Por que, então, estava se sentindo uma traidora?

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A primeira coisa que Clarke fez foi informar o parente mais próximo sobre a morte de Lobar. Depois de fazer isso, passou alguns minutos pensando sobre o conceito de família. Eles nem se importaram. O rosto da mulher na tela do tele-link permanecera impassível. Era como se Clarke estivesse lhe comunicando a morte de um estranho, e não do filho que ela colocara no mundo e criara. Agradeceu pelas informações, com toda a educação, não fez perguntas e concordou que os restos mortais do filho fossem despachados para casa, assim que liberados.

Eles lhe dariam, a mãe declarara, um enterro cristão e decente. Clarke imaginou que ela faria a mesma coisa pelo cão da casa.

O que será que calcificara os seus sentimentos a esse ponto?, perguntou-se Clarke . Se é que havia algum sentimento, para começar. O que fazia uma mãe demonstrar tanta dor, como a mãe de Ashley fizera, e outra receber a notícia da morte do filho sem derramar uma lágrima sequer?

O que será que sua própria mãe sentira quando ela nasceu? Será que ela ficara feliz ou simplesmente sentira alívio ao ver que a intrusa que morara em seu corpo por nove meses finalmente fora despejada dali?

Clarke não tinha lembrança alguma de sua mãe, nem mesmo a recordação difusa de uma presença feminina em sua infância. Lembrava-se apenas do pai, do homem que a arrastara de um lugar para outro e a mantinha trancada em quartos sujos. O homem que a estuprara. E as lembranças dele, depois de tantos anos sendo negadas, eram agora muito mais claras.

Talvez o destino de algumas pessoas fosse o de viverem sem família, pensou. Ou simplesmente conseguir sobreviver a ela. Por se ver tomada por pensamentos sombrios, foi com sentimentos conflitantes que Clarke ligou para a dra. Mira, a fim de marcar uma consulta. Depois de intimidar sua secretária, obrigando-a a encaixá-la em um dos horários do dia seguinte, pegou a bolsa, chamou Peabody pelo comunicador e saiu.

Não deixou de reparar a expressão de cautela no rosto da auxiliar ao parar o carro na porta do prédio de Selina, mas ignorou o fato. Estava começando a chover. Era uma garoa estranha e fria que caía de um céu que subitamente se tornara escuro e pesado. O vento soprava com força, assobiando ao longo dos desfiladeiros representados pelas ruas, e parecia morder os pedaços de pele que encontrava descobertos.

Do outro lado da calçada, um homem rumava para leste, encurvado sob um guarda-chuva preto. Subitamente se virou e entrou em uma loja onde se via uma caveira sorridente e as palavras "O Arcano" pintadas na porta.

- Um dia perfeito para fazermos uma visita à empregadinha de Satanás. - Peabody fez uma expressão, obviamente falsa, de quem estava se divertindo e, disfarçando, acariciou um galhinho de erva-de-são-joão que enfiara no bolso. Era o conselho que sua mãe lhe dera para protegê-la de magia negra. A intrépida Peabody descobrira que acreditava em bruxas, afinal.

Passaram pela mesma rotina da segurança, só que dessa vez a espera foi maior e mais desagradável, pois a chuva começou a apertar. Terríveis raios em forma de forcado golpeavam o céu e pareciam ter dentes vermelhos nas pontas. Clarke olhou para cima, e então se virou para a assistente. Seu sorriso foi duro e frio quando ela confirmou:

- É... um dia perfeito!

Ao entrar, deixaram um rastro molhado no piso da portaria, depois no elevador e no saguão do apartamento de Selina Cross. Dessa vez, foi Alban quem as recebeu.

- Tenente Griffin - disse e exibiu a mão, maravilhosamente esculpida e enfeitada por um único anel de prata ricamente trabalhado - , sou Alban, companheiro de Selina. Infelizmente, ela está meditando. Não me sinto à vontade para perturbá-la.

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