XXI - A inspiração do deserto

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Pelos vistos, os percursos entre a vila piscatória e a aldeia de Viejos não eram muito populares entre a população local, o que era de estranhar pois a não ser usando os caminhos do mar, não existia outro que se pudesse usar para sair dali. Os habitantes da vila seriam recatados ou agarrados à terra. O autocarro ia quase vazio, o que possibilitou aos quatro viajantes escolherem os seus lugares. E como rapazes malcomportados, ou com tendência para a rebeldia, escolheram os bancos traseiros.

Os escassos passageiros compunham-se de mulheres circunspetas e velhas que iriam visitar algum parente, homens de negócios carrancudos e gordos, camponeses que criavam aves e que usavam o autocarro para transportar as suas galinhas. Para além do calor abrasador que iriam suportar num trajeto que duraria perto de quatro horas através de um deserto, ficaram a saber pelo empregado que lhes vendera os bilhetes e que lhes dera estas informações a contragosto, teriam de ignorar o fedor nauseabundo dos galináceos e o seu agudo cacarejar constante. Malgrado aquelas condições deploráveis, eles prepararam-se para aproveitar o tempo da melhor forma possível, sem se importarem com o que os rodeava. De qualquer modo havia a vantagem de o autocarro ser praticamente deles.

A viagem começou com um motor a esforçar-se num bramido ensurdecedor e alguns solavancos derivados da estrada esburacada. A criançada surgiu de uma esquina e pôs-se a acenar ao veículo, movendo os braços alegremente, aos gritos. Os meninos desejariam, como parte de um sonho quase impossível, também partir naquele autocarro. Ao vê-los, George condoeu-se e devolveu-lhes os acenos.

John reclinou-se e apoiou as botas no encosto do banco da frente desocupado. Ringo esticou-se nos três bancos que ficavam à esquerda e Paul, após verificar que as guitarras estavam bem guardadas no compartimento de cima, atadas com a ajuda das respetivas faixas, sentou-se ao lado de John com a guitarra acústica. Tentou reclinar o seu banco, mas ao tocar no mecanismo este rangeu de forma suspeita e abandonou-o, com medo de partir alguma peça que fosse demasiado cara naquele ermo. O dinheiro que tinha na carteira não era muito, mas tinha dado para pagar os bilhetes que não foram muito caros, levando em consideração o tempo da viagem. Tinha também um cartão de crédito, só que não queria entrar em despesas desnecessárias pois precisariam de comer até chegarem ao seu destino e desconfiava que Ringo não iria permitir que se começasse a gastar o dinheiro do saco.

Espreitou os bancos da frente onde se sentavam os restantes passageiros, as velhas e os gordos, rodeados de gaiolas de onde voavam penas brancas e cacarejos. As suas malas inchadas tinham também sido colocadas nos compartimentos em rede situados junto ao teto do autocarro. O boné desbotado do condutor, um homem moreno e calado que se movia lentamente, estava ocultado por todos estes obstáculos visuais. Não era um mau sinal o condutor ser lento, pelo contrário. Dava alguma garantia de que a viagem iria decorrer razoavelmente bem, apesar das condições climatéricas, do estado da estrada e do veículo. O homem não iria acelerar para velocidades proibidas.

Paul avaliou a situação e ajuizou que ninguém se iria importar se ele tocasse alguma coisa. Sempre ajudava a distrair e ainda faltavam muitas horas até Viejos, o seu destino. Experimentou as cordas. O som saiu desafinado. Suspirou. Era normal. A guitarra era velha, tinha andado aos trambolhões naqueles dias, a ser transportada de cá para lá, em circunstâncias excecionais. Ao seu lado, John remexeu no bolso das suas calças e levou alguma coisa à boca que começou a soprar. Saiu som.

Uma harmónica.

Não se lembrava de lhes terem oferecido nenhuma harmónica na traineira e não tinham parado em nenhuma loja, entretanto.

- Onde arranjaste isso, Johnny?

- Na vila... – respondeu, evasivo.

- Na vila? Mas fomos diretamente do porto para o terminal.

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