14 | lucca

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Lucca sentiu a brisa úmida do Rio São Lourenço tocar seu rosto como um beijo aquoso, como se trocasse segredos com os rastros já apagados de suas lágrimas antes de ele ir parar ali.

Para tomar chá.

Já tinha sido impressionante, até mesmo para as condições que Lucca ficava após ter um momento de quase-surto, ter conseguido sair de casa. De ter o pensamento de sair do sofá no qual havia ficado tempo o suficiente para a hora passar e ele não notar.

No entanto, ele já tinha compreendido que sua mente era o espaço perigoso para outro espaço tomar conta. Literalmente.

Lucca deu um gole do chá de hortelã quente, afastando o copo térmico, fitando o rio que se espalhava e se limitava nas margens do outro pedaço da cidade a quilômetros de distância. A ideia era contar sobre o que aconteceu na ilha para Mana, mas as palavras não subiam para sequer ficarem confinadas na garganta. Elas se condensavam no peito, pareciam formar algo só para diluírem novamente até parecerem um borrão preto de letras.

As únicas formas materializadas do propósito da ideia era ele, os chás e Mana.

— Sua cabeça está tão diferente quanto esse rio que você tanto encara? − Perguntou o rapaz. Lucca abriu um sorriso breve. Mana estava sentado na grade verde ornamentada do Terrasse Dufferin, uma passarela de madeira logo em frente ao hotel Château Frontenac. Lucca estava apenas debruçado; havia bancos da mesma cor que a grade para sentar, mas Mana, aparentemente, apreciava o fato de estar a uma lufada de cair rua abaixo.

O olhar de Lucca vagou pelo rio, solene e tranquilo mergulhado em suas próprias águas, e ergueu para os céus reunindo nuvens pinceladas de laranja, corado como a cor de um pêssego. Enxergar as rachaduras de vidro fez com que a voz de Cassandra sussurrasse em sua mente, como um lembrete impossível de apagar.

Decidi lhe contar sobre isso porque o seu surto é um poder. Não foi feito para ferir. Você não foi feito para isso. Pode usá-lo para ajuda-los no jogo, na Maldição – em qualquer coisa que achar necessário.

O que era necessário. Sua magia, sua habilidade – toda a faceta do que ele podia fazer sempre traçava uma linha evidente do que ele tinha que fazer, do que precisava ser necessário. Vamos remendar A Fenda. Vamos encontrar mais pessoas com a mesma habilidade de florescer galhos e flores do próprio cerne. Para remendarmos A Fenda.

Porém, as flores não estavam no alcance de costurar algo quebrado. Algo que dependia do espaço, um remendo que dependia da própria costura para regenerar. O céu havia renegado as flores de Lucca, a extensão dele, porque os céus não podiam ser cultivados.

E sua outra extensão na qual Lucca queria renunciar... escorria como tinta que podia manchar, riscar e reescrever outra vez.

— O que você... – Lucca sentiu os lábios se moverem, a voz rouca quase estranha aos ouvidos. – O que você faria se pudesse costurar A Fenda?

Lucca desviou os olhos para Mana, a brisa amena esvoaçando um cabelo já desengrenado. O rapaz o encarava, os olhos grandes detrás dos óculos. Ele voltou não para o céu como quando alguém perguntava ou falava sobre A Fenda; apenas contemplou o rio e sorveu de seu próprio chá.

— Eu já fui muito otimista – Sua voz era baixa, alguns volumes a menos do que ele costumava usar. – Já fui tão otimista que olhava para os céus e desejava cruzar a atmosfera para tocar aos astros. Para cantar aos monstros, para acalmar seus corações cheios de matéria-escura. Confiná-los no que há além de A Fenda seria como enfiar um arco de violino no peito de alguém; talvez não o mate, mas continuará agonizando na própria dor. – Um sorriso torto se desfez rápido dos lábios de Mana. – Nunca ouvi alguém tocar a um monstro. Talvez, como os corações cheios de caos dos humanos, eles só querem que alguém lhe dê paz. Corações cansados, em algum momento, explodem em dor.

Lucca ouviu o som do próprio suspiro.

— Não consigo acreditar que alguém no mundo queira nos salvar dos monstros, como um desejo heroico e humilde de luta para conquistar a paz. − Mana prosseguiu – Se você quer salvar o mundo para não ver gente morrendo, é porque você não quer encarar o que sempre vem, o que virá para você. Admita que você não quer ser pego pela mão da morte. Acredito em desejos egoístas. E não em desejos heroicos.

Lucca permaneceu encarando Mana, que virou o rosto para olhá-lo também, abrindo um sorriso.

— Talvez... – Lucca sustentou o olhar do rapaz. – Talvez a morte sempre ande ao lado de qualquer um; mas conseguimos mantê-la a uma distância boa.

Mana soltou uma risadinha, sorvendo da bebida. Lucca repousou os olhos no estojo do violino de Mana recostado na grade, como se descansasse de um longo dia.

Acredito em desejos egoístas. E não em desejos heroicos.

Os objetivos que Lucca e a Ordem tinham sobre remendar A Fenda eram distintos; o dele era como o que Mana havia dito – não sentir a incumbência de uma morte, de não querer sentir o que aquilo levaria, de se eximir de algo que você não quer ter a responsabilidade. De não querer ser o causador. Do sangue nas mãos.

Da tinta.

Lucca ficou de costas para a grade, respirando fundo, o peito se aquietando com o pensamento de ter um desejo heroicamente egoísta.

— Você não é um monstro e muito menos se parece com um, mas – Mana desceu da balaustrada, deixando o copo de chá no chão, retirando o violino do estojo. – Talvez queira uma canção para seu coração cansado.

Seus olhos se encontraram, e Lucca abriu um sorriso quando Mana descansou o queixo no instrumento e o arco falou no idioma da melodia. 


Their war, our curse - FBTG Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora