27 | misha

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Misha resmungou quando a ligação caiu na caixa postal pela milésima vez. Não era porque estava com preguiça de ir até a casa de Nea – quando ia, ficava até altas horas comendo melancia, brincando com as carpas e lutando com as espadas de madeira do avô do amigo −, mas estava com preguiça de ir da casa dele até o paradeiro do último movimento da peça de Shogi.

Para falar a verdade, ele estava com preguiça de toda aquela história de joguinho. Não acabava nunca; parecia se estender até a última gota de um rio já seco. Misha só queria mesmo era voltar a caçar nas noites de TDR, provocar as meninas e ficar conversando na casa de Nea ou de Chris.

Misha tentou ligar outra vez, olhando para a rua deserta enquanto virava a esquina, avistando a casa de Nea lá na frente. Já era final de tarde, e ele poderia ter feito muita coisa se não fosse pela conversa do dia anterior. Não via nenhuma utilidade de ter ficado ouvindo Kahi discutir com aquela General. Misha queria mesmo era ter dado uma olhada naquele tal de Pyxis; não era todo dia que um moleque caia dos céus, e da cor azul. Com um terceiro olho.

Emitindo um tch, Misha enfiou o celular no bolso da calça, parando em frente à entrada da casa de Nea. Era toda de madeira à moda tradicional japonesa, e o furin estava quase inerte pendendo no alto. Ele se inclinou para trás, olhando para a casa de Scar; ela já deveria ter saído para se encontrar com Kahi (não estava escutando os berros que ela dava com as mães). Tocou a campainha, e o som não chegou até ele.

A porta se abriu um minuto depois, e Misha sorriu quando o avô de Nea apareceu com uma vassoura em uma das mãos.

— O Nea não está, né? – ele passou a mão na nuca, o cordão do cabelo roçando no pulso.

— Ele saiu para pegar alguns legumes para o jantar – Masamune sorriu de volta, olhando para a rua. Mesmo sendo velhote e mais baixo pela idade, ele ainda tinha aquela postura de guerreiro feudal. – Fique para comer conosco.

— Ah, não, a gente... – Misha franziu a testa. – Ele foi no mercado, né? Eu vou lá encontrar com ele.

— Ah, que bom, então – O velho deixou a vassoura de lado, afagando as mãos de Misha com seus dedos calejados. – Peça para que ele traga alguns ovos; esqueci de avisar.

Misha fez uma reverência e seguiu pela rua com uma careta. Nea não tinha ido ao colégio, mas dissera que ia com ele ver o paradeiro da peça. O amigo ainda não dissera sobre a ausência, e não sabia se ele tinha ido trabalhar também.

Era estranho, de qualquer forma. Nea estava esquisito desde que aquele garoto caíra do céu, porém Misha somente observou antes de perguntar. O rapaz estava meio fora de zona, e às vezes falava com o sotaque da língua nativa repentinamente – ambos conversavam no francês de Misha, e mesmo quando era com Chris. Nea tinha boa memória, mas nesses dias quando Misha perguntava algo sobre um assunto, o amigo demorava para lembrar – às vezes simplesmente não se recordava. Ele até pensou que fosse consequência do que Scar tinha feito – aquela garota tinha quase beijado Nea do nada −, contudo, não era aquilo. Alguma coisa estava rolando, e Misha precisava perguntar diretamente para saber.

Ele entrou numa rua, avistando um pontinho virar em um beco entre o mercado do bairro e uma outra casinha. Misha disparou, chegando a tempo de ver Nea tentar subir em uma grade que dava para um depósito abandonado do outro lado. A sacola deslizou do pulso do rapaz e caiu leve no chão, como se ignorasse a existência dela.

— Ei, Nea – Misha gritou, se aproximando dele, observando as paredes manchadas de lodo, um cheiro de peixe podre no ar. – Aonde você tá indo?

O amigo o ignorou, chegando ao topo da grade e se jogou para o outro lado, caindo no chão. O coração de Misha disparou, correndo para ajudá-lo.

— Você tá legal? – Misha agachou ao seu lado, erguendo o rosto de Nea. As pupilas estavam dilatadas; a íris era apenas um disco fino castanho-claro. – Merda, Nea, o que você−

Um ardor floresceu na bochecha de Misha quando ele virou o rosto, seu olho bom capturando um borrão branco. Ergueu o braço, bloqueando um próximo ataque e olhou uma figura deslizar a alguns metros de distância deles. Misha semicerrou os olhos; uma garota esguia e tão pálida quanto uma árvore cheia de neve no inverno estava meio agachada, os cabelos curtos brancos na altura do queixo. Ela segurava uma adaga curta, e avançou para cima de Misha, tão veloz que lhe atingiu o estomago antes que pudesse raciocinar. Suas costas bateram na grade, o ar escapando dos pulmões, um ruído esganiçado saindo da garganta quando o rosto da garota apareceu diante de seus olhos, lhe dando um golpe no meio do pescoço.

Misha sentiu o corpo estremecer e os pulmões arderem, uma mão voando até o pescoço e a outra o pigente da pulseira, fazendo-a aumentar de tamanho. Ele tossiu enquanto o bastão se solidificava na mão. A menina chegou mais perto com a adaga brilhando; Misha empunhou o bastão, engasgando, colidindo contra a lâmina afiada. Ela era rápida – o pé descalço dela atingiu seu braço e ergueu-se até bater o calcanhar logo acima de seu ombro, fazendo-o grunhir, reprimindo soltar um grito de dor. Seu joelho tocou o chão com o peso do calcanhar dela; Misha deslizou pelo chão e lhe deu uma rasteira, rodopiando o bastão, golpeando a garota na costela. Ela voou até a parede logo ao lado, tijolos caindo, e se levantou no mesmo segundo.

Misha arquejou quando a lâmina raspou em seu rosto, e trincou os dentes, dando um passo para perto da garota, esmurrando seu nariz, jogando-a contra a parede outra vez. Que merda ela queria? Com o seu rosto, afinal de contas? Se estava tentando golpeia-lo...

— Misha...? – Nea murmurou caído no chão, e Misha olhou para ele. O amigo parecia sonolento, os olhos carmesins piscando devagar.

A garota se levantou, o braço direito impossivelmente torto, e Misha apenas ouviu o som do osso voltando ao lugar quando ela o puxou com tudo, como se não sentisse dor. Ele sacou do bolso da calça suas moedas, cada uma entre seus dedos e jogou duas no ar, seu comando fazendo-as aumentar de tamanho, chamas purpuras crepitantes em volta delas – e as arremessou contra a menina que avançava novamente. Ela era muito veloz e golpeava com os pés com mais frequência, tentando deixa-lo com menos folego a cada investida.

Misha jogou as outras duas moedas, uma delas atingindo a parede do beco e outra acertando o braço direito que sangrava devido a torção de minutos atrás, as chamas consumindo sua pele, nenhum grito ou expressão de dor passando pelo seu rosto débil. Será que ela era uma daqueles caçadores de portadores? Eles não tinham acabado com todos eles?

— O que você quer, hã? – Misha arquejou, a visão ficando turva, suor escorrendo da testa até o pescoço. Não dava para olhar para trás, então tateou com o pé e tocou em Nea ainda estirado lá. – Você e aqueles caçadores de merda ainda estão atrás da gente?

A menina rodopiou com maestria a adaga, pulando para cima da barra da grade e atacou. O golpe foi veloz – Misha sentiu a lâmina acariciar sua pele e adentrar na carne próximo a costela, a dor inflamando como fogo quando ele jurou que sentiu a ponta da arma encostar no osso. A garota lhe deu um murro sob o queixo e um golpe com a base do cabo da adaga na barriga – e Misha caiu no chão.

Os batimentos estavam fracos como uma música se distanciando dele, seu corpo reunindo forças para se levantar. No entanto, a menina ficou sobre ele, a ponta de uma agulha brilhando em suas mãos.

Puta merda.

A agulha era fria, penetrando lentamente em seu globo ocular. Os dedos de Misha atrofiaram, o grito morrendo em sua garganta enquanto a escuridão encobria-se sobre ele – não escura, mas rubro como sangue. 

Their war, our curse - FBTG Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora