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Veneza, Itália — 1962.



O carnaval era fúnebre.

As cores das fantasias que os venezianos carregavam consigo deixava a coisa toda um pouco menos assustadora – se não fosse por aquelas máscaras brancas escondendo aristocratas.

Tudo para ocultar sua verdadeira aparência.

Kalhy também estava vestida assim; um pouco menos extravagante talvez, uma figura mais monocromática como fantasias com penugem de corvos que alguns vestiam, as máscaras com bicos curvados perolados, brilhando sob as luzes de tochas que dançavam junto à música orquestrada por uma banda próxima a Ponte de Rialto, onde homens e mulheres iam e vinham, pomposos em seus trajes.

Uma noite límpida, era aquela. Kalhy deu uma olhada aos céus, os pontinhos como diamantes cintilavam como se estivessem aproveitando do carnaval, como se a música chegasse além das nuvens e desejavam estar entre eles.

Kalhy desejou à deusa para que pudesse estar entre as estrelas. Lá, tão distante daquele mundo, ela poderia ser quem quisesse. Não seria necessária uma máscara, uma fantasia extravagante cheia de babados e penugem de pássaros – coitados.

O chiado de roupas sacudindo chamou a atenção de Kalhy; duas pessoas fantasiadas dançavam diante dela, aquelas mascaras encarando-a como se lhe convidasse para participar dos jogos da ponte e se jogasse dela, só para ver no que acontecia. Um deles estava usando uma máscara decorada com cartas de baralho – um bobo da corte. O outro era decorado com uma partitura de uma música. Kalhy arqueou as sobrancelhas sob a própria máscara. As notas eram de Camille Saint-Saëns... Danse Macabre.

As duas figuras coloridas saltitaram para além da multidão como gêmeos de uma dança incompreendida ao resto do mundo.

Kalhy permaneceu recostada próxima a um beco, na esperança que nenhum casal desinibido zanzasse até ali.

sorriu com o aroma de doces sendo oferecidos aos residentes. Acompanhou com o olhar uma figura alta e esguia que esperava por seu doce numa tenda encoberta por uma fantasia cinzenta repleta de babados, como uma nuvem carregada ameaçando as cores vividas de um pôr-do-sol. A figura fez uma mesura severa e virou ligeiramente o rosto para o lado, e Kalhy viu – a máscara que alugara para àquela mulher.

Os ombros de Kalhy ficaram rígidos. A máscara não combinava com o traje, embora tivesse que admitir que as cores que ornavam a superfície com desenhos delicados era como se o céu que se punha estivesse lançando os últimos suspiros de raios de sol por entre a nuvem cinza, dando um certo charme àquela beleza débil.

Kalhy não esperava que a mulher realmente se vestisse daquela maneira; Morrighan parecia dar preferência a túnicas de cores sem vida e um par de botas de combate.

Seus olhos desceram até a cintura de Morrighan – e claro, não deixava sua companheira de décadas; uma claymore. Parecia arriscado demais carregar uma espada pesada daquelas em meio a festividade com tantos homens viris esperando por um duelo que fosse.

Morrighan se afastou da tenda junto ao seu acompanhante um pouco mais baixo, desviando da multidão como se fosse um mero fantasma – sem toque, odor e cor. A nuvem nebulosa deixando o céu corado.

Kalhy queria segui-la. Morrighan parecia a promessa de um convite sussurrado, como dois amantes esperando que a cidade se enevoasse com doces, dança e música – e os ignorassem para que enfim tivessem uma aventura.

Contudo, Morrighan também era o hálito de uma floresta amaldiçoada.

Kalhy não queria problemas. Não queria carregar mais fardos do que poderia aguentar, e Morrighan não pouparia sua vida por uma segunda chance.

Porque a guerreira já sabia o que Kalhy era.





Kalhy engasgou com a própria saliva, levantando-se do amontoado de cobertores, o coração martelando no peito.

Ela piscou, massageando as têmporas enquanto tossia para se recuperar. Seus olhos vagaram pelo cômodo minúsculo cheio de trepadeiras e ramos de plantas verdes pendendo do teto. O ar ali parecia abafado, fazendo as costas de Kalhy acumularem suor.

Precisava de ar fresco.

Kalhy respirou fundo e calçou as pantufas com o desenho do rosto de Yiriz costurado na frente, saindo do quarto. A loja estava vazia, certamente. Ela olhou para a porta em um outro canto da parede sob a sombra de uma das prateleiras imensas da loja; Yiriz não havia chegado.

O espaço do empório parecia desolado com a ausência do menino como se fosse um ser vivo, como alguém que perdia um pouco a cor quando o amado ia embora, mesmo que por algumas horas.

No caso de Yiriz, alguns dias. Ele era agora como um visitante que tinha seu canto para dormir e um mundo para descobrir mesmo com seus milhares de anos confinados sob uma aparência de um rapaz sedutor de dezenove anos.

Kalhy abriu um sorriso com um suspiro, caminhando até o balcão, sentando-se num banco com pernas altas de madeira. Ele estava agindo como um adolescente há muito tempo, e a necessidade de estar ao lado de Zoey parecia ampliar seu amor por aquele mundo – e por aquela menina. Ela não podia culpa-lo.

Seus olhos encararam aquela porta, a entrada para tantos caçadores ilegais. Era tão fácil chegar até ela e abri-la – Yiriz estava fazendo com mais frequência agora como se eles tivessem voltado alguns anos atrás, quando Kalhy o conheceu.

Seu coração calejado comprimiu-se dentro dela. Aquela memória... Não era o tipo de coisa que ela costumava ter – até porque, para Kalhy, era impossível sonhar com reminiscências. Era um luxo e um infortúnio que não tinha, assim como era aos outros como ela.

Alguma coisa havia acontecido. Estar dentro da loja era como estar vendada, incapaz de saber o que acontecia no mundo lá fora.

O odor de pólvora e sangue não atravessavam a porta.

Os trovões de batalhas não retumbavam além daquela porta.

O casebre cegado e renegado ao resto do mundo.

Porém, Kalhy sabia.

Alguma coisa havia acontecido.



Their war, our curse - FBTG Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora