O dia tinha nascido e eles continuavam sentados no chão imundo do mesmo beco, na mesma atitude desmoralizada e soturna. O mendigo fora mais esperto e deixara-os depois de ter dormido um pouco, talvez para um sítio mais quente onde costumava passar as noites, sem nunca ter falado com eles. Era um homem de poucas falas ou curtido pelas dificuldades de uma vida dura passada na rua, não dava confiança para qualquer um, muito menos para três homens em plena juventude que podiam agredi-lo e roubá-lo pelo simples facto de terem a vantagem numérica.
Eles tinham ficado no beco. Aguentaram a frieza noturna e uma madrugada gelada e azul. Não conseguiram dormir, nem sequer um sono curto, e estavam com um aspeto pavoroso, lívidos e com olheiras fundas em redor dos olhos mortiços.
Não tinham energias para se mexerem e tomar uma qualquer atitude em relação ao que se tinha passado, em relação à sua situação atual. Encontravam-se tão indolentes e paralisados que até o cérebro parecia ter cessado o seu funcionamento normal. Dentro das respetivas cabeças existia um zumbido contínuo, derivado ainda dos sons altos da música que tinham executado tão bem no final do dia anterior, no palco daquele clube circunspeto. Só eles poderiam reagir, cabia apenas a eles o ónus de sacudirem o peso daquela culpa e daquela mágoa, mas tudo parecia estranhamente congelado e distante. O problema era deles, contudo também não era deles e ficaram assim, inquietos e baralhados.
Não se sentiam bem, sentiam-se terrivelmente mal. Um soco nos dentes e ficaram dormentes. Depois de ascenderem ao paraíso durante a sua atuação musical, tinham tombado no círculo mais inferior dos infernos onde só havia desespero, enxofre e lamentos.
A inércia era tal que nem tinham fumado um cigarro, nem tinham procurado o refúgio momentâneo no prazer da nicotina, na abstração do gesto de fumar, na singeleza de um ato egoísta que era, bastantes vezes, introspetivo.
- Ei Macca... Dá-me os trocos que tens na carteira. Ainda a tens, certo? A tua carteira? Não ficou na casa da tua amiga...
A voz de John despertou Paul do seu marasmo. Tinha a boca seca e a saliva grossa formava uma pasta que tinha um gosto horrível.
- Ela... deixou de ser minha amiga.
- Sim, está bem... Tens trocos?
- Trocos?
- Sim. Tens aí um punhado de euros, alguns cêntimos?
- O quê?
- Anda lá, entrega-me as moedas. Vou comprar qualquer coisa para o nosso pequeno-almoço.
Sem alterar a sua posição de sentado, pernas junto ao peito, braços sobre os joelhos e queixo sobre os braços, as íris de George moveram-se lateralmente para espreitar os dois que falavam.
Paul levou a mão ao bolso interior do seu casaco. Estava novamente rasgado mas ele não tinha notado que o seu trabalho de costura tinha sido arruinado pelo puxão que ocorrera durante a debandada aflita do palco e do clube. Retirou a carteira, abriu-a. Encontrou algumas moedas e também uma nota, a derradeira, de dez euros. Entregou o seu último dinheiro a John, suspirando pesadamente. O saco castanho continuava onde tinha sido pousado. Quatrocentos mil euros amaldiçoados.
- Tenho mais do que alguns trocos... Toma, leva tudo – disse.
- Boa! Vai dar também para o café.
John levantou-se e saiu do beco. Tinha as calças manchadas da sujidade do chão, mas não se preocupou em sacudi-las ou limpar o tecido com uma mão. Assumia a sua personagem de vagabundo.
A classificação era perturbadora e Paul susteve um gemido de autocensura quando tornou a esconder a cabeça nos braços. Estavam os três convertidos em vagabundos, o quarto elemento do grupo fora preso por banditismo. Eram estrangeiros naquela cidade, eram procurados pela polícia, não tinham qualquer amigo ou familiar por perto e a possibilidade de poderem usar um telefone público tinha-se esgotado pois ele acabava de entregar as moedas, que serviriam para esse fim, a John. Sentiu uma imensa necessidade de falar com o irmão Mike, olhou para George que teria uma casa cheia de gente preocupada com ele. O pai, a mãe, os irmãos... O guitarrista mantinha-se macambúzio e ele não o quis incomodar com aquelas considerações. Talvez George não se quisesse lembrar da família pois ficaria mais triste. Paul esticou as pernas, agarrou no saco castanho e abraçou-o junto ao peito, amarrotando as notas. Ouviu-as estalar no interior e apertou os braços com mais força.
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Na Minha Vida
FanfikceE se o João, o Paulo, o Jorge e o Ricardo... Não! Vamos recomeçar. E se John, Paul, George e Richard, depois Ringo, se tivessem conhecido em circunstâncias diferentes daquelas em que se conheceram, adolescentes dotados para a música, apaixonados pel...