IV

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A magia não está no gelo. Está no que o gelo te permite fazer. É o único lugar aonde a vida desliza com facilidade. É o mais próximo de voar que jamais irei chegar.

Amanhã é o tão esperado Festival de Inverno de Nova York. Faz uma semana que encontrei Alec no Green Leaf e seis dias desde um dos piores treinos que tive esse ano. Cometi um flutz, um termo usado para dizer que eu não consegui fazer um lutz corretamente. Comecei o lutz entrando no eixo externo, e então ao deixar o chão, inclinei o pé mudando para o eixo interno. Fiz isso três vezes, algo totalmente raro para mim. A coisa foi tão feia que Eve nem me deixou iniciar o triplo lutz, algo bem complicado que vai fechar a apresentação com chave de ouro.

Ela achava que pudesse me acidentar, e provavelmente estava correta. Saí com as mãos rachadas e a bunda tão dolorida que Eli me chamou de velha, mas em seguida me deu um anti-inflamatório. Deus sabe quantas vezes não caímos em nossa época como parceiros.

Prometi que não ia mais deixar isso acontecer. Não posso deixar que ele interfira na minha carreira ou controle o meu temperamento.

— Cabeça erguida e firmeza nos braços, mas com delicadeza!  — Eve gritou quando terminei meu spin duplo. Giramos feito bailarinas duas vezes e precisamos aterrissar com firmeza com a perna direita ou esquerda inclinada a 90° graus, isso enquanto mantém sua cabeça erguida para o júri com confiança, e exala delicadeza com os dois braços abertos como uma linda andorinha. É o que mais gosto de fazer, tanto dentro do gelo, quanto fora.

— Perfeito! — Eve aplaudiu. — Vai detonar amanhã, Sasa.

Só Eve e minha avó me chamam de "Sasa". Minha mãe costumava quando era menor, mas ao longo do tempo parou. Não ligo, acho fofo, mas é algo bem maternal para mim, por isso só permito que as duas mulheres que mais me inspiram me chamem assim.

— Já está de pé desde as 6:00, acredito que esteja bom por hoje, amanhã antes do festival repassamos os saltos após o aquecimento. — Eve me entregou os protetores para colocar nos patins. — Agora vamos fazer a última checagem de seu figurino.

Assenti e coloquei as proteções. Meus patins são realmente bons, não tenho reclamações. Passei anos usando os comunitários e só tive um próprio — e razoável — quando juntei dinheiro fazendo e vendendo muffins na escola. A lâmina é de 0.3, a espessura perfeita para patinação artística. O couro de dentro é estofado para amortecer um pouco mais as dores diárias que enfrentamos, e na parte traseira tenho um minúsculo "S" gravado em pedrinhas brancas, presente de Eve. Ela disse que uma patinadora sempre tem que carregar algo simbólico para trazer sorte no rinque, e por que não juntar o símbolo no principal, os patins?

Enquanto jogo meu agasalho por cima do top roxo escuro de academia, caminho até a sala dos figurinos no terceiro andar. Antigamente seria um sonho poder realmente ter uma roupa sob medida para cada apresentação, não tinha condições financeiras, então reutilizava figurinos de patinadoras que acabavam jogando fora. Minha avó sempre dava um toque final e alguns ajustes que faziam toda a diferença.

— Varson! — Chamou o estilista do Hamerson Rink. — 1,59cm de altura, 53kg.

— Por que ele sempre chama as meninas como se fossem objetos? — Sussurrei para Eve caminhando até Drew, o estilista.

— Porque para eles, vocês são objetos. — Eve revirou os olhos, logo mudando a feição e sorrindo enquanto cumprimentava Drew. Atuação do ano.

— Ah sim, Varson! Hm... — Me analisou — Ganhou peso? Seus... Glúteos, parecem maiores.

— Acredito que estejam na medida certa, Drew. — Olhei feio.

Shattered IceOnde histórias criam vida. Descubra agora