21 | lucca

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Lucca estava com um certo receio de Mana continuar a caminhar pelas grades baixas que bloqueavam a passagem para além de obras e das casas por onde passavam. O rapaz cantarolava enquanto rodopiava apoiado em uma placa de sinalização, como se estivesse em um eterno Cantando na Chuva – mas sem o aguaceiro e o guarda-chuva. Ficar parado parecia uma afronta contra o cérebro imperativo dele.

Lucca olhou para o céu azul da tarde, a brisa gelada contra suas bochechas, desejando estar de cachecol ou uma blusa de gola alta. A primavera estava chegando ao fim, e a temperatura, embora os raios amanteigados do sol ainda irradiassem pela cidade, o frio adentrava pelas fibras de sua roupa como se estivessem no inverno. Era como quando ele saia do surto lá naquela salinha, o liquido escorrendo para dentro dele, deixando alguns respingos da tinta preta nas paredes, em suas mãos.

Ele remexeu no teru teru bōzu escondido no bolso da blusa de moletom. Parecia uma mania em um curto espaço de tempo desde que Cassandra dera aquilo a ele. Naquele dia, ele sentiu algo derreter dentro dele, cruento como a tinta era, e ao aproximar aquele bonequinho parecia ter abafado o frenesi gelado que ameaçava com garras impiedosas – como sempre era. Lucca não sabia como usá-lo, na verdade; porém, ficar tocando no objeto parecia realmente acalma-lo. Poderia ser um truque psicológico, algo que, se Cassandra não tivesse dito que era um presente para ele, e que se não tivesse lhe acalmado o peito, poderia ter se sucumbido ao surto, a pele encoberta pela tinta – e lá se ia o lar onde moravam.

Seus olhos acompanharam Mana conversar com um cachorro rechonchudo que o seguia enquanto o rapaz se equilibrava em cima de uma grade, árvores altas ladeando o outro lado, as sombras formando desenhos enormes no asfalto. Lucca desviou o olhar para os galhos das árvores, as flores coloridas dando seu último adeus. Ele ainda estava esperando o momento certo em contar sobre o que Cassandra revelara a ele para Rune e Zoey, mas eles haviam recebido tanta informação de uma vez, e contar a Zoey sobre o espaço dentro dele era desejar que a cabeça dela explodisse – ou como Yiriz dizia, virar uma supernova. Assim como ele precisara, a amiga também precisaria de tempo para se acostumar com o fato de que tinha um irmão – e todas as dúvidas que isso acarretaria. De Morrighan. Da matéria-escura que morava dentro deles em cada fibra dos galhos e espinhos.

Os olhos de Lucca arderam, e ele apertou o bonequinho para se controlar. Ele viu Mana se aproximar de uma casa com três andares, sendo que o primeiro era mais uma fachada de uma loja. Uma parte da parede era como tijolos pintados de vermelho-escuro, quase vinho, um toldo da mesma cor simulando uma telha, a porta marrom-escura. Havia uma janelinha como vitrine, e Lucca aproximou o rosto para ver o que havia ali; xicaras e pires customizados, lâmpadas que pendiam das mais variadas formas – e seus olhos capturaram um movimento lá dentro.

— Ainda está aberto – disse Mana, apontando para a placa de madeira escrito Ouverte pendurada.

Lucca assentiu e respirou fundo quando Mana girou a maçaneta e abriu a porta, ambos entrando. Ele observou com cautela a lojinha que o recebeu com um aroma de lavanda; era pequena, fazendo com que a mera presença dele e de Mana deixasse o espaço ainda menor. Era quente ali, prateleiras com frascos de sementes de flores e plantas nas paredes, sachês de chás, mais lâmpadas pendendo do teto baixo, potes de óleos aromatizantes tampados com rolhas.

Do outro lado, atrás de um balcão de madeira clara compensada, havia uma mulher que os observava com olhos tranquilos, porém curiosos, enquanto seus dedos guardavam cartas em uma caixinha. Ela era bonita; os cabelos castanho-escuros caindo nas costas, longos, a pele escura com algumas manchas mais brancas – vitiligo. A mulher puxou uma caderneta feita à mão, e Lucca não se demorou para sinalizar um oi com o dedo. Tinha estudado um pouco sobre libras devido à Lisa; o clube das garotas e o BB sabiam se comunicar com ela, e deveria ser desgastante sempre estar com um caderno e lápis para passar informação aos ouvintes, embora Lisa não parecesse se importar.

Their war, our curse - FBTG Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora