31 | kira

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A bile queimava dentro dela. Os arrepios corriam em sua pele, o corpo em alerta porque algo sempre vinha – e era a mesma sensação de tantos anos atrás, quando a chamaram para aquele lugar pela primeira vez.

Antes, era um laboratório qualquer.

Agora, era como um mundo abandonado provido de mentes extraordinárias consumidas pela única matéria que poderia unir os povos.

— Eu deveria ter vindo de máscara. – Nell sibilou atrás de Kira, um ruído de ânsia saindo da companheira. – Isso aqui é nojento, horroroso, e provavelmente a minha rinite vai querer atacar junto.

Kira suspirou, relaxando o rosto. Não podia culpar Nell; até mesmo ela preferia não estar tocando nas paredes daquele bueiro. Estava muito escuro até onde caminharam, e decidiram não usar lanternas, dando preferência à visão afiada da Maldição. Não queriam chamar muita atenção, e os passos silenciosos de ambas facilitavam a escuta dos ruídos contínuos; uma goteira distante, o sonido angustiante de pernas de baratas e centopeias que encontravam durante o caminho.

Àquela altura, Kira e Nell já tinham ultrapassado a entrada daquele bueiro – o terceiro que dava acesso ao laboratório principal do Centro de Testes. Os olhos de Kira observaram os símbolos desenhados na parede, alguns com sangue, outros com cera e mais alguns com giz branco desbotado, o lodo e vazamento escorrendo como uma cicatriz suja. Aqueles bueiros eram saídas de emergência que nunca foram usados mesmo nos anos antes do Centro de Testes ser abolido. A entrada principal ficava ao norte de Shannon, afastada da floresta onde pelo menos três saídas de emergência ficavam. O Centro, vista por cima, tinha um formato circular, e a parte interna os corredores davam para laboratórios menores e câmaras de testes. Era uma arquitetura simples, econômica, e que deveria ter sido derrubada junto aos projetos que o Centro tinha iniciado.

Kira brincou com um cristal oval por entre os dedos enluvados de couro preto. Anos antes, quando ela e Vincent haviam sido chamados para fazer parte dos testes, Kira tinha desenvolvido uma repulsa contra macas e aparelhos médicos. Mesmo sendo uma Caçadora naquela época, antes de ter o trauma-mágico, ela era imparcial à hospitais. Contudo, dia após dia, os olhos inertes naquelas paredes verdes-claros, suas narinas tinham sido infectadas com aquele cheiro. Kira conseguia sentir o gosto na base da língua como se estivesse bebendo soro numa taça. O gosto amargo dos medicamentos, fazendo seu corpo contorcer e jogar para longe.

Seus dedos se fecharam no cristal, o couro estalando. Naquele dia em que mostrara o mapa à Brooke e Lisa, Kira precisou ficar trancada dentro do escritório por meia hora, seu celular recebendo as notificações para que ela se encontrasse com sua equipe. O desenho do mapa e um nome haviam se conectado tão perfeitamente como um encaixe de quebra-cabeça. E a imagem que formava com as peças juntas a fez vomitar em cima da poltrona.

Os dias frios arrepiaram sua pele, os gritos estremeciam seus ossos e a sensação úmida e fria do liquido preto encharcavam sua visão como um manto, mas Kira conseguia ver além. Seus olhos assistiam às criaturas estourando como uma bomba relógio dentro de seus corpos deformados, o liquido viscoso jorrando como fogos de artificio para todos os lados. Os respingos formavam figuras no chão, como se criassem novas formas monstruosas, sua prole, mas sua existência era apagada com a equipe de limpeza especializada do laboratório.

Todos os dias naquele lugar, Vincent sorria para ela. É como ir para a escola, mas temos mais aulas práticas do que teóricas. E a gente gosta da teoria.

Se Kira já odiava aquele rosto muito antes, aqueles dias no Centro só havia piorado.

E aí? Como é que vocês estão? – a voz Amaru chiou no dispositivo na orelha de Kira. Ela piscou, sua visão focando no caminho escuro adiante. – Aqui está frio como Yellowknife, e nada bonito como o céu nesses dias de inverno lá.

Their war, our curse - FBTG Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora