VI - Num esconderijo

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No fim da tarde chegaram ao cais antigo. O sol já não estava tão quente, havia menos luz e o ar como que tinha escurecido. Aquele lugar tinha sido abandonado havia alguns anos, por o porto artificial ali construído não comportar os grandes navios de carga mais atuais, mas os contentores enferrujados pela maresia e pelos ventos salgados ainda se empilhavam nas plataformas. Ringo pediu a John que se enfiasse por esse labirinto metálico para despistar eventuais perseguidores, embora não ouvissem a polícia havia mais de uma hora.

O velho Renault soluçava exausto. Deslizava quase parado pelo corredor formado pelos contentores, escondido nas sombras, percorrendo aqueles caminhos artificiais a soltar os derradeiros suspiros alimentados pelos vapores de combustível. John continuava a não desejar saber qual o nível de gasolina que ainda tinha no depósito mas desconfiava que estava na reserva. Os outros ocupantes da sua sucata adorada, agora ainda mais adorada do que antes, estavam mortalmente silenciosos. Conciliavam a experiência com as suas noções pessoais de ordem e moralidade, recuperavam o fôlego, digeriam o que tinha acabado de acontecer e achavam algum sentido na sua participação naquela situação.

Ninguém vinha atrás deles, nem sequer se vislumbravam outros automóveis naquela desolação cujo silêncio era cortado pelos pios esporádicos das gaivotas que ainda se aventuravam por ali já que o sítio era uma ruína. O que, até certo ponto, ajudou a que todos se acalmassem.

Por meio de gestos mudos, Ringo foi-lhe dando indicações. Nem o bandido, o principal mentor da loucura, tinha forças para falar, ou queria sequer abrir a boca. A fadiga física e emocional passava por todos.

Rolaram durante pouco tempo entre os contentores, voltaram à direita numa das ruelas formadas por esses blocos inusitados de metal decrépito e chegaram ao seu destino, um armazém próximo de um ancoradouro desativado onde se acumulavam velhos iates e barcos de pesca apodrecidos, cadáveres de embarcações que boiavam placidamente aos encontrões ao sabor da maré mansa. John estacionou o carro atrás de uns arbustos ressequidos que cresciam selvagens ao lado do armazém, novamente a pedido de Ringo, e os quatro rapazes apearam-se.

O cheiro a peixe estragado, a algas secas e a lixo era insuportável. Paul tapou o nariz e a boca com uma mão e seguiu George que tinha um ar enjoado até ao portão do armazém que Ringo abria numa nesga que lhes permitisse passar. John reparou que o cadeado ainda prendia a grossa corrente ferrugenta que supostamente trancaria o espaço que Ringo arrombara, encontrando maneira de entrar para dentro do armazém sem danificar a tranca. Ele também entrou atrás de Paul para fugir daquele odor nauseabundo que pairava nas redondezas.

O interior do armazém era acanhado, pois os fundos estavam pejados de caixotes e de outros restos provenientes de fainas antigas, como rolos de redes de pesca, armações, remos e velas dos veleiros. Ringo tateou a parede e uma lâmpada fraca acendeu-se revelando a habitação. Um espaço tinha sido criado junto a uma janela que se situava próxima ao portão de zinco, que se cobria com uma cortina improvisada feita de estopa, talvez proveniente de uma qualquer saca usada na lota onde se vendia o peixe. Junto à janela estava uma mesa e três cadeiras, mobiliário desengonçado que teria sido desencantado na lixeira ou recuperada de uma das barracas desativadas que foram usadas pelos pescadores, por cima do qual se pendurava a lâmpada acesa, a única iluminação do lugar. Havia ainda um sofá coberto por mantas esburacadas, que serviria de cama, e um frigorífico no canto que não fazia barulho nenhum, o que podia indiciar que estaria desligado ou com falta de gás. Ao lado do frigorífico estava uma pequena estante. Na tábua de cima via-se um rádio de um modelo clássico. Havia latas e alguns sacos que deveriam conter comida, nas outras tábuas que compunham mais outra peça improvisada de mobiliário.

Numa palavra, aquilo era um pardieiro.

Ringo explicou:

- É a minha casa, o meu esconderijo... É aqui que vivo, nestes dias. Não encontrei melhor, mas pelo menos sei que aqui estaremos sossegados. Ninguém imagina que vive alguém no cais antigo, onde estamos. O cheiro de lá fora... afasta os curiosos.

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