23 | rune

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Rune deixou o ar sair dos pulmões, suor acumulando na testa. Escondeu os dedos por entre as coxas. O peito tremulava com os batimentos acelerados, como se ela fosse uma máquina prestes a dar pane.

Tudo bem, ela disse a si mesma, respirando fundo. Olhou de soslaio para Christopher no outro lado do porão iluminado, escutando o folear das páginas dos livros de sua mãe. Ele estava tão absorto na leitura que não perguntara nada do que estava fazendo – e ela agradeceu por ele não estar vendo o suor em sua pele e nem suas mãos tremendo.

E nem no resultado da comparação entre as ceras.

Logo após Brooke tê-la deixado em casa quando voltaram daquela floresta, Rune não pensou duas vezes em correr até o porão e examinar a cera do bueiro e a cera do selo das cartas de Zoey. Demorou um dia para que ela pudesse desenvolver o liquido para comparar as duas substâncias – e ali estava. Dissolviam da mesma forma, e apenas a cor era diferente; mas só isso. Ambas as ceras pertenciam à mesma cadeia de fórmulas e de substancias.

Seus olhos voaram para as cartas amontoadas em um canto obscurecido por uma pilha de livros encostados na parede sob a mesinha retangular. Zoey não tinha recebido mais nenhuma daquelas cartas – a amiga avisaria se alguma tivesse chegado magicamente em seu quarto, por uma pessoa fantasiada ou por um outro meio -, e Rune percebera a quietude por parte dos inimigos. Talvez não apenas ela tinha notado; todos os outros também. Nenhum passo, nenhuma explosão, nem mesmo uma Chuva de Sangue. Os jogadores poderiam estar à espreita, aguardando qualquer movimento deles.

Só que havia o alquimista do bueiro. Rune não sabia como ele manipulava e invocava matéria-escura por meio de alquimia, e ela não tinha encontrado nada parecido em suas anotações ou nos registros de sua mãe.

Aquilo foi perigoso. Aquele ataque poderia acarretar uma investida por parte do alquimista já que Rune havia desfeito os círculos de invocação. Ninguém foi atacado no dia anterior, nem mesmo civis. O ritmo do mundo não parecia ter se alterado.

Rune esticou o braço para pegar uma das cartas, abrindo-a e lendo as frases bizarras. E se o alquimista fosse o remetente delas? Era devido a isso que estivera o tempo todo no subterrâneo, às escuras? Como ele poderia prever o futuro? Será que como Yiriz, Cassandra e Arhuem, ele era de outro lugar?

E para ter a proeza de imitar uma caligrafia – o quão ele sabia sobre Zoey?

— Há algo peculiar nesse alquimista – Rune se sobressaltou com a voz de Christopher propagar pelo porão. Ela franziu a testa, se recompondo e virando-se para ele. – Se aqueles galhos encontrados na loja de instrumentos têm matéria-escura, a mesma encontrada nos espinhos de Zoey e nas flores de Lucca, e fomos atacados por uma criatura feita pela mesma matéria, há a chance de ele ser um dos jogadores. – O rapaz virou para olha-la, recostando na beirada da outra mesinha, os dedos balançando um lápis. – Pelo tabuleiro atual, o último movimento de uma peça foi na loja de instrumentos, onde foi encontrada aquelas raízes. Essa peça é a Torre.

Rune cruzou os braços, considerando.

— Faz sentido. Aquele bueiro deve levar a algum tipo de esconderijo onde o alquimista sempre pudesse voltar para que não suspeitássemos de seu paradeiro atual, já que o último movimento está relacionado ao último ataque.

— Precisaríamos repelir os monstros de matéria-escura caso mais surgissem ao voltarmos lá – Christopher olhava para o chão, pensativo, um lápis entre os dedos como uma mania. – Precisa ser algo contrário à matéria-escura. Matéria-reversa.

— Ninguém nunca conseguiu encontrar as substâncias dessa matéria – Rune levantou uma sobrancelha. – E não temos tempo para termos ao menos uma amostra dela.

— Não precisa ser exatamente a matéria-reversa – Christopher cruzou uma perna – Mas algo que pudesse criar danos que ocasionariam uma desaceleração de contaminação da matéria-escura, ou uma proteção mais forte que myaloutiva que contivesse os monstros. – Ele abriu um sorriso preguiçoso. – Encontrar a matéria-reversa seria lucro.

A luz da lâmpada amarelada tremulou. A cor deixava os cabelos claros de Christopher amanteigados, quase uma coloração morta. Ainda era impossível não comparar as semelhanças entre ele e Zoey.

Rune engoliu em seco, desviando o olhar. Graças a Lucca que tinha notícias da amiga, mas, para falar a verdade, queria poder visita-la e pedir desculpas. Zoey havia descoberto tantas coisas sobre a origem dela, e Rune não havia facilitado o processamento de informação revelando a todos sobre a presença de matéria-escura no veneno da delphinium de Lucca e do sangue tóxico de Zoey. O rosto da amiga ainda pairava como névoa em sua mente, de Lucca também. Eu não queria ter feito aquilo. Poderia ter me segurado.

— É um pouco estranho – disse Christopher, sua voz rasgando o silêncio como uma lufada de asas batendo. – notar as semelhanças entre ela e eu.

Rune engoliu em seco, encarando-o. Ele tinha notado que ela estivera...

— Desculpe, eu não tinha a intenção de...

— Não estivemos por muito tempo no mesmo ambiente para comparar – O rapaz abriu um sorriso vago, olhando para o lápis que balançava ritmicamente. – Então vai acabar acontecendo.

Rune lhe deu um sorriso sem-jeito.

— Só vi vocês dois no mesmo lugar no dia antes de confrontar a rainha e quando o cristal foi quebrado. É realmente estranho saber que vocês dois estiveram a distancias tão... pequenas.

— Já esbarrei em Zoey uma vez, lá no colégio – O polegar de Christopher se moveu para o topo do lápis, apertando-o como se fosse uma lapiseira. – Foi muito rápido; então se tivesse que haver um tipo de conexão fraternal, durou tão pouco que nem mesmo eu notei.

— Você acredita nisso? – Rune ergueu uma sobrancelha. – De conexão mental entre irmãos gêmeos?

Christopher girou o lápis entre os dedos, os olhos contemplando os movimentos como se o ato o fizesse pensar melhor. Embora o rapaz fosse extremamente silencioso, suas mãos eram imperativas, como se refletissem a desordem que deveria estar sua cabeça naquele momento. Depois de tanta informação, de descobrir que tem uma irmã.

E que estivera tão perto dele todo esse tempo.

— Talvez não seja dessa forma, ou como pensar na mesma coisa que o outro no mesmo momento. – O olhar de Christopher encontrou Rune, e era tão impossível não imaginar se Gawain tinha os mesmos olhos que Zoey quanto ele tinha os olhos de Morrighan. – Mas senti a certeza, de sempre quando procurei minha irmã, mesmo após minha mãe encontrar documentos e o diário de Gawain, que ela estava em algum lugar.

Christopher suspirou, posicionando o lápis entre os dedos, parando no movimento que parecia como se fosse leva-los à boca, como...

— Não consigo ter certeza se o mesmo aconteceu com Zoey – A sombra de um sorriso depreciativo do próprio movimento passou pelos lábios do rapaz, olhando para o lápis. – Ainda mais quando ela havia dito que Noah era seu irmão, e não eu.

Rune lembrou do rosto da amiga encarando Christopher. Meu irmão é Noah.

— Os dois são muito próximos – Ela se recostou no encosto da cadeira. – Talvez isso dá a Zoey um tipo de conexão com Noah, mesmo que não compartilhem do mesmo sangue. Ela nunca pensou, aparentemente, pelo choque do que vimos na ilha, que sequer tivesse um irmão. Não há como cobrar isso dela, muito menos agora, quando tem tanta coisa acontecendo.

Quando contei sobre o que tinha nos espinhos dela, em seu sangue, completou Rune. Os pensamentos de Zoey deveriam estar um turbilhão terrível depois de tantas informações...

— Vai haver chances de eu me aproximar dela. – Christopher sorriu, como se sorrisos fossem ocasionais com um grupo seleto de pessoas para direcioná-los.

Rune riu, erguendo as sobrancelhas, se ajeitando na cadeira.

— Boa sorte com Noah, então. 

Their war, our curse - FBTG Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora