XXXV

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Carta de Safira

Para Alec,
eu sinto muito.

Estou pensando em como escrever isso, mas não faço a menor ideia de como entregar essas palavras a você.

Somos amigos há muito tempo, tempo demais. Nunca nos desgrudamos, nem por um minuto sequer, e fizemos tudo juntos. Com isso, ando me dando conta de que talvez, tenhamos nos sufocado com uma amizade um tanto quanto invasiva. Não temos um grande grupo de amigos, não chamamos outras pessoas para nossas noites de filmes, idas ao shopping, viagens de verão... E se vamos para um evento como uma festa do colégio, ficamos mais entre nós dois do que outra coisa. Isso não é saudável, e por essa razão que demorei tanto para compreender isso.

Acabamos de nos formar, e temos uma vida longa pela frente com oportunidades, faculdades (que talvez devesse ter aceitado cursar), trabalhos, novas pessoas, e não estamos nos libertando para entrar nesse mundo. Continuamos amarrando essa corda que nos prende para uma vida além dessa, e não podemos continuar assim.

Quando era pequena, costumava fazer birra, espernear, chorar e discutir com a minha mãe por ela nos alertar disso, mas temo que talvez ela estivesse correta. Eu sei que ela possui seus defeitos, como qualquer pessoa, mas ela alertou-me do distanciamento que deveríamos nutrir e eu não dei ouvidos. Quando meu pai se foi, virei ainda mais a cara para ela, e talvez grande parte de minha atitude tenha sido decorrente do luto. Acabei terminando de formar essa bolha que nos prende há anos, e o usei como um apoio emocional.

Você foi apenas uma pessoa que me apoiei para tentar sair do sufoco. Nunca foi uma amizade natural. Fomos praticamente obrigados a convivermos juntos desde o nascimento, como iríamos saber que existem mais pessoas por aí? Você é como uma esponja emocional que usei para sugar todos os meus problemas, e finalmente me sinto pronta para caminhar sozinha.

Eu não deveria ter deixado isso acontecer por tanto tempo, mas era algo inconsciente, entende? Meu objetivo nunca foi magoá-lo ou machucar seus sentimentos, mas foi o preço que paguei pela minha própria felicidade. Eu admito, sou uma garota extremamente problemática e individualista, tenho total consciência de que não vou mudar. Por mais que isso seja doloroso, você foi primordial para o meu desenvolvimento, mas agora é insignificante.

Quando decidi levar esses planos para frente, ainda achava que deveria ter alguém a me apoiar. Aonde estávamos com a cabeça? Acha que funcionaria dois adolescentes de recém dezoito anos morando sozinhos em uma cidade inimaginável para nós como Toronto? Com mais de dois milhões de habitantes, crimes e confusões? Acha que iríamos chegar em que lugar se não conseguimos socializar com mais de uma pessoa? Se quer uma prova viva de que isso aconteceria e está acontecendo, que tal o fato de que eu deveria patinar sozinha para chegar nas Nacionais, mas ao invés disso, forcei a situação mais uma vez para encaixar você no meio. Alec, eu literalmente arranquei sua carreira de você, a oportunidade que teria para jogar em Harvard, e você aceitou sem pensar duas vezes. Como não consegue enxergar o quão errado isso é?

Nós criamos uma relação de codependência. Nunca vamos nos livrar disso se continuarmos nos vendo, se continuarmos perto um do outro. Jamais iremos ter amigos, arranjarmos alguém para nos casarmos e criar uma família. Temos que parar imediatamente, e fico ainda mais triste pelo fato de ter manipulado sua cabeça de uma forma tão grande ao ponto de você nem perceber.

Eu tenho ambições reais, talvez não tenha mostrado a você o quanto, mas elas são. Não quero — preciso — apenas patinar para chegar a uma Nacional, eu quero todas as competições que arranjar pela frente. Quero medalhas, prêmios, dinheiro, reconhecimento... Eu quero tudo, e realmente não me importo com o que eu tenha que fazer para tornar isso real. Você não pode negar que já esperava por isso, nem que bem no fundo. Eu só tenho olhos para a patinação desde que era uma criança, e talvez devesse ter escolhido outro caminho, mas escolhi esse, e não vou mudar de opinião.

Para mim, fazer esse desenlaço entre nós é mais fácil, mas sei que está apaixonado por mim, sei que sempre esteve. Não era para isso acontecer, mas eu vejo a forma como me olha, teria que ser cega para não notar. Eu vejo como já ficou com várias meninas, mas nunca decidiu namorar nenhuma delas, nunca levou nada para frente. Você não dá atenção para todas que possuem interesse em você, como na vez em que estivemos na feira natalina no centro da cidade e um trio de garotas da escola concorrente foi chamá-lo para tomar gemada com o grupo do coral, e você recusou.

Espero que esteja compreendendo o que estou dizendo, e que um dia veja que tomei a melhor decisão em nome de nós dois. Irei trilhar o meu próprio caminho, e espero do fundo do meu coração que faça o mesmo. Encontre uma garota para casar, entre em um time de hockey e esqueça que eu existo, estou implorando para que não me procure.

Nossa ligação nunca foi real.

Me desculpe por escrever essa carta tão em cima da hora, mas amanhã não estarei aguardando por você. Faça o que desejar com a sua passagem para Toronto, não está mais em minhas mãos controlá-lo. Apenas saiba que não pegarei o voo ao seu lado.

Poderia ter dito tudo isso em uma mensagem, mas são palavras muito importantes para serem ditas virtualmente, e eu sabia que você iria me ligar e lotar o meu celular com mensagens. Peço também que não me ligue, não me mande mensagens e não venha até a minha casa depois que ler isso, porque sabe que não irei responder, então estará fazendo um favor a nós dois.

Obrigada por me ensinar a patinar, mas agora estou bem em ficar sozinha. Encare a formatura como um adeus.

Tenha uma boa vida, e sinto muito por tê-la virado de cabeça para baixo.

Safira.

Shattered IceOnde histórias criam vida. Descubra agora