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Kira encarou o toco de braço que havia restado, mexendo-o, contraindo o músculo no ombro para agarrar – mas já não havia mais dedos, uma mão, a ligação com o antebraço. Ela relaxou as costas no travesseiro macio. Uma sensação de pavor estava acendendo em algum lugar. Ainda era uma faísca, muito pequena. A fumaça espiralava, chamas não crepitavam, no entanto. As brasas sussurravam, e precisava abafar o grito iminente de que não teria mais aquele braço de volta.

Ela observou o quarto do hospital ao redor, o frequencímetro apitando em intervalos de cinco segundos como um despertador irritante. Estava sozinha ali, e tudo era muito branco e verde-claro. Engoliu em seco, o coração palpitando mais rápido, o bip acelerando no compasso. Pelos deuses. Ver seus companheiros perderem os membros dos corpos não era nada comparado a perder o seu próprio.

A porta do quarto se abriu, Lucca e Vincent entrando com o terror estampado nos rostos. O irmão a agarrou, o rosto dele contra seu pescoço, úmido pelas possíveis lágrimas, e Kira ergueu o braço para abraça-lo – mas ele não estava lá. Com um suspiro, ela levantou o outro ainda inteiro graças à Nell, e pressionou o irmão contra o peito, fechando os olhos.

Algo se condensou dentro de si. Não queria que tivessem telefonado Lucca e Vincent, mas Nell e os outros não tiveram escolha.

Ela abriu os olhos, Vincent a encarando sentado ao lado de suas pernas cobertas na cama. Seus cabelos pretos estavam grudados de suor na testa franzida, as pupilas retraídas em preocupação. Kira desviou o olhar.

— Como isso... como... – Lucca recuou, os olhos vermelhos, olhando para o braço inexistente dela. A voz dele estava embargada, coreano e japonês se misturando na língua. – Nuna, meu Deus...

Lucca enterrou o rosto em seu peito, se curvando como se pudesse conter toda a dor do mundo. Kira trincou os dentes; era exatamente essa a razão para que quisesse esbofetear a cara de quem tivesse ligado para ele. O irmão parecia controlado aos surtos ultimamente, e agora aquilo...

Dong-saeng. – Chamou Vincent. A voz era calma, mas Kira viu os dedos trêmulos dele afagarem o ombro de Lucca. O irmão emitiu um ruído, um soluço escapando. – Espere lá fora com Nell.

Kira beijou o cabelo de Lucca, acariciando suas costas, as lágrimas queimando.

— Estou bem, Lucca. Não inteira, mas...

Ele falou alguma coisa que Kira não conseguiu entender. Ela apenas riu, beijando seu cabelo novamente.

— Ainda estou aqui. Vão me entregar uma prótese ainda hoje, então não há com o que se preocupar.

Lucca ergueu a cabeça com um braço cobrindo os olhos, os lábios tremendo. Kira engoliu em seco; não dava para mantê-lo ali por mais tempo.

— Fique com Nell. Por favor. – disse, abaixando seu braço para olhá-lo. O irmão olhou para baixo, fungando, assentindo com a cabeça e se virou para sair.

Kira fitou Vincent que se aproximou. Ele não estivera no plano de ação como os outros dois Generais, mas ainda trajava o uniforme de combate. Diferente de Amaru e Nell, ela não o tinha visto nesses dias, e o cansaço estava evidenciado no semblante dele, como se tivesse dormido de menos e fumado demais.

— Você é doida.

Kira ergueu as sobrancelhas.

— É a única coisa que tem a me dizer?

Os ombros de Vincent relaxaram.

— Eu sempre te digo, mas você é teimosa demais. – Ele coçou a cabeça. – Não disse aquilo só para tranquilizar o Lucca, certo?

— Não posso mentir só para tranquiliza-lo – Kira respirou fundo, um espasmo de dor fincando no ombro direito. – O departamento da Ordem disse que vai me trazer uma prótese do estoque. É uma das últimas.

Então está tudo bem, ela quis falar, mas se conteve. A Ordem fabricava muitas próteses com materiais fortificados e tecnologia avançada para seus Caçadores, mas a indústria hospitalar injetou muito capital para que pudessem tê-los para dar aos pacientes que perdiam algum membro do corpo. A demanda era absurdamente alta, e o estoque da Ordem estava ficando escasso.

— O alquimista – disse Kira – Ele é o mesmo cientista que estava no Projeto D-7.

O olhar de Vincent se perdeu em algum lugar. Tudo havia se tornado escuridão após ver o rosto de Nell, porém, aquele rosto ela não conseguia esquecer. Era fresco como uma ferida aberta, como quando ela sentia Lucca mergulhar no surto. Tudo era muito claro, e a dor era tão ofuscante quanto.

— Como ele... Como ele ainda está vivo? – Vincent voltou para ela. – Se a hipótese que ele é a fortaleza que as guerreiras enfrentaram?

— Eu não sei – Kira piscou. – A matéria-escura deveria tê-lo matado, mas, de alguma forma... o mantém vivo.

Vincent tomou a mão de Kira para si, o hálito dele em seus dedos.

— Temos que destruir aquele lugar, Kira. Perdemos muitos anos antes. – Ele a encarou. – Quase te perdemos agora. Meu pai deveria ter explodido aquele Centro...

— Não tinha como Lavelle prever isso, Vincent – Kira enrolou a língua para evitar pronunciar o nome dele em francês. – E não podemos voltar lá ainda, não depois... Precisamos de uma estratégia melhor.

Vincent passou os dedos nos cabelos, a mão de Kira pressionada contra sua boca. Ele ficou mais perto dela, encarando-a. Desde que o conhecera no dia em que atacaram sua casa e seu avô, ela sempre desejou saber o que se passava na cabeça dele apesar das investidas revelarem alguns fragmentos de seus pensamentos. Vincent ainda não tinha aquela cicatriz no rosto, e contempla-lo assim, tão próximo, era como se Kira olhasse para os céus.

Contudo, aquela cicatriz dele já havia muito fechado, e sabia que Vincent estava bem com aquilo. Assim como ela estava com a própria ferida na lombar. E ambos remendaram juntos com as mãos machucadas.

Vincent não resistiu em apenas segurar sua mão, então a abraçou. Kira fechou os olhos, respirando fundo, deixando as lágrimas caírem pelo rosto.

— Desculpe. – Ele sussurrou em japonês.

Kira abriu um sorriso, o peito tranquilo. Não conseguia imaginar o motivo das desculpas. Vincent recuou, levando os dedos em seu rosto, um lábio tocando no dela – e se permitiu avançar. Os lábios dele eram macios, quentes. Kira o segurou pelo cotovelo. Não era segredo a ninguém que Vincent tentara beijá-la outras vezes – até mesmo dois anos depois que se conheceram. Não tinha porquê gostar dele antes; sorria para lá e para cá como se o mundo não tivesse sendo destruído pela A Fenda, como se todos os dias tivessem o aroma de um campo florido na França. Não absorvia o otimismo dele. Às vezes, não conseguia.

Somente agora, ela era capaz de sentir. E tinha gosto de vinho e lágrimas e cigarro. 

Their war, our curse - FBTG Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora