Pagina 3 - Aurora do Norte

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 O frescor da noite após um dia calorento se instala por toda a extensão da pequena e ruralista cidade, pode-se ouvir as arvores agitarem seus galhos enquanto o vento soprava sutilmente entre as folhagens grossas do lado de fora, já que se há muitas arvores por aqui. O calor aqui é algo que as pessoas esperam o ano todo, são três meses de verão e nove de inverno. Claro, os nove de inverno incluem outono e a primavera, mas a aclimação é fria para essas estações. Uma chuva de verão estava próxima naquela noite, e talvez se precipitasse durante madrugada, aquela era uma mudança repentina de tempo para uma tempestade de verão. Mudanças são algo imprescindíveis e constante, era uma cidade nova, com um trabalho novo há três semanas. Aurora do Norte, na verdade é um pequeno município do estado de Celestia, o nome Aurora do Norte era em homenagem as manhãs belas que a cidade suscitava, pelo menos essa era a propaganda que faziam a respeito da pequena cidade nada atrativa. Ter dezenove anos e recém abandonado a faculdade para se mudar sem ter uma dependência financeira, que não seja sua mãe, as vezes não é tão fácil quanto se parece, se readaptar constantemente é horrível, mas essa não era a primeira vez que eu entrava neste processo adaptativo. Aprendi a gostar com o tempo, e a gostar das mudanças de modo com que mesmo sabendo que eu podia ir embora e me virar sozinho escolho conviver com minha mãe por livre e espontânea vontade, aos poucos descobri através das mudanças que é incrível ter a opção de enjoar das pessoas na mesma medida que escolhia não ter laços com elas. Havia uma única diferença nessa mudança na qual fizemos para esta cidade, o que a diferenciava de tudo e todos os outros lugares que moramos é que minha mãe nasceu e cresceu parte de sua infância difícil aqui e agora parecia determinada a ficar. Renata, minha progenitora era uma mãe solteira e nada dedicada aos cuidados maternos, era uma mulher que trabalhava no ramo empresarial e era sócia de um homem que eu não conhecia bem, mas que viram a oportunidade perfeita de abrir um sistema de negócio, ainda não totalmente executado, em Aurora do Norte.

 Os dias viraram-se semanas, e semanas viraram-se meses, durante dois meses de morada na nova cidade podia-se perceber que todos estavam aguardando com anseio pelas eleições, cartões, folhetins, banners, reportagens contemplavam em grande presença sob o cenário daquela cidade. Embora eu não fosse ter acesso a votações, minha mãe iria participar das eleições como eleitora, e assim viu a oportunidade perfeita de tentar abrir seu negócio através de um apoio governamental na qual estava buscando a todo custo. Os candidatos mais fortes para a eleição desse ano era uma moradora com influência matriarcal na cidade, e um feirante conhecido, que propunha que Aurora do Norte precisava de mudanças e essa era sua propaganda. Pilar Laurenz era a candidata número um, filha de uma senhora chamada Dora, já falecida, considerada cofundadora dos negócios econômicos de Aurora do Norte, isso por que a família Laurenz eram herdeiros da Madeireira Laurenz, o principal setor econômico da cidade girava entorno da exportação e venda de produtos feitos com a madeira vinda da madeireira local, e que era também conhecida pelo replantio e projetos sociais e ambientais da cidade. Já o feirante Aurélio Cavanor, era o principal integrante das feiras mensais que ocorriam em Aurora do Norte, as feiras feitas também movimentavam o setor econômico da cidade, e ainda tinha eventos anuais de maiores produção e safras onde Aurélio foi vencedor por três anos consecutivos com a maior safra e produção de legumes para a cidade, com isso Aurélio fundou uma empresa: Hortifrúti de Aurora, que vende e transporta legumes e outros plantios para a cidade toda.

 O restaurante de Otto, é um ótimo lugar para refletir a respeito das eleições e como a cidade atualmente se porta referente a essa intriga política e podia dizer até mesmo empresarial. Temos aqui alguns materiais que veio de uma serralharia onde é utilizado apenas a madeira de primeira da Madeireira Laurenz, e na bancada de madeira envernizada e esculpida, que outrora era um tronco de uma linda arvore, é possível ver a gravura pequena na borda da bancada com o sobrenome Laurenz. Há também algo de grande sucesso pela cidade, os tamboretes de bares e os assentos de madeiras dos pontos de ônibus e das praças feitos com madeira bruta vindo diretamente da madeireira. Por outro lado, podemos observar os caixotes de plástico do Hortifrúti de Aurora, esses caixotes além de carregar o nome de Aurélio e de sua empresa são de suma importância pois nos bares meia-bocas de esquinas e em outros lugares os caixotes viram assentos nada confortáveis, as vezes são usados pra armazenar ou transportar itens como os de mudanças, posso lembrar que minha mãe carregava ao menos um vermelho cheio de tralhas quando arrumávamos nossa mudança para casa nova.

 Otto que é o dono do restaurante onde trabalho tenta evitar ao máximo assuntos políticos em seu restaurante, evitando que aqui seja um distribuidor de folhetos político, cartões propagandas ou qualquer outro item que inclua a politicagem no meio, é esperto da parte de Otto, afinal desse modo sua clientela parece mais harmónica e bem vinda.

 Limpo as mãos rapidamente no avental do trabalho, ajeito a gola da camisa a puxando com o dedo já que a mesma parece me sufocar, logo fecharemos as portas, mas alguns clientes insistem em fazer hora o que me deixava fulo da vida, por não poder fechar com eles ali dentro. Senhor Otto contava as últimas notas de dinheiros do caixa sem hesito ou preocupação com o tardio horário que seus funcionários iriam embora do restaurante. Deveria haver uma regra na qual não atender pedidos de clientes próximo ao horário de fechamento do estabelecimento deveria ser respeitado.

 O restaurante era pequeno, mas de certo modo espaçoso o suficiente para caber diversas mesas em formatos cúbicos grudadas ao solo, havia mesas para família, essas um retângulo com oito cadeiras entorno. O restaurante tinha uma fachada de vidro e um enorme letreiro escrita Restaurante do Otto. Através da fachada era possível observar tudo o que acontecia do lado de fora do estabelecimento e as vezes eu perdia horas do meu trabalho fingindo limpar o enorme vidro para poder respirar um pouco e observar sigilosamente a vida alheia, principalmente em dias tediosos, mas nunca durante a noite.

 A família "feliz" fazia brincadeiras, já que seus pedidos estavam parcialmente limpos nos pratos rasos de porcelanas brancas. Se mantinham sentados numa mesa cubica ao canto da lanchonete com uma cadeira a mais, uma mãe, três filhos e o pai. Pareciam estar se divertindo. A mãe conversava com a filha mais velha eram muito parecidas, ambas trocando risos em uma conversa que parecia ser interessante, a criança menor estava no colo do pai, devia ter entorno de três anos e espalhava um riso contagiante pelo ambiente enquanto seu pai enchia de cócegas, já o menino do meio estava focado com seus grandes óculos em empilhar os restos das batatas com palitos em cima do prato. Observo com desdenho, e uma ponta de mim sente inveja daquela cena, eu não fazia ideia do que era vivenciar momentos familiares, em minha vida sempre foi eu e minha mãe, e minha mãe sempre muito distante por conta do seu foco no trabalho, "não dá para deixar de trabalhar sempre para cuidar da casa", falava ela e eu agora concordo com essa fala. Lembro-me de uma vez, quando mais novo, cobrei dela sua presença, e ela me disse após eu dar uma resposta malcriada a ela que ela me dava de tudo, roupas, comida, morada e eu não podia reclamar ou exigir equidade ou sua presença já que todo seu esforço era voltado para que eu tivesse uma vida boa, "eu não pedi para nascer" foi a resposta que pairou em minha mente durante um bom tempo, desse modo eu a obrigava mentalmente a fazer o que eu queria, mas eu nunca disse isso a ela de fato, e tinha medo que a resposta dela fosse: eu não pedi para te ter. Pois no fundo eu sabia que não era um filho tão desejado assim, mas nunca tive coragem de tirar a prova viva, era melhor que nesse caso, eu não soubesse. Com isso passei a usar outra frase mental quando eu pensava a respeito daquilo que eu não sabia: O que não sei não pode me machucar.

 Após longos 50 minutos a família se retirou, deixou uma boa gorjeta ao menos, o mínimo pelo tempo perdido. O relógio marcava onze horas da noite em ponto. Era tarde, tarde demais, pensei em ligar para a minha mãe, mas ela iria reclamando no caminho para casa por eu ter tirado o seu tempo para que ela se dedicasse ao meu tempo de cuidados, mesmo que esse seu tempo fosse apenas de seu próprio descanso. Observo o telefone vermelho colado na parede do restaurante de Otto por um instante e em minha mente não passa mais nada, apenas entrei em uma hipnose repentina olhando fixamente para o aparelho, acredito que eu não o olhava mais de fato, apenas estava viajando na maionese.

 — Pode ir garoto. — Disse Otto me tirando do transe.

 Acenei positivo com a cabeça, pendurei o avental junto dos outros na parede atrás do balcão, o meu era o único limpo, me dei conta que eu era o último funcionário presente, todos já haviam ido embora, talvez passado por mim enquanto eu pensava e pensava em nada. Aproveitei para pegar a minha blusa de frio que trouxera já esperando essa instabilidade climática e deixei atrás do balcão dobrada em um tamborete que ninguém usava.

 — Boa noite Otto. — Resmunguei

 — Bom descanso Adriel — disse ele me olhando por cima dos óculos fundos de garrafas que deixavam seus olhos gigantescos atrás da lente, segurando suas cédulas de dinheiro.

Crônicas da Noite - A Ordem da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora