali devido a Lucca – geralmente após os surtos, quando o irmão queria assistir a algum filme do Studio Ghibli, ficar com Yuki ou escrever em um lugar diferente do próprio quarto. Kira recebera uma mensagem dele perguntando se podiam ir para a casa de Vincent, sem dizer o motivo. Seu coração tinha ido para algum lugar obscuro e, mesmo que desejasse, não podia voltar para casa mais cedo para saber se estava realmente tudo bem com Lucca. Não tinha sentindo nenhuma fincada na lombar, mas observando o rosto dele contornado pela luz da lua, havia ali duros traços de dor. De tristeza, uma ira contida nos lábios que não esboçaram muitos sorrisos desde que adormecera.

— Ele está se preparando para nos contar algo – disse Vincent, o timbre da voz mais grave, e Kira o olhou de esguelha. Ele estava com os olhos fixos em Lucca, como se divagasse. Um sorrisinho desolado surgiu no canto da boca. – Embora eu quisesse que desta vez vocês tivessem vindo porque simplesmente queriam vir.

Kira cerrou a mandíbula.

— Sabe que nem sempre Lucca vem por outros motivos, Vincent. Vem porque gosta daqui. – E sorveu um pouco do vinho.

— Não digo apenas dele, Kira.

A mulher contemplou a cor da bebida. Ela gostava da própria casa – de sua casa e de Lucca -, mas havia dias que queria estar em outro lugar. Ir para outro lugar. A segunda casa na qual levaram Zoey para se recuperar também era um refúgio, longe demais dos acessos importantes que tinham no centro da cidade, e o terceiro lugar que lhe acalmava os nervos era o lar de Vincent. Havia sido sua casa um dia, quando Lavelle ainda caminhava para um lado e outro pelos cômodos, contando histórias, falando no telefone, tentando aprender a tocar guzheng, quebrando as unhas e as cordas ao dedilhar errado.

E, após assistir às memórias de Zoey, o grito de Pandora ainda ressonava por entre suas veias como cordas de guzheng, dolorosas como se cravassem em seu peito. Era diferente de escutar uma história por uma voz cálida. Kira não ouvia um grito como aquele havia anos. Havia sido... muito semelhante ao seu próprio ao ver o avô morrer diante de seus olhos.

— Aquilo já passou, Kira – Vincent falou e, ao Kira virar o rosto para olhá-lo, ele a fitava de volta com a cabeça recostada no sofá, as sobrancelhas franzidas. Ela levou dois segundos para perceber que o homem havia pronunciado em japonês.

— Pare de falar na minha língua nativa. – Kira virou a bebida na garganta.

— Sinto-me satisfeito quando você fala na minha – Vincent sorriu. – E não reclamo quando você o faz.

Kira o encarou.

— Eu não falo em francês com você, Vincent.

— Exatamente por isso.

Ela soltou um suspiro cansado. Era complicado discutir com ele tão próximo assim, e até cogitou em falar em algo em francês para deixa-la em paz.

— Preciso dormir. Daqui a quatro horas preciso estar na Ordem. – Ela se ajeitou para levantar quando sentiu a mão de Vincent em torno de seu pulso, a pele áspera. Ela o encarou outra vez.

— Durma comigo. – Ele pediu ainda na mesma posição, o rosto sério.

Kira trincou os dentes.

— Isso é algo que não preciso responder quando já sabe a resposta.

— Não é uma pergunta.

— E mesmo que fosse, a resposta é não.

Kira desvencilhou de seu toque, deixando a taça na cozinha e, ao voltar para perto do sofá, Vincent a contemplava com o corpo relaxado como se destruído pelo dia.

— Vá dormir. Generais devem cumprir com seu dever, Vincent. – Kira cruzou os braços, observando o homem por fim levantar do sofá, aproximando-se dela.

— Há apenas uma palavra que você pronuncia sempre em francês, Kira – ele lhe deu um beijo no topo de sua cabeça, afastando-se em seguida com um sorriso. – Meu nome.

Kira o encarou enquanto Vincent se movia até Lucca e Yuki, dando-lhes um beijo e caminhou despreocupado para o corredor.

Seus dedos se torceram nos pés, e ela apertou a curvatura do nariz, respirando entredentes.

Desde quando ela pronunciava o nome dele em francês? 

Their war, our curse - FBTG Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora