19 | kahi

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Kahi posicionou a peça da rainha no mapa em que Lisa havia memorizado e desenhado, o papel desenrolado sobre a mesa enquanto ela e Scar esperavam por Misha.

Já estava tarde, e ainda precisavam se apressar para discutir sobre o posicionamento atual das peças e de suas localizações – e todas as possibilidades quase ínfimas de os jogadores ainda estarem por lá. Exceto pelos os outros, a rainha era a única que aparentemente havia criado raízes onde tinha sido seu último movimento, entretanto, não poderiam confiar na mente estratégica de alguém que ansiava por um prêmio.

Scar resmungou alguma coisa, debruçada no batente da janela da sala do clube, o barulho do palito rolando pelos dentes ecoando para perto dos ouvidos de Kahi.

— Ele vai chegar. – disse na tentativa de acalmar a amiga. Ela pegou a peça do Cavaleiro de Prata de Shogi e o posicionou no mapa. – Não é como se você não o visse todos os dias, Scar.

— Preciso falar com Misha depois – ciciou Scarlet, batendo os pés. – Sobre o Nea.

Kahi revirou os olhos quando a porta da sala se abriu, Misha adentrando no cômodo com uma carranca. Scarlet virou de supetão, como se ele simplesmente tivesse sido evocado com a menção de seu nome. Na realidade, era só de que o garoto conseguia muito bem se camuflar entre as pessoas e o espaço entre elas – como um manto de invisibilidade. Assim como a habilidade de Scar de desmanchar cristais, Misha possuía aquela capacidade de não existir mesmo olhando fixamente para outra pessoa; ela nunca perceberia a presença dele. Aquelas habilidades eram como o fruto da mistura da magia que tinham com o poder da Maldição, mas nem todos eles a possuíam.

— Cadê o Nea? – perguntou Scar, se aproximando da mesa.

— Pensei que estivesse com você – replicou Misha, arrastando uma cadeira e se sentou.

— Você é um inútil mesmo – sibilou a amiga com uma bufada. – Preciso falar com você sobre ele depois.

— E eu sou um inútil – Misha curvou os lábios, mostrando os dentes para Scar. – Como se você estivesse ajudando muito nessa merda toda.

Scarlet arregalou os olhos e abriu a boca para soltar uma resposta raivosa, então Kahi bateu uma peça em cima do mapa, o estampido ressonando pela sala e calando os dois.

— Temos algo muito maior para resolver. Se Nea não apareceu agora, vai aparecer depois.

Kahi puxou a cadeira e se sentou, respirando fundo enquanto Misha e Scarlet trocavam caretas numa discussão silenciosa. Ela esperava muito da cooperação deles; apesar da imaturidade, ambos eram muito bons em colaborar com os cérebros espertos. Mesmo com desgosto, Scar era boa em química, enquanto Misha amava física – e se pudesse, falaria sobre qualquer coisa sobre ela em qualquer circunstância. A responsabilidade deles era de encontrar a localização atual dos jogadores, e com a capacidade estratégica de Kahi e o silêncio de Nea em coletar informações eram compatíveis com o raciocínio mais lógico de Misha e Scar – quando queriam – para planejarem possíveis emboscadas e armadilhas usando a habilidade deles.

Eram um grupo perfeito; apenas precisavam focar.

— Não é novidade que temos que pensar como os jogadores agora – começou Kahi, os olhos repousando no mapa com as peças posicionadas. – Principalmente naqueles que não se moveram no tabuleiro.

Scar apontou com o palito a peça da rainha.

— É provável que ela vá atrás daquela garota, já que tentou pegar o menino cristal.

Kahi pegou uma lasca do cristal que desprendera de Sextante, colocando-a para uma das casas de Lucca, simbolizando tanto o disco quanto Pyxis. Scarlet moveu a peça da rainha para um círculo de cor púrpura onde marcava a residência de Zoey.

— Não sei se alguém pensou nisso, mas – Misha debruçou os cotovelos no tampo da mesa, os olhos bicolores analisando cada uma das peças. – É estranho de as peças serem diferentes uma das outras, tirando a Torre e o Peão.

Kahi assentiu, olhando para o Peão. A rainha, pela lógica, se interligava com sua peça – embora tenha um exército de cartas de um deck de Copas −, como se reflexo de sua personalidade ou função. Como na carta que Zoey havia recebido, nem tudo era xadrez ou damas. Mas o Peão era um peão de xadrez também, ali localizado acima do colégio no mapa como seu último movimento – engolindo aquela baleia e os estudantes que lá jogavam antes do caos explodir −, fazendo-o um aliado da rainha. O Peão não tinha se movido desde então; ele estava fazendo movimentos cuidadosos para que não causasse uma deslocação no tabuleiro para denunciar sua atual posição.

— Se esse jogo precisa de um vencedor, e o Peão é um possível aliado da rainha – Scar lançou um olhar à Kahi como se tivesse compreendido aquela conexão do Peão e da rainha. – Em algum momento ela vai ter que descarta-lo. Tínhamos que, de alguma forma, encontrar o jogador do Peão para saber do objetivo dele com esse prêmio e fazer uma barganha.

— Barganhar o quê? – Misha soltou um riso debochado. – Que ele saia matando o resto dos jogadores para que a gente o prêmio pra ele?

— Isso nos daria informações, seu idiota – Scar mordiscou o palito, os dedos inquietos. – Eles estão matando gente para vencer essa droga. Dar Zoey em troca de informações. – Ela deu uma olhadela para Kahi. – Não a entregar de verdade, mas vocês entenderam. Apesar de que eu não dou a mínima pra o que acontece com ela; só quero que isso termine.

Os olhos de Kahi caíram naquela peça ignorada até então. Não conversaram muito sobre ela quando Zoey, Lucca e Rune tinham aparecido na casa de Brooke após terem sido atacadas pelos caçadores de portadores da Maldição, porém, era uma peça que Kahi não conseguia ignorar. Ela era como a Torre – não saíra do lugar, permanecendo acima de onde ficava a ponte de Limoilou. Onde havia um jardim com lycoris radiata e uma rosa. Desde o momento em que o tabuleiro surgiu no céu, aquela peça não tinha se movido – uma peça do jogo do antigo Egito, Senet. Apesar da inércia, a Torre e Senet não eram a mesma pessoa, contudo, ambas tinham algo em comum: as raízes da loja de instrumentos e as flores da ponte.

— Nenhuma dessas duas atacou ainda – Kahi apontou para Senet e a Torre – Enquanto o Ceifador e a rainha têm os movimentos mais frequentes do tabuleiro. O Ceifador, aparentemente, quer barganhar com Zoey depois de ter falado mais sobre o jogo, e como não fez nenhuma troca com ela, é provável que ele vá atacar em seguida. Ou com uma proposta ou com uma investida física, se estiver no bom humor.

— Então precisamos encurrala-lo antes que ele fuja uma terceira vez – disse Scarlet, olhando para a peça de Senet – E essa aí?

— Aquela Kira não estava lá na ponte depois que as flores apareceram? – Misha enrolou o cordão azul do cabelo no dedo. – Ela trabalha pra Ordem; não seria surpresa se ela fosse essa peça. A General sempre tá por perto, observando.

Kahi trincou os dentes, reprimindo a vontade de bufar. Era impossível não considerar aquela hipótese, de não considerar Kira. A Ordem tinha muitos segredos e propósitos que iam muito além de combater monstros. Como se toda instituição fosse de alma e corpo em prol da segurança e vida de civis.

— Precisamos observar a General – decidiu Kahi, batendo com uma unha a peça de Senet, e olhou para Misha. – Fique de olho nela. Scar e eu vamos atrás do Ceifador.

— E Nea? – indagou Misha com a voz quase falhando. Pelo brilho de preocupação nos olhos dele, era provável que o assunto que Scarlet queria conversar era sobre alguma mudança no amigo. Algo que dissonava do rapaz; Scar sempre ficava daquele jeito quando acontecia algo com Nea.

— Vou mandar uma mensagem sobre hoje aos outros, mas fale que ele irá atrás da rainha. – Kahi puxou o celular do bolso num movimento ágil. – Apesar de não ter a sua habilidade, é tão quieto quanto. A rainha não pode ser mais esperta que nós. 

Their war, our curse - FBTG Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora