Reclinado sobre um monte de areia que estivera pacientemente a escavar, na emulação de uma poltrona, Paul McCartney dedilhava uma guitarra acústica.
No fim de contas o barco de Ringo guardava ainda outras surpresas, para além do útil machado e da providencial fita adesiva. John tinha ido lá vasculhá-lo quando o processo de acender uma fogueira se tinha tornado moroso e frustrante, cada vez mais irritante à medida que o sol se aproximava do ocaso, para encontrar uma fonte de ignição mais prosaica. Acreditava que haveria mais do que um machado pequeno e rolos de fita adesiva. Precisavam também de recipientes para recolher água pois estavam todos cheios de sede. Ringo batera o pé dizendo que não havia mais nada no compartimento da proa, mas John enfiara-se pelo mar adentro. Regressara com as mãos cheias e a gritar, desde os bancos de areia, palavras contra o baterista.
- Nem sabes o que guardas no teu próprio barco! Aquilo era quase uma arca do tesouro. São coisas tuas ou que já vinham com o barco? Parece-me que já vinham com o barco!
Encontrara um recipiente de plástico encardido e a guitarra acústica, com as cordas frouxas e a laca lascada, indicando que seria uma velharia que, de facto, teria vindo com o barco e que pertencera muito provavelmente ao dono anterior da embarcação. A girar o instrumento abandonado nas mãos, John propusera usá-lo para ir recolher água, arrancando o braço...
Escandalizado, George arrancara-lhe a guitarra das mãos e abraçara-a como se estivesse a proteger um ser indefeso que iria ser sacrificado.
- Não!! A guitarra, não! Temos essa caixa de plástico.
- Está muito suja. Eu não bebo água daí – anunciara Ringo enojado.
- Temos cocos! – insistira George a estreitar o abraço. – Apanhamos cocos, partimo-los ao meio com o machado e já temos água e duas tigelas para recolher mais água.
- Ele tem razão, Johnny – defendera Paul. – Os cocos serão excelentes para matar-nos a sede já, escavamos o miolo para comer e depois usamo-los para ir recolher mais água. Com as fibras das palmas secas entrançamos corda e...
- Tu tocas viola-baixo – acusara George. – Estás a defender a guitarra porquê?
- Gosto de guitarras também – respondera Paul sem perceber a pergunta.
- Acho que estamos a apanhar sol a mais na cabeça – justificara Ringo cansado. – Não andamos a dizer coisa com coisa.
- Os cocos são boa ideia. A guitarra, não. Na guitarra ninguém toca!
- Certo, George – admitira John.
Desistira e atirara com o recipiente para a areia. Dividiram-se novamente em diversas tarefas. George, com a guitarra, acompanhara Ringo na apanha dos cocos, John ficara com Paul a tentar criar fogo.
Paul olhou para as chamas que ardiam vigorosas sobre a madeira que tinha sobrado da construção da cabana. Sinal de que conseguiram efetivamente, naquela tarde, criar fogo. Dirigiram um raio do sol vespertino para um tufo de erva seca, recolhida na orla da floresta, que se incendiou com timidez, gerando um estreito fio de fumo, sinal de uma minúscula chama. Paul soprou, como vira uma vez num filme, John deu-lhe mais combustível e a labareda avivou quase magicamente, como se na sua alma ígnea existisse um pequeno deus travesso e guloso, que haveria de crescer sem parar à medida que fosse alimentado e espevitado.
Enquanto passava os dedos pelas cordas da guitarra, Paul via o horizonte marítimo alaranjado, o sol tinha acabado de se pôr. O dia passara com demasiada rapidez pois estiveram muito ocupados, primeiro com a curta exploração da ilha, depois com a construção do abrigo, com a obtenção de fogo através do sol, a busca de alimentos e de bebida. A noite instalava-se com muita tranquilidade e a calmaria habitual do local. Continuava a não estar frio, mas a humidade adensara-se. Sentia os pés quentes por causa da fogueira, que ardia a uma distância de segurança para não incendiar a barraca.
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Na Minha Vida
Fiksi PenggemarE se o João, o Paulo, o Jorge e o Ricardo... Não! Vamos recomeçar. E se John, Paul, George e Richard, depois Ringo, se tivessem conhecido em circunstâncias diferentes daquelas em que se conheceram, adolescentes dotados para a música, apaixonados pel...