XXVI - Uma nova cidade

11 4 22
                                    


O ambiente dentro do carro tinha esfriado consideravelmente depois de saberem que estavam a ser procurados pela polícia no país inteiro, ao ponto de haver informações sobre eles, nomeadamente as suas caras, e sobre o que tinham feito numa estação de serviço decadente junto da fronteira.

Pelos vistos, o assunto não interessaria a uma aldeia remota como Viejos, ou teriam sido logo denunciados nesse lugarejo perdido no meio do deserto. Ou talvez as notícias de que eram fugitivos só tivessem chegado depois da saída deles, o que estaria a destroçar ainda mais o coração da Conchita, da irmã e da amiga. Quanto à mulher da estalagem, devia estar a rir-se ao imaginar que partilhara a sua cama com um rapaz procurado.

Bem, podia encarar aquilo pelo lado humorístico ou pelo lado mais sério. John Lennon optou, claramente, pela primeira vertente. Os seus companheiros, pelos vistos, tinham escolhido a segunda.

Mal tinham tocado na comida que o cartão de crédito de Paul pagara, mais uma vez, até George se mostrara comedido e relutante em alimentar-se, o que não era nada normal. Beberam uma cerveja cada um, alguns bolos e nem sequer tocaram no feijão, nas batatas fritas, nos palitos de queijo, nas barras de cereais. O resto da comida empacotada espalhava-se no banco de trás, onde Ringo se sentava, direito como uma tábua, a remexer os dedos que estavam unidos no colo.

Paul cruzava os braços e olhava pela janela, George roía as unhas. John conduzia e pensava. Tinha de pensar, porque parecia que os outros ficaram catatónicos e com o cérebro embotado depois de verem aquele cartaz que exibia a palavra "Procurados" num tom carregado de negro no cabeçalho. Aliás, parecia que eles continuavam a ver só aquele maldito cartaz, não conseguiam visualizar para além deste, ou sequer visualizar outra coisa qualquer.

Ele, pelo menos, tinha a estrada e concentrava-se nessa longa serpente artificial que rasgava a paisagem desértica. Tinha também uma certa propensão para destrinçar os problemas até reduzi-los a uma essência ridícula que o tornasse superior e, por definição, capaz de uma resolução a seu favor.

Eram procurados, mas também não deviam ficar admirados. Seria um resultado lógico depois de se terem escapado da polícia, que viera prendê-los no velho armazém do cais antigo, onde se situava o lar de Richard Starkey. Ora, se a autoridade não lhes deitara a mão e apresentara-os à justiça, queria dizer que iria procurar por eles no passo seguinte para cumprir com o objetivo. Ou seja, deitar-lhes a mão e apresentá-los à justiça.

E eles continuavam em fuga – recentemente Paul tinha recordado esse facto.

Só que uma coisa era falar, outra era verificar que o que se imaginava era bem concreto e definido. Que tinha implicações gravosas, que significava uma mudança de estado. Livre, preso. Liberdade, prisão.

Estranhamente, John Lennon sentia-se calmo.

Começava a detestar aquele silêncio quase mórbido, não pela ausência de ruído em si mas porque estava a ter implicações no seu raciocínio, no seu bom humor e no seu otimismo. Pediu:

- Ei, Paul. Canta alguma coisa.

George baixou a mão, fazendo um trejeito com a boca antes de cuspir um pedaço de unha que estava a roer. Lá atrás, Ringo não escutara convenientemente o pedido ou simplesmente ignorara-o, não se movimentando um milímetro. Paul fingira que nada ouvira, o que era bastante pior do que a atitude hirta do baterista.

- Paul...

- Não me apetece, Johnny.

- Paul! – insistiu.

- O que queres que cante? – Paul exasperou-se e bateu com as mãos nos joelhos.

- Qualquer coisa – disse George, por sua vez.

Na Minha VidaOnde histórias criam vida. Descubra agora